Mais de um ano atrás, mais exatamente em maio de 2014, eu respondia a um questionário de um estudante de curso de RI, de uma universidade brasileira, que me formulava uma série de questões pré-organizadas, com o objetivo evidente de fazer um trabalho de curso. Nem sei mais quem exatamente me contatou para submeter seu questionário. Minha ficha desse trabalho, abaixo indicada, apenas indica a universidade -- que me permito suprimir neste momento, pois isto não tem muita importância substantiva -- mas não o destino final desse trabalho, se foi ou não divulgado na ocasião, e o que resultou de minha contribuição.
Como acredito que o tema possa interessar um número maior de curiosos, e de interessados na carreira diplomática, mas sem qualquer pretensão de ter fornecido todos os elementos de informação a propósito da questão-título, pois se tratava apenas de um depoimento pessoal, permito-me postar aqui esse trabalho, com o que ele talvez ajude jovens vocacões a desabrochar (ou a murchar, depende). Meu itinerário pessoal, na vida acadêmica, e na carreira diplomática, é certamente atípica, e altamente NÃO representativa da média dos diplomatas, ou seja, ela não é típica dentro da carreira, e provavelmente tampouco dentro da academia. Não querendo ser exibido, acredito, ainda assim, que minha experiência possa trazer algumas luzes a um número maior de jovens.
Esta é a única razão pela qual eu posto esse depoimento aqui, sem realmente saber se ele foi, ou não, divulgado antes, por algum meio.
2608. “Carreira diplomática e formação”, Hartford, 19 Maio 2014, 9
p. Respostas a questões colocadas por aluna de RI do Xxxxxx, com base em
trabalhos anteriores sobre o mesmo assunto.
Ao final indico leituras suplementares, em meu site ou blog.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 16 de agosto de 2015
Carreira Diplomática e
Formação
Paulo
Roberto de Almeida
Respostas
a questões colocadas por estudante de RI [de uma universidade brasileira].
1) Como o senhor descreveria a sua profissão? O que faz um diplomata
exatamente?
PRA: A diplomacia constitui uma
burocracia de alto nível de qualificação técnica com ampla abertura para as
humanidades e o conhecimento especializado. Trata-se, simplesmente, da mais
intelectualizada carreira na burocracia federal, combinando aspectos da carreira
acadêmica, da pesquisa aplicada e da elaboração de decisões em ambiente
altamente competitivo, tanto interna, quanto externamente. Uma elite, como se
costuma dizer. Quanto às atividades dos diplomatas,
para descrevê-las seria preciso, primeiro, distinguir entre o diplomata na
Secretaria de Estado, ou seja, na sua capital, e aquele destacado para um posto
no exterior, numa embaixada permanente, numa missão junto a um organismo
internacional, ou em missão temporária, integrando uma delegação em alguma reunião
internacional.
Na Secretaria de Estado, o diplomata é um perfeito burocrata,
basicamente processando informações. O diplomata padrão cuida de alguns
assuntos, sobre os quais possui, ou pelo menos deveria ter, domínio completo e
competência reconhecida. Ele recebe um insumo – um telegrama de uma embaixada,
ou uma demanda de algum outro serviço – e transforma esse tema em algum tipo de
“instrução”, para a própria Secretaria de Estado, para outros órgãos do Estado
ou para a missão no exterior que suscitou o problema. Essa resposta pode sair
imediatamente ou requerer consultas a outras instâncias da Casa – divisões
políticas, isto é, geográficas, ou econômicas, jurídicas, administrativas, etc.
– ou de fora, algum órgão técnico do governo, por exemplo, ou até mesmo a
entidades da chamada “sociedade civil”. Se o assunto é sério o suficiente para
requerer uma decisão superior, ele é levado sucessivamente a escalões mais
elevados, eventualmente até ao próprio presidente da República, que assume
responsabilidade por todas as decisões maiores da política externa oficial, da
qual o chanceler (ou ministro de Estado das relações exteriores) é o executor.
O gratificante, para um diplomata, é ver que uma proposta sua,
emanada de seu “processamento” diligente, e inteligente, defendendo o que ele
considera como sendo o interesse nacional, foi convertida em política de Estado
e passa a ser defendida pelos representantes do país nos foros internacionais.
