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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Como Putin usa mentiras e mercenários para destruir democracias - Estadão

 Como Putin usa mentiras e mercenários para destruir democracias 


Pouco antes de morrer em agosto, em um acidente aéreo em circunstâncias suspeitas, o líder do Grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin disse em suas redes sociais que estava na África “para tornar o continente mais livre. Era no continente, principalmente na região do Sahel, onde seus mercenários mantinham grande parte de sua operação. 

E é também nessa parte da África subsaariana onde estão alguns dos países mais voláteis politicamente do Sul Global. Países como Mali, Niger, Burkina Faso e Chade passaram recentemente por golpes de Estado, campanhas de desinformação e tráfico de armas, em ações patrocinadas pela Rússia de Vladimir Putin. Para aumentar a sua influência na região, o Kremlin atua em duas frentes. Uma é oficial, com a doação de até 50 mil toneladas de grãos e o o acordo de cooperação militar com 40 países anunciados por Putin durante a Cúpula Rússia-África. 

A outra, avança sem ser anunciada, com campanhas de desinformação e forte presença dos mercenários do grupo Wagner Um monitoramento recente da ONG Freedom House, que acompanha os direitos políticos e liberdades civis no mundo há cinco décadas, mostra um recuo do volume de países considerados “livres” no continente africano. 

Gana, Namíbia, Botsuana, Lesoto e África do Sul são cada vez mais exceções que regras, num continente marcado pela pobreza e a instabilidade política, onde sete Países enfrentaram golpes de Estado no últimos dois anos. E a Rússia tem atuado pra isso. O Centro de Estudos Estratégicos da África mostrou que há uma relação direta entre essa última, a ação desestabilizadora russa, e a perda de pontos na escala de países livres. 

Gana, que não tem registro de interferência, aparece com 80 pontos na escala que vai de zero a 100 — melhor avaliado que o Brasil (72). Enquanto os países onde a estratégia de Moscou é mais presente tem uma média de 19 pontos, o mesmo que a ditadura da Nicarágua. Em contrapartida, aponta o estudo, autocracias sem instituições sólidas e sem controles internos são mais permissivas à influência russa. O continente sofre com golpes de Estado em série, manobras de governantes que não querem deixar o poder para estender mandatos e eleições sob suspeita. 

Uma instabilidade crescente, depois da ascensão democrática que parecia ter encerrado a tendência de militarização observada entre as décadas de 1970 e 1980. Essas democracias fragilizadas, se encontram no meio de uma disputa por influência entre polos cada vez mais antagônicos. O professor de relações internacionais do IBMEC Christopher Mendonça alerta que uma das formas de rivalizar com os Estados Unidos e com o Ocidente de modo geral é justamente apresentar para os Países onde disputam influência os valores russos: “a democracia não está entre esses valores. A Rússia está muito mais voltada para o nacionalismo”. 

 Os interesses de Vladimir Putin Moscou tem um objetivo claro: substituir as potências ocidentais e aumentar a influência no continente que é o número dois no mundo em área e população. São 30 milhões de quilômetros quadrados divididos entre 54 países onde vivem 1,2 bilhão de habitantes. E esse interesse não é de hoje, explica Angelo Segrillo, historiador especializado em história russa.

 A antiga União Soviética já disputava com a China e as potências Ocidentais a influência sobre os Países africanos que conquistavam independência. A Rússia até herdou essa relação com o fim da URSS, mas enfraqueceu os laços com o continente no final da década de 1990, enquanto enfrentava um problema dentro de casa, a crise econômica, que levou o país a dar um calota na dívida externa.

 Na era Vladimir Putin, já com as contas acertadas, Moscou passou a buscar essas antigas relações. O movimento se acentuou a partir de 2014, quando a Rússia foi alvo das primeiras sanções por anexar a Crimeia e ganhou força no ano passado, a partir da invasão da Ucrânia, que azedou de vez a relação com o Ocidente. “Com o aprofundamento das sanções, a Rússia tenta aumentar os seus laços e influência tanto na Ásia quanto na África, almejando criar um verdadeiro bloco antiocidental”, aponta Segrillo. 

 Além de contornar os embargos econômicos, a Rússia de Vladimir Putin busca reduzir o seu isolamento, como foi observado no aniversário de um ano da guerra, quando a Assembleia-Geral da ONU aprovou uma resolução contra a invasão da Ucrânia. O texto foi facilmente aprovado com 141 votos a favor, mas dois países africanos votaram contra junto com a própria Rússia e seus aliados mais próximos, como Belarus. Dos 32 países que se abstiveram, metade fica na África. Sob sanções internacionais, é crucial para Rússia desenvolver esses fluxos alternativos de receita. Ao mesmo tempo, desenvolver parcerias com esses regimes possibilita um tipo de proteção contra condenação internacional pela invasão na Ucrânia. É uma forma de jogar a geopolítica”, nota o pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da África Daniel Eizenga ao Estadão. 

 Embora o apoio ou posição de neutralidade entre os países africanos nem de longe tenha sido suficiente para barrar a resolução, os números mostram como o continente está dividido em relação à guerra, contrariando o Ocidente, que adota uma posição firme contra o Kremlin e esperam o mesmo de outros Países. A consequência, conclui Cristopher Mendonça é que “se aproximar desses Países melhora as condições da Rússia na ONU”, especialmente em votações da Assembleia-Geral. “A Rússia não é um país que questiona a ONU porque é um membro efetivo [do Conselho de Segurança], estava na criação desses sistema. 

E a África tem um número de votos que é superior ao de outras regiões”, justifica. Em contrapartida, Moscou tem usado o poder de veto como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU parar barrar resoluções contra os governos que apoia na África. Assim, tem livrado autocratas de sanções financeiras e da condenação internacional. Ressentimento com colonialismo abre espaço pra Rússia Enquanto Moscou busca espaço no continente, a relação com Paris se mostra cada dia mais desgastada a exemplo do que acontece no Mali. 

Seis décadas depois da conquista da independência da França, a nova Constituição, aprovada sob o governo militar, demoveu o francês da lista de idiomas oficiais do País. Um gesto considerado simbólico já que a própria carta magna foi escrita em francês, mas que evidencia o ressentimento com o passado colonizador e com as intervenções mais recentes, às vezes, desastrosas. No ano passado, antes de rebaixar o idioma, o Mali celebrou com uma multidão nas ruas a expulsão do embaixador e assistiu a retirada de tropas da França. 

Um dia recebidos como heróis contra o extremismo islâmico, os soldados deixaram o países acusados de neocolonialismo dez anos depois, no momento em que os grupos jihadistas ganham força. Logo depois, a vizinha Burkina Faso, também ex-colônia e também sob um regime militar, que mandou os soldados franceses embora. Mais recentemente, foi a vez do Níger, onde os militares tomaram o poder em julho. Quando apoiadores da junta militar foram às ruas manifestar apoio ao golpe, alguns queimaram a bandeira francesa enquanto outros exibiram a russa. 