As dificuldades, pelo menos no plano “psicológico”, geralmente estão ligadas à
incapacidade de a instituição responsável pela política externa chegar a uma
posição clara, contemplando esses interesses – mas nem sempre é fácil
determinar onde está o interesse nacional –, ou então elas são derivadas do
fato de que a melhor posição possível, em determinadas circunstâncias, tem de
ser “contornada”, digamos assim, em função de alianças táticas ou de
“competição” com outros objetivos, nem sempre muito claros.
O trabalho pode ser dificultado pela ausência de recursos materiais
e humanos suficientes para executar o que se poderia considerar como a melhor
diplomacia possível em todas as frentes abertas ao engenho e arte de nosso
serviço exterior – ou os obstáculos propriamente “estruturais”, que são a
obstrução dos fins pretendidos pelas “nossas” instruções por alguma coalizão
mais forte no plano externo ou a insuficiente mobilização de aliados para a
nossa causa.
O diplomata na capital, ainda que fazendo parte de uma grande
burocracia, dispõe de mais margem de ação e de mais autonomia do que o
diplomata no posto, que tem necessariamente de seguir as instruções da capital.
Mas este último também participa do processo decisório e da elaboração de
posições, ao informar corretamente sobre as relações de força, sobre as
posições dos demais países, sobre as alianças táticas que estão sendo
desenhadas em torno de algum assunto e assim por diante.
Numa embaixada bilateral, que são os postos mais numerosos, as negociações
são talvez menos frequentes, mas aumenta o volume de informações produzidas
sobre o país em questão e cresce o esforço de defesa dos interesses brasileiros
em temas concretos, como comércio, investimentos, acordos de cooperação,
geralmente científica e tecnológica, visitas bilaterais, bem como atividades de
promoção cultural. Em determinadas instâncias
negociadoras, o diplomata pode até ficar, no terreno de batalha, sem instruções
precisas da capital quanto a que atitude adotar. Ele deverá portanto contar com
todo o seu tirocínio e conhecimento do problema em causa, de molde a poder
defender o interesse nacional da melhor forma possível. Na capital, ele deverá,
na elaboração de posições, mobilizar todos os recursos técnicos e humanos de
diferentes agências governamentais e alguns até privados, de maneira a extrair,
na postura negociadora, o máximo de benefícios para o país num determinado
contexto negociador. Em última instância, a matéria-prima essencial do
diplomata é a inteligência, e isso não depende de nenhuma fonte externa, mas de
sua própria capacidade em acolher todo tipo de conhecimento e colocar essa
informação a serviço de seu país.
Resumindo, o diplomata, em suas diferentes funções ligadas à
representação, negociação e informação, passa a maior parte do tempo
pesquisando, escrevendo, processando informações, se relacionando com outros
diplomatas, colegas e de outros países, bem como com funcionários de diferentes
serviços, com o objetivo básico de conceber instruções e depois defender
posições que reflitam o interesse
nacional de seu país. É uma função, sem dúvida alguma, “nobre” e
gratificante, mas também muito exigente e comportando alguma dose de
desprendimento, pois por vezes as condições de trabalho, ou as da vida em
família, não são as melhores possíveis (em alguns postos “de sacrifício”, por
exemplo, ou até mesmo na Secretaria de Estado, onde os salários são baixos e o
trabalho excessivo).
Ser diplomata não é simplesmente uma questão de
profissão; é uma vocação, uma questão de status,
quase que uma missão. Ser diplomata não é apenas uma questão de nomadismo, de
gostar de viajar ou de viver fora do país; ser diplomata é ser, antes de mais
nada, um ser com raízes na sua terra, um servidor público na acepção mais
completa dessa palavra, um funcionário do Estado, antes que de um governo e,
como tal, estar identificado com a nação ou com a sociedade da qual se emergiu,
na qual nos formamos e para a qual desejamos legar uma situação melhor do que
aquela que recebemos de nossos pais e antecessores. Ser diplomata não resulta,
simplesmente, de um treinamento ad hoc,
adquirido num desses cursinhos preparatórios de seis meses ou um ano, feitos de
muita decoreba, alguma simulação para os exames e uma leitura sôfrega da
bibliografia recomendada, por mais que ela seja ampla. Ser diplomata resulta de
uma preparação de longo curso, adquirida no contato constante com uma cultura
superior à da média da sociedade, no cultivo da leitura descompromissada com a
aquisição de qualquer saber instrumental, resulta da curiosidade atemporal por
todas as culturas e sociedades, passadas ou presentes e, sobretudo, da
contemplação ativa da realidade, daquilo que um dramaturgo brasileiro famoso,
Nelson Rodrigues, chamava de “a vida como ela é”.
Ser diplomata não é estar ou viver obcecado pela
diplomacia, fazer dessa atividade o seu último ou supremo objetivo de vida, a
sua única ocupação possível ou imaginável, sem outros afazeres ou hobbies. Ser
diplomata, ser um bom diplomata significa, também, fazer algo mais no seu
itinerário de vida, ter uma outra ocupação, uma distração, um divertissement,
ou hobby, outras obsessões e amores na existência, de maneira a poder enfrentar
a diversidade da vida, inclusive os altos e baixos da própria diplomacia,
quando descobrimos que nem todo diplomata é exatamente um diplomata, naquela
acepção que emprestamos ao termo. Ser um bom diplomata é se ver imaginando que,
“se eu não fosse diplomata, o que mais, exatamente, eu gostaria de ser?; de
onde mais eu poderia tirar motivos de satisfação, aonde mais eu poderia
colaborar, com pleno gosto, com a sociedade na qual me formei, no país onde
vivo?”. Se soubermos bem responder a esta questão, “o que eu faria se não fosse
diplomata?”, já se tem meio caminho andado para ser um bom diplomata...
Ser diplomata é saber se colocar acima das
paixões e dos modismos do presente, transcender interesses políticos
conjunturais, em favor de uma visão de mais longo prazo, afastar posições
partidárias ou de grupos e movimentos com inserção parcial ou setorial na
sociedade, em favor de uma visão nacional e uma perspectiva de mais longo
prazo. Significa, sobretudo, contrapor às preferências ideológicas pessoais, ou
de grupos momentaneamente dominantes, ou dirigentes, uma noção clara do que
sejam os interesses nacionais permanentes.
2) Quando iniciou sua formação acadêmica, definiu alguns objetivos e
metas de onde queria chegar? Suas expectativas e objetivos se firmaram na área
que está atuando?
PRA: Eu venho das Ciências Sociais, ou humanidades, no sentido lato, e acredito que ela
foi fundamental no ingresso e sucesso na carreira escolhida. Desde muito cedo
inclinei-me para os estudos sociais, com forte ênfase na história, na política
e na economia, complementados por uma dedicação similar a geografia,
antropologia, línguas e cultura refinada, de uma maneira geral. Sou basicamente
um autodidata e creio que isso facilitou-me enormemente o ingresso na carreira,
pois quase não necessitei de muito estudo para os exames de ingresso.
Cabe
ressaltar, porém, que eu nunca tinha pensado em ser diplomata, antes de ler um
anúncio no jornal anunciando o concurso para a carreira, em 1997. Até então,
minha perspectiva era puramente acadêmica. De certa forma, portanto, não fui eu
quem escolhi ser diplomata, mas talvez eu possa dizer que a profissão me
escolheu: desde muito cedo comecei a viajar, primeiro pelo Brasil, depois pela
América do Sul e, finalmente, ao completar 21 anos, decidi estudar na Europa,
por meus próprios meios e obtendo meus próprios recursos. Foi uma escolha que
me preparou para uma vida nômade e aventureira e nunca me arrependi de ter-me
lançado ao mundo em fase ainda precoce e sem sequer ter terminado o segundo ano
da graduação. Como minha intenção era estudar fora do Brasil, pode-se dizer que
realizei meu intento. Quando regressei ao Brasil, depois de quase sete anos na
Europa, eu já estava preparado, digamos assim, para tornar-me diplomata. Mas,
antes, não tinha pensado nisso: foi uma decisão de momento; de certa forma,
repito, “tropecei” com a carreira, se ouso dizer. Aliás, entre a decisão de
fazer o concurso (direto, no meu caso) e o ingresso efetivo, decorreram
pouquíssimos meses (três).
Na
carreira, tampouco planejei metas ou objetivos a serem alcançados: nunca fui
carreirista, no sentido tradicional do termo, e nunca me preocupei em ser
embaixador ou ocupar qualquer posto de distinção. O que sempre me seduziu foi a
profissão em si, a mobilidade geográfica, o conhecimento de novos países, a
possibilidade de estar sempre aprendendo, estudando, viajando. Sou basicamente
um estudioso, um observador da realidade, um “compilador” de informações e
análises e um escritor improvisado. Todo o resto me é secundário. O estudo me
absorve o tempo todo: estou sempre lendo, sempre escrevendo, e se possível
publicando. No plano acadêmico, nunca deixei de dar aulas, paralelamente ao
exercício da carreira. Trata-se de uma escolha pessoal, não de uma necessidade
de carreira, e pode até ser exercida em detrimento da carreira.