Uma imagem que simboliza como Moscou avança para ocupar esse vácuo de influência deixado por Paris. Depois do golpe, o Níger também expulsou o embaixador da França e, em meio à tensão crescente, Emmanuel Macron já anunciou a retirada das tropas no País, que era tido como último ponto de apoio do Ocidente nas ações contra o terrorismo no Sahel. O problema é que os Países ocidentais também deram sustentação para autocratas e apoio militar para suas forças de segurança, fechando os olhos para violações de direitos humanos sob a justificativa de combate as grupos insurgentes, afirma diretora do programa africano da Freedom House Tiseke Kasambala ao Estadão. “Infelizmente, as intervenções ocidentais, incluindo aquelas promovidas por potências coloniais, como a França, nem sempre foram positivas levando a um ressentimento generalizado na população”, afirma. 

 Democracia, um sistema em crise Com exceção do Sudão, as ex-colônias francesas correspondem a seis dos sete países africanos que sofreram com golpes de Estado nos últimos dois anos. Além dos já citados, Mali, Burkina Faso e Níger, a lista inclui ainda Chade, Guiné e, mais recentemente o Gabão. Este último, mostra como o cenário é complexo já que mesmo antes do golpe, não é como se o País experienciasse uma democracia plena com alternância de poder. Ali Bongo, o presidente deposto há cerca de um mês pelo golpe, havia acabado de ganhar um terceiro mandato de sete anos.

 O antecessor, o seu pai Omar Bongo, comandou o Gabão por mais de 40 anos até morrer em 2009. A perpetuação dos Bongo no poder repetia uma tendência verificada também em outros Países africanos. Em Ruanda, Paul Kagame, é presidente desde os anos 2000 e, graças às reformas políticas aprovadas durante o governo, pode seguir no poder pelo menos até 2034. Quando confirmou, este mês, que será candidato novamente, ele se antecipou às possíveis críticas. “O que é democracia? O Ocidente ditar o que os outros devem fazer? Mas se eles violam os próprios princípios, como ouvimos a eles?”, questionou Kagame. 

E completou: “Procurar transferir a democracia para os outros já é uma violação da democracia em si. As pessoas deveriam ser independentes e ter o direito de ser organizar da forma que quiserem”. A Freedom House aponta ainda outras estratégias que limitam a democracia no continente, como leis de segurança digital que violam privacidade e liberdade de expressão ou políticas abrangentes, que deveriam combater o terrorismo, mas restringem o direito de livre associação. Exemplos disso, aponta a ONG, são an Uganda e o Zimbábue, onde opositores acabam de ser detidos, depois que o presidente Gift Siziba foi reeleito em uma disputa contestada, marcada por denúncias de irregularidades. 

 Apesar dos diferentes indícios de corrosão, a democracia é a forma de governo preferida por 66% da população em 36 países do continente, mostrou o Afrobarômetro, organização não governamental que há 20 anos conduz pesquisas na África. A grande maioria (cerca de 80%) rejeita governos de um homem só ou de partido único. Na mesma linha, quase 70% se dizem contra governos militares. Entretanto, só 38% expressaram satisfação com a forma como a democracia tem funcionado dentro dos seus Países. “Infelizmente, as aspirações políticas não se alinham com a realidade e os cidadãos descobriram que a oferta de democracia é extremamente deficiente”, conclui Tiseke Kasambala. 

Ela lembra que, nos Países onde o processo democrático foi interrompido, instituições frágeis falharam em atender as demandas sociais e oferecer serviços básicos. Ao mesmo tempo, a falta de pluralidade na política, favorece pequenas elites e aprofunda a desigualdade no continente onde mais de 540 milhões de pessoas vivem na pobreza, segundo dados da ONU. À media em que as pessoas exigem mudanças, seja nos rumos da política ou da economia, a resposta dos governantes tem sido endurecer as regras e não atender as demandas sociais. “Os governos violaram liberdades, dificultaram o trabalho da sociedade civil com leis repressivas, respostas violentas a protestos pacíficos e prisões de defensores dos direitos humanos, ativistas e jornalistas”, aponta Kasambala. 

 O grupo Wagner e o futuro indefinido Foi nesse cenário complexo, de instituições enfraquecidas, e busca por aliados sem relação com os antigos colonizadores, que a Rússia se apresentou como um parceiro atrativo e aumentou a presença do grupo Wagner na África. A relação de Moscou com os mercenários, no entanto, ficou estremecida pelo motim que ameaçou Vladimir Putin na Rússia. Depois da rebelião, o Kremlin afastou os paramilitares da Ucrânia, mas manteve as operações no continente africano.

 Foi lá, inclusive, que o chefe Ievgeni Prigozhin apareceu em vídeo pela primeira e última vez desde que liderou o avanço em direção à Moscou. Dias depois da aparição, o avião em que Prigozhin e o seu braço de direito viajavam caiu perto da capital russa. A morte do antigo aliado de Putin, chamado de “traidor” por organizar o motim, abriu um vácuo de poder dentro da organização e aumentou ainda mais a incerteza que paira sobre o futuro do grupo Wagner. Depois da morte de Prigozhin, Moscou indicou que deve manter os mercenários, mas sob seu controle. O sinal veio na semana passada, quando o militar reformado que atuava como um dos líderes do grupo Wagner, Andrei Troshev, recebeu a missão de recrutar combatentes para guerra na Ucrânia. Conhecido pelo apelido de “Sedoi” (grisalho, em russo), o comandante já havia sido apontado como o favorito de Vladimir Putin para comandar os mercenários e vai seguir ordens do Ministério da Defesa. 

A nomeação pareceu refletir o plano do Kremlin para colocar o grupo Wagner de volta à linha de combate ucraniana. Enquanto o mundo observa que papel os mercenários devem ter a partir de agora na guerra, o historiador Angelo Segrillo destaca que uma das saídas para o dilema que o grupo Wagner impôs ao Kremlin poderia ser justamente reforçar ação da milícia, já domada, longe do País. “Normalmente, o grupo teria sido desfeito depois do motim, mas sua presença na África é profunda e foi muito importante para a Rússia ao realizar — informalmente ou clandestinamente — as tarefas que Moscou não poderia executar oficialmente”, lembra o pesquisador.  

A volta de um personagem notório do exército russo pode ser um indicativo dessa estratégia, depois do susto que o grupo Wagner deu em Vladimir Putin. O general Sergei Surovikin, afastado por supostos vínculos com o motim, reapareceu na Argélia, importante comprador de armas russas, depois de semanas sem ser visto em público. “Surovikin é um general duro e que foi muito importante em vários cenários bélicos, principalmente na Síria, e também na própria Ucrânia, onde organizou as linhas de resistência nas províncias incorporadas por Moscou”, contextualizou Segrillo afirmando que o afastamento da Rússia e possível transferência do general poderia confirmar a possibilidade do grupo Wagner ter a energia mais focada em cenários distantes de Moscou, em especial, a África. 

 Seja qual for a estratégia, analistas concordam que o interesse da Rússia não vem de hoje e não vai acabar, independente de qual for destino do grupo Wagner.  


Quatro líderes e um mundo virado ao revés Israel , EUA, Rússia e China - Thomas L. Friedman (NYT, Estadão)

 Quatro líderes e um mundo virado ao revés

Israel EUA, Rússia e China

Thomas L. Friedman
The New York Times É colunista e ganhador de três prêmios Pulitzer
O Estado de S. Paulo, 6/10/2023

Desde o dia em que aprendí que, em 1947, Walter Lippmann popularizou o termo Guerra Fria para definir o conflito que emergia entre EUA e União Soviética, achei que seria legal poder batizar um período histórico. Agora que o pós-Guerra Fria acabou, o pós-pós-Guerra em que entramos tem de ganhar um nome. Então, aqui vai: é a era do "Isso não estava nos planos".