Mas
é o que gosto de fazer. Na carreira, alguns sacrifícios são inevitáveis. Sempre
enfrentei sacrifícios para consegui fazer tudo aquilo que tenho vontade, pela
simples razão que eu tenho vontade de ler tudo, o tempo todo, em qualquer
circunstância, assim como tenho vontade de viajar, de participar de atividades
acadêmicas e intelectuais, tendo ao mesmo tempo de me desempenhar em funções
atribuídas pela burocracia no meio de tudo isso. Ora, é praticamente impossível
conciliar tantas vontades, e ainda ser um marido perfeito, um pai de família
perfeito e outras coisas da vida social e relacional. Em síntese, esses outros
aspectos foram de certa forma sacrificados no empenho pessoal em ler, estudar e
escrever. Reconheço essas imperfeições, mas não se pode ter tudo na vida:
escolhas são inevitáveis, e as minhas estão do lado da leitura, do saber e da
escrita. São atividades nas quais eu me realizo plenamente. Em outros termos,
ninguém consegue integrar todos os seus interesses perfeitamente, e algum
aspecto (ou vários) acaba sempre sendo sacrificado; no meu caso, são horas de
sono, de lazer, de simples far niente,
e também certa negligência familiar, reconheço. Não pratico esportes, a não ser
caminhadas moderadas, já em idade madura. Pratico leituras, com alguma
intensidade, eu diria intensíssima, e sobretudo o gosto da escrita. No mais,
sou um pouco eremita...
3) Quais os momentos de sua carreira que você mais gostou e menos
gostou?
PRA: Todos, pois em todos e em cada um eu fiz aquilo que mais gosto: viajar,
muito, intensamente, ler, também intensamente, escrever, observar, aprender, em
toda e qualquer circunstância, mesmo em situações difíceis de abastecimento,
conforto, restrições monetárias ou outras. Toda a minha carreira me trouxe algo
de bom, mesmo em situações temporariamente de sacrifício. Nunca deixei de fazer
aquilo que mais gosto, e que já foi descrito anteriormente.
Numa
ou noutra situação, alguns postos apresentam dificuldades materiais, desconfortos
psicológicos, desafios razoáveis: por pequenos momentos, chega-se a desejar
voltar ao Brasil e retornar à rotina burocrática do cerrado central, onde os
atrativos são menores, mas também as surpresas. De toda forma, sempre
aproveitei os momentos de dificuldade para refletir e escrever, como sempre,
aliás.
4) Depois de suas experiências no ramo das relações internacionais,
como você se sente por ter escolhido essa área de atuação? Satisfeito?
PRA: Posso dizer que estou
satisfeito comigo mesmo, pois basicamente faço o que gosto, não necessariamente
o que talvez seja o mais útil ou necessário do ponto de vista da carreira, que,
como já ressaltado, é bastante burocrática no plano do seu exercício diário. Talvez eu devesse ter dedicado menos atenção aos livros e mais às
pessoas, mas essas são escolhas que fazemos deliberadamente, por opções
próprias, pensadas ou não. Quem tem a compulsão pela leitura e pela escrita,
não consegue acalmar-se a menos de satisfazer o seu “vicio”, daí o sacrifício
de outros aspectos da vida social que muita gente valoriza em primeiro lugar.
Por
outro lado, nunca, na carreira, fui obrigado a assumir obrigações que eu mesmo
não desejasse assumir, como por exemplo trabalhar em áreas para as quais eu não
me sinto talhado nem tenho a mínima vontade de experimentar: administração, por
exemplo, ou cerimonial, ou talvez ainda consular. São áreas nas quais eu
provavelmente me sentiria infeliz, pois o meu terreno natural são os estudos,
de qualquer tipo: geográfico, político, econômico, cultura, antropológico, no
sentido amplo. Todas as áreas funcionais de caráter geográfico, político ou
sobretudo econômico me servem perfeitamente. Aliás, nunca me pediram para
trabalhar em áreas nas quais eu não gosto, e se me pedissem eu não teria nenhuma
hesitação em recusar, mesmo podendo incorrer em alguma falta funcional ou ser
sancionado por isto. Sou um pouco anarquista, e não gosto de fazer o que me
mandam e sim o que eu decido e gosto de fazer.