Eu sei, não é uma expressão fácil de articular - e não espero que cole. Mas ela é certeira. Eu tropecei nela na minha viagem recente à Ucrânia. Estava conversando com uma mãe ucraniana que me contava que sua vida social tinha se reduzido a jantares ocasionais com amigos, festas de aniversário "e funerais".

Depois de digitar a citação na minha coluna, acrescentei meu próprio comentário: "Isso não estava nos planos". Antes do ano passado, jovens ucranianos vinham desfrutando de acesso facilitado à União Européia, entrando em startups de tecnologia, pensando sobre fazer faculdade e decidindo se passavam férias na Itália ou na Espanha. Então, como um meteoro, a invasão russa virou as vidas deles de ponta cabeça da noite para o dia.

Aquela ucraniana não está só. Muitos planos de muita gente - e de muitos países - saíram completamente dos trilhos. Entramos na era do pós-pós-Guerra Fria, que tem pouco a prometer em comparação à prosperidade, à previsibilidade e às novas possibilidades do período pós-Guerra Fria, que abrangeu os 30 anos desde a queda do Muro de Berlim.

Há muitas razões para isso, mas nenhuma é mais importante do que o trabalho de quatro líderes cruciais com uma coisa em comum: acreditam que sua liderança é indispensável e estão dispostos a adotar medidas extremas para se manter no poder o máximo que puderem.

PODER. Estou falando de Vladimir Putin, Xi Jinping, Donald Trump e Binyamin Netanyahu. Esses quatro - cada um à sua maneira - criaram perturbações dentro e fora de seus países com base em seu interesse particular, em vez dos interesses de seus povos, e dificultaram a capacidade de suas nações funcionarem normalmente no presente e se planejarem sabiamente para o futuro.

Veja Putin. Ele começou a carreira como um tipo de reformador que estabilizou a Rússia pós-Yeltsin e coordenou um boom econômico graças aos preços do petróleo em elevação. Mas a renda com o petróleo começou a cair e, conforme descreve o acadêmico russo Leon Aron em seu próximo livro, Ridingthe Tiger: Vladimir Putirís Rússia and the Uses ofWar, Putin deu uma grande virada no começo de seu terceiro mandato como presidente, em 2012, após os maiores protestos contra seu governo irromperem em 100 cidades russas e sua economia empacar.

A solução de Putin? "Mudar a fundação da legitimidade de seu regime do progresso econômico para o patriotismo militarizado", disse Aron, colocando a culpa de todas as dificuldades no Ocidente e na expansão da Otan. No processo, o presidente russo transformou seu país em um forte sitiado, que, em sua mentalidade e propaganda, somente Putin é capaz de defender. Ele ter invadido a Ucrânia para restaurar a mítica Mãe-Pátria russa foi inevitável.

Os acontecimentos na China também têm se desdobrado de maneira bastante inesperada. Depois de se abrir e afrouxar controles internos constantemente desde 1978, tornando-se mais previsível, estável e próspera que em qualquer outro momento da história moderna, a China experimentou uma virada de quase 180 graus sob o presidente Xi: ele suprimiu o limite de mandatos - respeitado por seus antecessores para evitar a ascensão de um novo Mao Tsé-tung - e fez-se presidente indefinidamente.

Xi, aparentemente, acreditou que o Partido Comunista estava perdendo o controle e, portanto, reafirmou seu poder em todos os níveis sociais e empresariais ao mesmo tempo, o que eliminou qualquer rival.

Isso tomou a China um país mais fechado do que em qualquer momento desde os dias de Mao e desencadeou comentários de que o mundo pode já ter visto o auge da China em relação a potencial econômico, o que equivalería a um terremoto na economia global.

Certamente não estava nos meus planos acabar escrevendo, depois de quase uma vida inteira acompanhando conflitos de Israel com inimigos externos, que a maior ameaça à democracia judaica hoje é um inimigo interno - um golpe no Judiciário liderado por Netanyahu que está fragmentando a sociedade e as Forças Armadas de Israel.

O ex-diretor-geral do ministério israelense da Defesa Dan Harel afirmou, em um comício pró-democracia em Tel-Aviv, na semana passada: "Eu nunca vi nossa segurança nacional num estado tão ruim" e houve "dano às unidades da reserva de formações essenciais das Forças Armadas, o que reduziu prontidão e capacidade operacional".

E este problema não é pequeno para os EUA. Ao longo dos últimos 50 anos, o Estado de Israel tem sido tanto um aliado crucial quanto, de fato, uma base avançada na região em que Washington projetou poder sem usar tropas americanas.

Israel destruiu tentativas incipientes de Iraque e Síria se tornarem potências nucleares e é o maior contrapeso atualmente à expansão do poder do Irã sobre toda a região. Mas, se tivermos mais três anos desse governo extremista de Netanyahu, com sua pretensão de anexar a Cisjordânia e governar os palestinos que habitam o território com um sistema à la apartheid, o Estado judaico poderá se tornar uma grande fonte de instabilidade, não de estabilidade.

E por quê? Em um recente perfil de Bibi no Times, Ruth Margalit citou Ze'ev Elkin, um ex-ministro do gabinete de Netanyahu, do Likud, descrevendo o primeiro-ministro da seguinte forma: "Ele começou com uma visão de mundo que dizia: 'Eu sou o melhor líder para Israel neste momento', que gradualmente se transformou numa visão de mundo que diz: 'A pior coisa que pode acontecer para Israel é eu parar de liderar o país, e portanto minha sobrevivência justifica qualquer coisa'."

PILAR. Nem é preciso dizer, depois de testemunhar o esforço de Trump para reverter a eleição de 2020 inspirando uma turba a invadir o Capitólio e ver esse mesmo homem se tomar o principal pré-candidato republicano à presidência em 2024, que a nossa próxima eleição será uma das mais importantes de todos os tempos - para que não seja a última. Isso não estava nos planos.

O denominador comum que une esses quatro líderes é que todos eles quebraram as regras do jogo em seus países por uma razão bastante familiar: permanecer no poder. Putin também iniciou uma guerra no exterior com o mesmo objetivo. E seus sistemas locais - a elite russa, o Partido Comunista Chinês, o eleitorado israelense e o Partido Republicano - não foram capazes de refreá-los.

Mas também existem diferenças importantes entre eles. Netanyahu e Trump enfrentam resistência em suas democracias, onde os eleitores ainda podem expulsar ou impedir ambos - e nenhum deles começou uma guerra.

Xi é um autocrata, mas tem uma agenda para melhorar a vida de seu povo e planeja dominar grandes indústrias do século 21, da biotecnologia à inteligência artificial. Mas seu governo, cada vez mais linha-dura, poderá ser exatamente o que impedirá a China de chegar lá, principalmente porque esse punho de ferro ocasiona fuga de cérebros.