Por
outro lado, jamais me pediram para escrever ou dizer algo que violentasse minha
consciência, e eu não hesitaria um segundo em recusar-me terminantemente, como
algumas vezes me recusei a defender determinados pontos de vista, que não eram
os meus. Por outro lado, jamais enfrentei a obrigação de escrever naquele
estilo clássico, ou chato, que é o diplomatês habitual, cheio de adjetivos
hipócritas e de pura formalidade vazia: não tenho espírito, paciência nem
disposição para esse tipo de enrolação. Costumo escrever o que penso, sem
qualquer concessão a formalismos. Sobretudo, não costumo produzir bullshits, muito frequentes nesta
profissão.
5) Que características un indivíduo deve ter para seguir a carreira
da diplomacia?
PRA: Um bom diplomata deve
ser capaz de fazer análises contextuais que envolvam
conhecimento histórico, embasamento econômico e situação política, ou seja,
desenvolver instrumentos analíticos e amplos conhecimentos que lhe permitem
situar qualquer problema (ou quase) em um contexto mais amplo, e daí extrair
alguns elementos de informação para a instrução de um processo decisório que
tenha em conta o interesse nacional. O diplomata deve servir antes à Nação do
que a governos, deve defender valores, e não se subordinar a teses momentaneamente
vitoriosas que por alguma eventualidade confrontem esses valores. Já escrevi
algo a esse respeito, e remeto a meu trabalho: “Dez
Regras Modernas de Diplomacia” (Chicago, 22 jul. 2001; São
Paulo-Miami-Washington 12 ago. 2001, 6 p., n. 800; ensaio breve sobre novas
regras da diplomacia; revista eletrônica Espaço
Acadêmico, a. 1, n. 4, setembro de 2001; link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/800RegrasDiplom.html).
Um
bom diplomata, portanto, deve ser um funcionário estudioso, dedicado, honesto
intelectualmente, esforçado no trabalho, um pouco (alguns acham que deve ser
muito) obediente, inovador, curioso, questionador – mas ostentando um ceticismo
sadio, não uma desconfiança doentia –, deve tentar aprender com as
adversidades, não ser preguiçoso (embora dormir seja sumamente agradável),
cultivar as pessoas (embora eu mesmo cultive mais os livros). Enfim, ele também
pode ser um pouco rebelde, pois a humanidade só avança com aqueles que contestam
as situações estabelecidas, desafiam o status
quo, tomam novos caminhos, propõem novas soluções a velhos problemas
(alguns novos também). No meio de tudo isso, não se deve levar muito a sério,
pois a vida é uma só – pelo menos para mim, que sou absolutamente irreligioso –
e vale a pena se divertir um pouco.
Agora
um pouco de depoimento pessoal.
Toda
a minha vida eu estudei o Brasil e o mundo, visando tornar o primeiro melhor,
num mundo que nem sempre é cooperativo. Registre-se que eu não pretendo tornar o
Brasil melhor para si mesmo, ou seja, uma grande potência ou qualquer pretensão
desse gênero, que encontro simplesmente ridícula. Eu pretendo tornar o Brasil
melhor para os brasileiros, ponto. Contento-me apenas com isso. Minha
perspectiva, a despeito de ser um funcionário de Estado, não é a do Estado. Não
pretendo trabalhar no Estado, para o Estado, com o Estado: minha perspectiva é
a dos indivíduos concretos, e meus objetivos são promover os indivíduos, se
preciso for contra o Estado. Não tenho nenhum culto ao Estado e nem pretendo
torná-lo maior ou mais poderoso, apenas mais eficiente para servir aos
indivíduos, não a si mesmo. Desespera-me essas pretensões nacionalistas
estatizantes, pois elas se fazem, em geral, em detrimento do bem-estar
individual da maior parte dos cidadãos.