Putin não passa de um chefão mafioso disfarçado de presidente. Ele será lembrado por transformar a Rússia da potência científica, que colocou o primeiro satélite em órbita, em 1957, em um país incapaz de fabricar um carro, um relógio ou uma torradeira que qualquer pessoa fora do país compraria. Putin teve de recorrer à Coréia do Norte para mendigar ajuda para seu Exército arrasado na Ucrânia.

Trump, em última instância, é o mais perigoso - e por uma simples razão: quando o mundo fica tão caótico assim e países tão importantes contrariam os planos, o restante depende dos EUA para assumir a liderança, conter os problemas e opor-se aos causadores de problemas. Mas Trump prefere ignorar problemas e louvar os criadores de problemas. É isso que torna a perspectiva de outra presidência sua tão assustadora, insensata e inconcebível.

Porque os EUA ainda são o pilar do mundo. Nem sempre fazem isso sabiamente, mas se parar completamente de fazê-lo, cuidado. Dado o que já está acontecendo nesses três outros importantes países, se os EUA vacilarem, nascerá um mundo no qual ninguém será capaz de fazer nenhum plano. Haverá um nome fácil para esse período: "Era da Desordem".

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Se os EUA vacilarem, nascerá um mundo incapaz de fazer planos. Será a 'Era da desordem'

A tragédia dos refugiados afegãos no Paquistão (FSP)

 Paquistão anuncia expulsão de 1,7 milhão de afegãos, e migrantes buscam o Brasil Redefinição da política de acolhida brasileira trava solicitações de vistos humanitários na capital Islamabad 


 SÃO PAULO 
Segundo país que mais recebe afegãos que fogem do regime do Talibã e do colapso econômico, o Paquistão anunciou uma nova política migratória, descrita como uma "repatriação gradual", que pode expulsar cerca de 1,7 milhão de afegãos de seu território. 

 A medida aumentou a preocupação de migrantes no país, muitos dos quais já relatavam ser alvos de abusos e coação por policiais. E reflete também no Brasil. ONGs relatam que estão recebendo ainda mais pedidos de ajuda de afegãos que, vivendo no Paquistão, tentam emigrar para o Brasil com o visto de acolhida humanitária. Aqueles que desejam solicitar o visto brasileiro, no entanto, estão impossibilitados. A embaixada de Islamabad —uma das duas únicas, além da de Teerã, que acolhe pedidos— não está recebendo solicitações.

 A representação consular aguarda o governo brasileiro publicar edital com as novas regras para concessão de vistos humanitários para voltar a operar. Nesse meio-tempo, afegãos que estão no Paquistão relatam se sentir ainda mais inseguros. A política foi alterada pelo governo Lula no final do mês passado, e sua falta de detalhamento levou a uma ampla desinformação. O principal ponto de dúvida está no trecho que diz que a concessão de vistos estará sujeita à existência de vagas para abrigo por organizações. 

A informação deu margem para a interpretação de que, para vir, o migrante deve ser "convidado" por alguma ONG ou receber algum tipo de "carta de patrocínio", o que não é o caso, segundo o Itamaraty. A pasta disse à Folha que todos os pedidos realizados na embaixada de Islamabad até 1º de outubro passado seguem sendo processados normalmente. O posto concedeu 4.041 vistos a afegãos desde a implementação de sua política de acolhimento para migrantes da nacionalidade, em setembro de 2021. Hamid Liyaqat, 35, é um dos que tentam deixar os arredores de Islamabad e emigrar para o Brasil. No país com a esposa, os três filhos —de 7, 4 e 2 anos—, a mãe e três irmãs, ele diz que não se sente seguro e não vê oportunidades. 

Os filhos e suas irmãs mais novas, de 13 e 16 anos, não conseguem frequentar o ensino público de educação. O afegão deixou a província de Bamyan, onde vivia, logo após o Talibã retomar o poder, em outubro de 2021, rumo ao Paquistão. O restante da família se juntou a ele pouco depois, mas não sem antes sentir o impacto da repressão do regime fundamentalista —ele relata que oficiais invadiram sua casa e agrediram sua mãe. Hamid trabalhava como vice-diretor da polícia civil de Bamyan junto a um projeto do Pnud, o programa da ONU para o desenvolvimento. Mas a rixa do Talibã com sua família vem de antes. Seu pai, relata, era membro da polícia nacional e foi assassinado por talibãs em 2013. 

 O próprio Hamid chegou a ser sequestrado pelo grupo em 2020, quando fazia o percurso com destino à capital Cabul junto com a mulher, então grávida de seis meses, segundo documentos oficiais do governo da época que o afegão compartilhou com a reportagem. Hamid diz que já solicitou o visto mais de uma vez e aguarda resposta. A imigração é não só uma tentativa de buscar mais oportunidades, como de proteger a família dos abusos policiais que ela enfrenta. "Temos muito medo. Ficamos quase 24 horas por dia em casa. Se saímos, policiais nos param e exigem dinheiro. Se não damos, nos ameaçam até com a expulsão. Estão nos humilhando." Ahmad (nome fictício) relata situação semelhante. O afegão cruzou a fronteira com o Paquistão em novembro de 2021 e diz que corria riscos por ser cristão —o Talibã lidera um regime fundamentalista islâmico. 

Ele afirma que há dois anos solicitou o visto brasileiro, mas que ainda não teve resposta. O desespero bateu à porta de fato nesta semana, após o governo local anunciar as deportações. Ele, que mora na cidade de Rawalpindi e prefere não revelar a identidade por questões de segurança, diz que, se for pego pela polícia, será entregue ao Talibã e morto. Procurada, a embaixada do Paquistão no Brasil disse que as acusações sobre a ação de seus policiais são "totalmente sem fundamento e fora de contexto". Nesta terça-feira (3), o Paquistão anunciou que todos os migrantes em situação ilegal no país devem sair de forma voluntária até o final de outubro se quiserem evitar prisão e deportação forçada. Autoridades afirmaram que uma linha telefônica seria criada para que pessoas possam denunciar esses migrantes em troca de recompensa. A política foi anunciada após uma série de ataques no Paquistão a poucos meses das eleições de janeiro. 

Os atentados são orquestrados por militantes islâmicos e se tornaram mais frequentes desde 2022, quando foi rompido um cessar-fogo entre o governo e o Tehreek-e-Taliban Pakistan (TTP), o talibã paquistanês. Os extremistas tentam pressionar as autoridades a implementarem um regime com base na sharia, a lei islâmica, espécie de marco moral com base no Alcorão. Na semana passada, dois atentados suicidas mataram mais de 60 pessoas durante uma celebração religiosa do aniversário do profeta Maomé. Na ação mais letal, em janeiro, mais de cem foram mortos em um atentado a uma mesquita em Peshawar —o local sagrado ficava em um complexo que abriga prédios oficiais. 

 O governo afirma que hoje 4,4 milhões de afegãos vivem no Paquistão, sendo 1,7 milhão sem documentação. Dados do Acnur, a agência de refugiados da ONU, por sua vez, indicam que há 3,7 milhões de afegãos. O regime talibã chamou de "inaceitável" a ação paquistanesa. À Folha a embaixada do Paquistão no Brasil disse que a política de repatriação vale para todos os migrantes em situação irregular, não apenas os afegãos, e que essa ação é válida perante "as leis soberanas do país". Grande parte dos afegãos que buscam o Brasil sai do Paquistão, país que compartilha uma fronteira de mais de 2.600 quilômetros com o Afeganistão. Segundo dados públicos da OIM, braço da ONU para migrações que apoiou a vinda de ao menos 439 afegãos para o Brasil, 80% deles saíram do Paquistão antes de desembarcar no país —outros 17% saíram do Irã, país com maior diáspora afegã (4,5 milhões). 


O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta - Ricardo Seitenfus (Brasil de Fato)

O Haiti é um Estado falido, em todos os planos. Acontece...

O Haiti, uma vez mais: crises recorrentes devem servir de alerta

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
  

Após meses de tergiversações o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, por treze votos favoráveis e duas abstenções (China e Rússia), no início desta semana, uma Resolução autorizando o envio de uma missão multinacional de apoio à segurança no Haiti.

Apesar do ruído da grande imprensa internacional, dos políticos e dos diplomatas, a decisão não constitui novidade alguma pois o Haiti se tornou, para sua infelicidade, desde o início dos anos 1990, um dos principais clientes do Conselho de Segurança. Desde então nada menos de dez « Missões » da ONU foram enviadas ao país. Com distintos propósitos e instrumentos de ação.

A existência de um « rosário missioneiro » como no caso haitiano, indica e tende a comprovar que o aporte destas missões foi nulo. Mal pensadas e conduzidas, seus reiterados fracassos levam à necessidade de retornar periodicamente ao Caribe. Exatamente o que estáo correndo atualmente.

O teor da Resolução indica que a missão reunirá componentes policial e militar de países voluntários. Seu financiamento idem. Se trata de uma original e pouco comum missão « não-onusiana ». Embora autorizada pelo Conselho de Segurança, a responsabilidade será de um grupo de países, ainda indefinidos, capitaneados pelo Quênia.

Paralelamente há indicação sobre a necessidade de um acerto político entre os haitianos. Para tanto o Conselho de Segurança confia nos esforços diplomáticos e de mediação da Comunidade do Caribe  (Caricom), da qual o Haiti é membro.

Sempre é aconselhável observar e analisar o conteúdo, o contexto e a semântica das Resoluções do Conselho de Segurança. Todavia um texto é o que ele diz e também o que ele cala. Neste sentido há silêncios que falam por si. O mais importante deles é a subjacente crítica à ação da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah) (2004-2017) cujo braço armado foi permanentemente comandado por generais brasileiros.os sucessivos governos brasileiros, o fato é que sob nosso comando, militares à serviço da Minustah e sob a bandeira das Nações Unidas, levaram ao Haiti, pela primeira vez em outubro de 2010, o vírus da cólera que infectou 800 mil pessoas e vitimou 30 mil, sobretudo camponeses da região rizícola de Artibonite, na região central do Haiti. Ainda hoje, a epidemia provoca mortes.

A máquina política, diplomática, burocrática, militar e jurídica das Nações Unidas tentou acobertar o escândalo. A presente Resolução do Conselho de Segurança ao aprovar uma missão « nao-onusiana » condena a todos, inclusive o poderoso Departamento de Operações de Paz.

Um segundo silêncio diz respeito à Organização dos Estados Americanos. Sequer mencionada, a OEA paga tributo à atuação pífia de seu Secretário Geral e aos equívocos decorrentes de seu alinhamento automático à posições equivocadas e frontalmente contrárias ao seu protagonismo em crises anteriores.

O espoucar de foguetes à notícia da adoção da Resolução deve ser temperado pois o mais difícil está por vir : fazer transitar seus propósitos para o terreno dos fatos. As recorrentes crises haitianas devem servir de alerta. Não é por acaso que o país recebeu a alcunha de « cemitério de projetos ». Considero que a antiga « Pérola das Antilhas » como o país das ilusões e inocências perdidas. Aconselho à todos cautela, prudência e caldo de galinha.

Ricardo Seitenfus foi Representante da OEA no Haiti (2009-2011) e autor de Haiti: dilemas e fracassos
internacionais
 e A ONU e epidemia de cólera no Haiti.

A arte de se ocupar das pequenas coisas - Paulo Roberto de Almeida

 L’être et le néant 

(mas não tem nada a ver com Jean-Paul Sartre, e sim com Raymond Aron):

O tal de Sul Global aparece como o objeto mais diáfano de estudos e discussões acadêmicas desde a famosa controvérsia sobre o sexo dos anjos em plena Idade Média. 

Se construiu uma suposta identidade de interesses num ajuntamento heteróclito de estados e nações como se fossem personagens reais, a partir de suposições jamais empiricamente confirmadas!

Os anjos de antigamente também juntavam cérebros respeitáveis em torno de absolutamente nada, sobre seres aparentemente similares. Só faltava definir o sexo: se fossem do sexo feminino talvez não tivessem almas. 

Mas tem gente que fala pomposamente desse Sul Global como se fosse uma manada a ser graciosamente tangida em direção de uma fabulosa “nova ordem global”, um generoso cenário de relações “não assimétricas”. 

Não é o Ser e o Nada?

Paulo Roberto de Almeida

Brasília , 6/10/2023

O estágio sombrio da diplomacia brasileira na guerra da Ucrânia - Paulo Roberto de Almeida

 Meu protesto solitário em face da atual situação de indignidade demonstrada pela diplomacia abjeta a que foi conduzido o Itamaraty:

Putin confirma seus piores instintos criminosos, dedicando-se simplesmente a matar tantos ucranianos civis quanto possível, já que falhou completamente em seus objetivos de conquistar o país:

“No [novo] ataque russo de hoje [6/10] contra a cidade ucraniana de Kharkiv, uma criança de 10 anos morreu e mais de 20 civis ficaram feridos, alguns com gravidade. O míssil russo visou um bairro residencial próximo do centro da cidade, um ataque realizado apenas 1 dia após a Rússia ter lançado um míssil contra uma aldeia, matando 51 pessoas e ferindo outras 150.”

Hoje no Mundo Militar, 6/10/2023

(PRA): E a diplomacia brasileira chega a um dos pontos mais baixos de sua história ao se mostrar totalmente indiferente, por completa submissão a ordens superiores, em relação aos atos mais bárbaros cometidos por um parceiro de um bloco indigno de fazer parte de nossas relações de aliança política. 

Não me lembro, na história do sistema internacional onusiano e da diplomacia brasileira nesse contexto, de termos descido tão baixo na escala da covardia humana, ao não reagir sequer por meio de uma simples demonstração de horror em face da crueldade em estado bruto, por razões da mais baixa política externa que se concebeu na diplomacia partidária do lulopetismo abjeto.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6/10/2023 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Itamaraty afirma que declaração de guerra é ato diplomático legítimo - Curso CACD

 Não deixa de ser surpreendente: a formulação da questão deve ter sido feita em meados deste ano, quando Lula defendia, como Amorim, as "legítimas preocupações de segurança da Rússia", de certa forma coonestando os argumentos de russos e aliados quanto à guerra de agressão à Ucrânia.

Deveremos ainda dois surpreender mais ainda com o Itamaraty aliado de China e Rússia na construção de uma "nova ordem global"?  É possível... (PRA)

Itamaraty afirma que declaração de guerra é ato diplomático legítimo 


Em meio à guerra da Ucrânia, concurso de admissão à carreira diplomática exige que candidatos afirmem que a guerra é meio diplomático tão legítimo quanto a resolução pacífica de controvérsias. Afirmação viola Constituição Federal, Carta da ONU e tradição diplomática brasileira. 