Por
outro lado, não me considero patriota, no sentido corriqueiro do termo. Sou
brasileiro por puro acidente geográfico, pois poderia ter nascido em qualquer
outro país ou em qualquer outra época, por puro acaso. Gostaria de reiterar
esse ponto, com toda a ênfase que me é permitida. Não sou dado a patriotismos,
nem a chauvinismos ultrapassados e ridículos. A nacionalidade, repito, é um
acidente geográfico, ou talvez seja a naturalidade, da qual decorre a primeira.
Parto do pressuposto da unidade fundamental e universal da espécie humana. Sou
brasileiro, como poderia ter sido esquimó, hotentote ou pigmeu, e ninguém seria
responsável por esses acasos demográficos, nem mesmo meus pais, posto que
ninguém “fabrica” uma pessoa com base em especificações pré-determinadas. Somos
em parte o resultado da herança genética (em grande medida, talvez mais do que
o indicado ou desejável, mas talvez não a parte mais decisiva de nossas
personalidades); em parte o resultado do meio social e cultural no qual
crescemos, e das influências que experimentamos involuntariamente em diversas
etapas formativas de nosso caráter; e em parte ainda (o que espero mais
substancial ou importante), somos o produto de nossa própria formação ativa,
dos estudos empreendidos e dos esforços que fazemos nós mesmos para moldar
nossas vidas, nosso estilo de comportamento e nossa maneira de pensar, com base
em escolhas e preferências que adotamos ao longo da vida. Devemos sempre
assumir responsabilidade pelo que somos, e jamais atribuir ao meio ou a
qualquer herança genética determinados traços que podem eventualmente
revelar-se menos funcionais para nosso desempenho profissional ou intelectual.
Meus
pontos fortes, portanto, são minha capacidade analítica, meus conhecimentos acumulados
e meu devotamento à causa dos indivíduos, não dos Estados, e sempre tento
passar esses pontos à frente de qualquer outra consideração. Não hesito em
defender meus pontos de vista, mesmo contra meus interesses imediatos, que
poderiam recomendar uma acomodação com a situação presente – a lei da inércia é
uma das mais disseminadas na humanidade – ou com autoridades de qualquer tipo.
Não costumo fazer concessões a autoridades apenas para obter vantagens
pessoais, e acho essa atitude basicamente correta (ainda que a um custo por
vezes enorme no plano pessoal). Talvez seja teimosia de minha parte, mas
considero isso antes uma virtude, do que um defeito. Enfim, tendo concepções
fortes sobre determinados temas, me é muito mais fácil preparar e expor posições
do interesse do Brasil, com base em conhecimentos previamente acumulados, o que
me dispensa de pesquisas ou buscas em arquivos.
Devo
ter (e tenho) vários pontos fracos, sendo os mais evidentes essa introversão
habitual, essa preferência ao convívio com os livros, mais do que a convivência
com pessoas, uma certa arrogância intelectual (que reconheço plenamente),
derivada de leituras intensas e de uma imensa acumulação de conhecimentos e
informações – que em excesso podem ser prejudiciais, dizem alguns – essa
pretensão a saber mais do que os outros (o que em parte é verdade, pela simples
intensidade de leituras, mas os outros não gostam que se lhes confronte os
argumentos, obviamente). Por outro lado, não tenho nenhum respeito pela
hierarquia ou pela autoridade, o que muitos consideram um defeito (mas não eu,
dado meu anarquismo particular). Não sou de respeitar o argumento da
autoridade, mas apenas a autoridade do argumento, a lógica impecável, e a
decisão bem formulada, posto que empiricamente embasada, tecnicamente sólida,
com menor custo-oportunidade ou a melhor relação custo-benefício. Enfim, sou um
racionalista, e detesto impressionismos e subjetivismos, o que é muito fácil de
encontrar em quaisquer meios. Daí choques inevitáveis com determinadas pessoas
que pretendem mandar a partir de sua vontade exclusiva, não de um estudo
aprofundado de situação. Enfim, ser rebelde assim deve ser um defeito...
Paulo
Roberto de Almeida [Hartford, 19/05/2014]
Leitura
complementar:
1705. “Carreira Diplomática: dicas e argumentos sobre uma profissão
desafiadora”, Brasília, 27 dezembro 2006, 6 p. Consolidação e compilação de
meus trabalhos relativos à carreira diplomática e à profissão de
internacionalista, para atender às muitas consultas que me são feitas nesta
época. Colocada no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2006/12/669-carreira-diplomatica-dicas.html)
e incorporada ao site pessoal (www.pralmeida.org), seção “Carreira Diplomática”.