Divulgação do padrão de respostas da segunda fase do concorrido concurso de admissão à carreira diplomática (CACD) causou polêmica entre candidatos e repercutiu mal no próprio Itamaraty. Segundo o documento publicado na noite dessa segunda-feira, 4 de outubro, no site da banca organizadora do concurso, os candidatos deveriam afirmar na redação da prova de inglês que “a declaração de guerra é um ato diplomático tão “legítimo” quanto a mediação nas negociações de conflitos de forma pacífica” (confira íntegra do documento nesse link e ao final da matéria). 

“Estamos chocados. É contra tudo que aprendemos, contra tudo que o Brasil defende”, disse candidato que não quis se identificar por medo de retaliação. 

O padrão de respostas é o gabarito que os examinadores usam para a correção das provas. Isso significa que candidatos que defenderam a ilegitimidade do recurso a meios não pacíficos, como a guerra, foram penalizados. “É como se o Itamaraty quisesse soldados e não diplomatas ”, comentou outra candidata indignada, que também preferiu o anonimato. Ela ainda afirmou que a guerra do Iraque foi usada como exemplo da legitimidade da guerra. “O Brasil sempre criticou a invasão do Iraque. O Lula visitou o papa João Paulo II para pressionar diplomaticamente os EUA contra a invasão, e, agora, temos que dizer o contrário? Rasgaram os livros, queimaram a constituição”, disse esperançosa. 

 

Gabarito contra a Constituição e contra o Direito Internacional  

A Constituição brasileira, em seu artigo 4º, afirma que a defesa da paz e a solução pacífica de controvérsias são princípios que regem as relações internacionais do Brasil. A solução pacífica das controvérsias é uma das linhas-mestras da política externa brasileira. Exemplos históricos e presentes são inúmeros. Em termos históricos, pode-se recordar a resolução das controvérsias de limites com seus vizinhos em princípios do século XX, privilegiando a arbitragem internacional.

O gabarito não é apenas contra a Constituição, mas contra a Carta da ONU, que traz, em seu artigo 2:

3. Todos os Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais. 

4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.

“O parágrafo 4 do artigo 2 da Carta das Nações Unidas anula completamente o gabarito. O examinador foi incauto, foi contra a tradição do Itamaraty e contra o direito internacional. Nenhum diplomata brasileiro diria que a declaração de guerra é um meio legítimo. Como eles vão pedir que o candidato diga isso, ainda mais em meio à guerra na Ucrânia? ’’, comentou um professor que dá aula aos candidatos e também optou pelo anonimato. 

 

Candidatos temem terceira fase ainda mais arbitrária

Outra professora de inglês destacou que o próprio padrão de respostas da prova de inglês não responde ao comando da redação. Segundo ela, “a prova pedia que o candidato escrevesse uma redação que compatibilizasse duas citações. Uma definia a diplomacia como busca da solução pacífica de controvérsias, enquanto a outra dizia que não havia garantias que os estados não usariam a força, mas o gabarito de 7 linhas não disse como compatibilizar, só disse que eram iguais. Ora, dizer que são iguais não é explicar como“. 

O padrão de resposta da redação de inglês pode ser um sinal do crescente nível de subjetividade da prova. Candidatos relatam que, apesar da implementação de padrões de resposta, as correções ainda dependem do corretor. “Em 2022, cada matéria tinha 8, às vezes até 10 corretores, então a nota dependia de quem corrigia a sua prova. Nas provas de francês, eles não penalizaram quem deixava parte da prova em branco”, relatou outra candidata. “Não sabemos o que nos aguarda na terceira fase, mas um padrão desses dá medo”, concluiu.

 Chamou a atenção dessa reportagem o pequeno número de linhas do padrão de reposta de um concurso tão concorrido, apenas 7, e, ainda mais, que todos os candidatos preferiram manter o anonimato por medo de retaliação ao longo da carreira. Alguns comentaram que existe uma entrevista para candidatos negros e pardos aprovados e que a divulgação do nome na matéria poderia influenciar nessa avaliação. 

 

Confira a íntegra do padrão de respostas (https://www.iades.com.br/inscricao/ProcessoSeletivo.aspx?id=4a392209)

PADRÃO DE RESPOSTA DA PROVA DISCURSIVA (Divulgado em 04/10/2023) 

LÍNGUA INGLESA 

COMPOSITION

O candidato deve discorrer a respeito da capacidade que a diplomacia tem de se utilizar de meios pacíficos para atingir objetivos pacíficos, mas também de recorrer, a depender das circunstâncias, ao uso da força.

A declaração de guerra é um ato diplomático tão “legítimo” quanto a mediação nas negociações de conflitos de forma pacífica.

 Na história de grandes conflitos mundiais, há inúmeros exemplos de declaração de guerra feita pelas diplomacias europeia e americana. O exemplo mais recente foi a invasão do Iraque por potências ocidentais lideradas pelos Estados Unidos da América.

Morte de Vamireh Chacon - Crônica de Marcos Vasconcelos Filho (Tribuna Independente, Alagoas)

Morte de Vamireh Chacon 

Crônica de Marcos Vasconcelos Filho 

Tribuna Independente, 5/10/2023

Crônica-ensaio estampada hoje na »Tribuna independente« (Maceió, ano [17], n. 4.475, quinta-feira, 5 out. 2023, Opinião, p. 6) sob o fim de assinalar o desaparecimento material do meu amigo e colega de Academia Pernambucana de Letras (APE) e de Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) Vamireh Chacon [1934-2023].


Eis alguns recortes do texto:

»Morto Vamireh Chacon [...], perde o Brasil um cientista. E dos incomuns. Perco eu um raro amigo, pois companheiro do intelecto.

Na tarde chuvosa de inverno, passo a recordá-lo. [...] Para muitos, a carranca não permitia de logo entrever-lhe o coração. [...] Preservo com carinho a nossa correspondência: roteiro confessional ao jeito do “Contributo alla critica di me stesso” (1918), de Benedetto Croce. Num futuro próximo auxiliarão tais cartas o campo da epistolografia? [...]

Torno aos seus livros: um arco teórico que muito justamente mereceu, perto dum decênio atrás, o Prêmio Machado de Assis, cume dos lauréis da Academia Brasileira de Letras. “História das idéias sociológicas no Brasil” (1977), “História das idéias socialistas no Brasil” (1981), “Abreu e Lima: general de Bolívar” (1983), “Gilberto Freyre: uma biografia intelectual” (1993) e “Formação das ciências sociais no Brasil: da Escola do Recife ao Código Civil” (2008) são-me a pentalogia dos títulos chaconianos de predileção, nos quais alia o autor ao treino da síntese (tão germanófila) a veia crítica do ensaísmo (remontante à tradição historicista e herdeira de Kant, Hegel, das escolas de Baden e Freiburg, bem assim dos frankfurtianos).

“Prezado Marcos: [...] não sou nem nunca fui marxista e sim culturalista na linha não só de Max Weber, também de Werner Sombart e de Theodor W. Adorno, mais do que de Max Horkheimer e Jürgen Habermas, os quais também traduzi ao português no Brasil”, autodefiniu-se a mim, via e-mail, em julho de 2020«.

#mvf #marcosvasconcelosfilho #ensaismo #vamirehchacon

Perdeu Mané? As esquerdas e sua derrota nas comunicações - Uirá Machado (FSP)

 LULINHA , LULINHA   REQUISITA AS RUAS 

Direita domina redes sociais e deixa esquerda para trás na batalha digital

Uirá Machado

Folha de S. Paulo, 4/10/2023

Com um celular na mão e uma notícia (por vezes falsa) na cabeça, a direita dominou o universo digital nas últimas eleições e tem tudo para repetir a dose nas próximas.

Há diversas razões para explicar esse fenômeno. Entre elas estão o pioneirismo da direita nesse ambiente, a arquitetura das redes sociais, o acesso a financiamento, o tipo de conteúdo disseminado e o incentivo à monetização.

Segundo especialistas, se a esquerda –não só no Brasil— quiser virar esse jogo, precisará fugir das armadilhas lançadas pela direita e mudar sua forma de se relacionar com a tecnologia.

"A esquerda brasileira sempre teve dificuldades para lidar e compreender a comunicação. Isso continuou no cenário digital", diz o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Como reflexo disso, existem, de acordo com o sociólogo, menos canais de esquerda na internet (veículos, youtubers, podcasters etc), com alcance menor que os de vários grupos da extrema direita.

"Boa parte da esquerda ainda pensa com a cabeça do mundo da comunicação de massas, mas vivemos o cenário da comunicação distribuída. Não existe bala mágica. É preciso pensar diversas estratégias para diversos segmentos da sociedade", afirma Silveira.

E, embora o custo tenha caído para a disseminação de conteúdos pela internet, dinheiro ainda faz diferença, seja para criar estruturas profissionais de disparos em massa no WhatsApp, seja para impulsionar postagens e vídeos nas diversas plataformas.

A direita gasta muito para dominar as redes sociais e cultuar seus valores, espalhar sua visão de mundo, afirma Silveira. "A esquerda rebaixou sua pauta e se limita a divulgar sua pauta política. Não há um grande empenho na disputa ideológica."

Não se trata só de um gasto centralizado. Para a cientista política Camila Rocha, um dos aspectos que complicam a equação é a capacidade da direita de monetizar suas próprias atividades.

"A direita ganhou produtores de conteúdos que se portam como ativistas, mas eles estão nessa para ganhar dinheiro", diz Rocha, que é pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e colunista da Folha.

Ou seja, além dos robôs e das centrais de difusão de fake news, o ecossistema da direita ainda conta com influencers que se passam por agentes espontâneos e ideológicos, mas que na verdade descobriram uma forma de explorar economicamente a inclinação política de parte da população.

Esse tipo de iniciativa tem muito mais dificuldade de prosperar na esquerda, tanto por uma questão de perfil social –falta de afinidade com o capitalismo, com o empreendedorismo— quanto por aspectos técnicos ou culturais, por assim dizer.

É que o campo da direita, segundo Rocha, foi vanguardista na ocupação das redes sociais e outros fóruns do mundo digital. Com isso, dominou várias técnicas muito antes da esquerda.

A linguagem dos memes, os cursos voltados ao aprimoramento pessoal e as explicações didáticas sobre temas da política são alguns dos formatos que a direita usa melhor que a esquerda, diz a pesquisadora.

Mas não se diga que o problema está apenas na forma. Para Rocha, é preciso olhar também para o conteúdo: enquanto a direita se aproxima de quem já alimenta um sentimento de revolta contra o sistema, a esquerda não consegue apresentar um tom acolhedor.

"A esquerda, nos últimos anos, passou a ter um discurso muito abstrato, muito acadêmico, por vezes muito arrogante. Isso também acaba distanciando as pessoas, que às vezes não conseguem entender metade dos termos que estão sendo mencionados", afirma Rocha.

Se servir de consolação para a esquerda, trata-se de dificuldade que ultrapassa fronteiras. Para a socióloga Carla Montuori Fernandes, existe uma crise da democracia liberal em escala global, que se associa à falta de confiança de parte da população nas instituições políticas.

Diversos países assistiram à ascensão de líderes populistas que baseiam suas campanhas nas redes sociais, onde disseminam desinformação, negacionismo e discurso de ódio.

Ela cita como exemplos os Estados Unidos (Donald Trump), El Salvador (Nayib Bukele), Argentina (onde o candidato Javier Milei surpreendeu nas primárias) e Itália (Matteo Salvini, Giorgia Meloni), entre outros.

"No Brasil, especificamente, a emergência da extrema direita ocorre em um contexto de crise democrática, marcada pelo desgaste da imagem dos partidos tradicionais e lideranças políticas", diz Fernandes, que é professora da Unip (Universidade Paulista).

Ela afirma que, sobretudo em 2018, a campanha de Jair Bolsonaro (PL) soube explorar uma suposta ameaça relacionada ao imaginário comunista e ao bolivarianismo venezuelano, bem como os escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato.

Em 2022, diz Fernandes, a campanha de Lula (PT) buscou uma reação com uma estratégia capitaneada pelo deputado federal André Janones (Avante-MG), conhecida como guerrilha digital ou janonismo cultural.

"Janones pregou o mesmo comportamento da direita na internet, com divulgação de montagens, vídeos descontextualizados, uso de fake news, enfim, tudo pra conquistar o engajamento na rede", afirma a socióloga.

Para ela, contudo, a esquerda não deveria cair na armadilha de repetir a extrema direita nas redes. Embora Fernandes considere difícil disputar com quem recorre a narrativas agressivas, despolitizadas e mentirosas, ela acredita ser possível para a esquerda avançar de outras formas.

"A esquerda brasileira parece ter ficado para trás do domínio da lógica comunicacional digital. Lula é um homem analógico. É preciso aproximar o presidente do público com uma comunicação mais direta, menos formal, mais humanizada e menos formatada."

A cientista política Sabrina Almeida, professora da FGV ECMI (Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas), também aponta uma mudança de atitude entre as eleições de 2018 e 2022.

"Nós identificamos uma assimilação dessas técnicas de otimizar a visibilidade, de em alguma medida manipular a lógica algorítmica. Isso passa a ser uma estratégia de campanha, uma ferramenta de disputar a atenção e engajar as bases de apoio", afirma.

"Mas o que a gente também identifica é que não necessariamente isso diz respeito a uma maior democratização ou melhores práticas para o debate público", diz Almeida.

Daí por que o pesquisador João Cezar de Castro Rocha sugere um caminho que ele chama de contraintuitivo: "O campo da esquerda democrática não deve procurar empatar esse jogo. Na verdade, do que se trata é de não jogá-lo".

Professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ele diz que a extrema direita tem uma afinidade maior com a própria dinâmica das redes sociais, que tende a privilegiar conteúdos radicalizados ou que gerem reações como pânico ou medo.

"De um lado, uma visão binária e excludente do mundo. De outro, a utilização consciente de uma linguagem de grande violência simbólica como uma forma de obter visibilidade. Por fim, uma capacidade de monetização de todas as esferas do cotidiano, incluindo a política."

Além disso, diz o professor da Uerj, "a extrema direita consegue visibilidade no limite do cometimento de crimes, como calúnia, difamação, injúria".

Assim, para ele, é crucial usar instrumentos legais existentes para punir esses crimes e desmonetizar as redes de ódio.

"Jogar o jogo no modelo que a extrema direita criou será sempre uma derrota, mesmo em caso de vitórias ocasionais", afirma.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/10/direita-domina-redes-sociais-e-deixa-esquerda-para-tras-na-batalha-digital.shtml 

terça-feira, 3 de outubro de 2023

As primeiras relações diplomáticas entre a Rússia e o Brasil - Alexei Labetski, Embaixador da Rússia no Brasil (Folha de S. Paulo)

Pioneiros marcam relação Brasil-Rússia, que hoje faz 195 anos Esforços de Franz Borel e Georg Langsdorff continuam vivos para novos diplomatas  

Alexei Labetski, Embaixador da Rússia no Brasil 
Folha de S. Paulo, 3/10/2023

Neste 3 de outubro, celebramos o 195º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas russo-brasileiras. Ao longo desses anos, nossos povos e Estados percorreram um grande caminho: épocas e formas de governo mudaram, grandes turbulências foram seguidas por períodos de prosperidade econômica e cultural, mas a aproximação foi praticamente ininterrupta e, no fim, levou à criação de aliança estratégica russo-brasileira, em 2000.  

Enquanto no mar as mudanças de tempo dependem de causas naturais, nas relações entre as potências o quadro é claro, luminoso e calmo somente quando os esforços dos diplomatas, que visam a estabelecer o diálogo e buscar pontos de contato mútuo, são coroados de êxito. Sabemos muito sobre diplomatas famosos e figuras políticas do presente e do passado recente, mas os nomes dos pioneiros que estiveram nas origens das relações russo-brasileiras não são ouvidos com frequência. Portanto, gostaria de lembrar o trabalho de Franz Borel, o primeiro enviado russo ao Brasil. 

 No início dos anos 2000, historiadores russos da Universidade Estatal de São Petersburgo realizaram um grande estudo sobre a vida dele. Como Franz Borel não deixou memórias, os historiadores se basearam em documentos de arquivo e em reminiscências escritas de seus contemporâneos. Franz Borel, de família francesa, nasceu em Turim em 1775. Sua juventude passou na Itália: Borel teve a oportunidade de viajar bastante pela Europa e receber uma educação decente no auge do Iluminismo, um período de rápido desenvolvimento do pensamento científico, filosófico e sociopolítico.

 Em 1799, em Nápoles, Franz Borel tornou-se assistente do representante comercial russo e, em 1804, visitou pela primeira vez São Petersburgo, onde conheceu um talentoso diplomata russo, o futuro ministro dos Negócios Estrangeiros do Império Russo, conde Nikolai Rumiantsev. A visão ampla e as qualidades de um negociador de Borel chamaram a atenção do conde Rumiantsev, que, em 1804, convidou o jovem para integrar o serviço diplomático russo. 

Borel prestou considerável assistência ao conde Rumiantsev na criação da expedição de assuntos consulares, escrevendo várias obras importantes sobre a organização e as peculiaridades do funcionamento das instituições consulares, nas quais apresentou propostas avançadas sobre a inseparabilidade dos lados político, diplomático e comercial de suas atividades. Em 1809 Franz Borel foi nomeado chefe do serviço consular russo. 

 Os sucessos de Napoleão na Península Ibérica forçaram a corte real portuguesa a deixar a metrópole rumo ao Brasil em novembro de 1807, estabelecendo assim um precedente único de governar o império a partir do Novo Mundo. Em janeiro de 1808, todos os portos brasileiros foram abertos para navios estrangeiros, e São Petersburgo viu isso como uma oportunidade única para intensificar e expandir o comércio bilateral. No limiar de novos confrontos com Napoleão (a paz de Tilsit de 1807 com a França era muito frágil, mesmo no momento de sua assinatura), o Tesouro russo precisava de reabastecimento regular e volumoso, assim a tarefa de estabelecer comércio com Portugal e explorar o Brasil, confiada a Franz Borel, tornou-se uma questão estratégica. 

 O diplomata visitou pessoalmente Portugal, a ilha da Madeira (onde trabalhou por três anos) e o Brasil, estudando cuidadosamente as peculiaridades do funcionamento das rotas comerciais e das cadeias logísticas. Como resultado de sua pesquisa, Franz Borel preparou várias notas sobre o país e um projeto de uma convenção adicional ao tratado comercial russo-português, que enfatizava o papel especial do Brasil e propunha o estabelecimento de casas comerciais russas no Rio de Janeiro e em Salvador. A preparação para a implementação das ideias propostas por Borel levou muito tempo, de modo que ele pôde chegar ao Brasil como enviado russo somente em 1828, após a vitória da Rússia sobre a França napoleônica (1814) e a proclamação da independência do Brasil em 7 de setembro de 1822. Borel expressou repetidamente a necessidade de reconhecer o novo Estado –o ato correspondente foi entregue de São Petersburgo à corte no Rio de Janeiro em dezembro de 1827. 

No mesmo mês, o diplomata recebeu uma nomeação oficial, tornando-se o primeiro enviado do Império Russo ao Brasil. De julho a outubro de 1828, Franz Borel elaborou a minuta do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre a Rússia e o Brasil. Um procedimento burocrático complicado atrasou a análise do projeto em São Petersburgo, mas o diplomata, continuando sua missão no Brasil, não perdeu tempo. Trabalhando sozinho na missão, Borel não apenas lidou com tarefas políticas, representativas e administrativas, mas também, sem se poupar, trabalhou na criação de estudos exclusivos sobre administração pública, política externa e interna, geografia, comércio e agricultura. Durante o mesmo período, o diplomata ajudou a concluir a primeira expedição científica russa ao Brasil, realizada em 1821-1829 sob a liderança do famoso etnógrafo e naturalista russo Georg Langsdorff. 

As descrições geográficas e etnológicas exclusivas, juntamente com a coleção botânica reunida durante a expedição, foram transportadas para São Petersburgo graças ao trabalho meticuloso de Borel. Franz Borel tinha um amor genuíno pelo Brasil e levava a sério as reviravoltas políticas. Como monarquista convicto, criticava as recém-criadas repúblicas da América Latina e não queria que o Brasil sofresse o "destino" delas. A crise política de março-abril de 1831, em decorrência da qual o imperador Pedro 1º do Brasil, sob pressão de oposição, foi forçado a assinar uma abdicação em favor de seu filho e ir para Portugal, causou um golpe irreparável em Borel, piorando a saúde já fragilizada do diplomata. Em 23 de dezembro de 1831, o diplomata teve um derrame e, em 1º de janeiro de 1832, Franz Borel faleceu. 

 Muitos anos se passaram, e os esforços de Borel e Langsdorff –pioneiros dedicados à ideia da cooperação russo-brasileira– continuam vivos, apoiados pelo trabalho de novas gerações de diplomatas. A vida e o trabalho de Franz Borel são um exemplo importante para nós, pois ele provou, por meio de sua própria experiência, que nem a distância geográfica nem o fato de pertencer a tradições culturais diferentes podem se tornar obstáculos para a aproximação de duas grandes nações –o colosso do norte e o gigante tropical.