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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 1 de julho de 2012

Hong Kong (1): o ano da retrocessao a China (1997)

No dia 1ro de julho de 1997, quinze anos atrás, portanto, Hong Kong era retrocedida à República Popular da China, depois de 156 anos que o Reino Unido obteve essa colônia do então Império Qing, já decadente, e humilhado pelas canhoneiras imperialistas.
Abaixo a matéria do New York Times, de 1997, sobre sua inauguração como território autônomo dentro da RPC, um gesto que não agradou a todos os residentes locais.
Com efeito, quando visitei Hong Kong, em 2010, e conversei com os "hong konguianos" (ou que nome tiverem), senti dos mais jovens, cujos pais tinham vindo da China continental como refugiados do comunismo, que eles não se consideravam chineses, não queriam ser chineses e não pretendiam ceder um milímetro sequer de suas prerrogativas democráticas para tornar-se servos de uma das últimas ditaduras socialistas existentes na face da terra (as outras sendo, obviamente, a Coreia do Norte e Cuba, pois mesmo o Vietnã começa um exercício de liberalização política, algo ainda impensável nos resíduos do stalinismo neste nosso planetinha redondo, como diria alguém conhecido...).
Muito tempo antes, ou seja, uma década previamente à retrocessão, em torno de 1987, quando se estabeleceram as bases da transição para a soberania da RPC, e quando a glasnost e a perestrojka faziam tremer a União Soviética, eu escrevi um artigo prevendo que, ao cabo dos 50 anos então fixados para a preservação da autonomia do território, depois do seu retorno à soberania da RPC, seria, na verdade, a Hong Kong capitalista que finalmente "absorveria" a China socialista, e não o contrário. 
OK, me enganei, mas apenas porque a China socialista deu passos enormes em direção ao capitalismo, e não prevejo -- salvo a preservação de alguns bolsões de pobreza pelo interior, no Tibet e no Xinjiang, talvez -- muitas diferenças entre a antiga colônia inglesa e o continente chinês em 2047, quando essa autonomia teoricamente acaba (acredito que ela vai continuar, pois talvez o sistema político chinês, a despeito do capitalismo de mercado full scope, ainda não terá evoluído para uma plena democracia liberal).
Considero, por exemplo, sumamente errado o título do último livro de Giovanni Arrighi, grande sociólogo marxista, sobre essas transformações do mundo atual. Ele o chamou de Adam Smith vai a Pequim.
Nada mais errado. Adam Smith nunca deixou a Escócia (no sentido metafórico, claro, pois esteve em Oxford e achou uma porcaria, e também andou pela França), e nenhuma linha de seus escritos precisa ser mudada, hoje, para levar em conta o que está acontecendo na China.
Um título melhor para esse livro deveria ser, portanto, A China vai à Escócia, ou A China adota Adam Smith, ponto.
Pois é evidente, a despeito dos ingênuos que acham que a China é o que é, economicamente, graças ao seu "capitalismo de Estado". A China é o que é graças ao fato de seus dirigentes, ao terem reconhecido que a economia marxista é um completo fracasso, terem abraçado plenamente o capitalismo, tornando-se administradores do novo modo de produção (que na verdade não precisa de administradores, pois eles só atrapalham, e tomam o seu quinhão de corrupção). A dinâmica do capitalismo chinês é dada pelo setor privado, não pelo Estado, que faz o seu dever de Estado ao garantir um bom ambiente de negócios para capitalistas nacionais e estrangeiros.
Aliás, se querem a minha opinião, eu diria que a China, mesmo sem HK, é muito mais capitalista do que o Brasil, que se parece com um país socialista, ou  fascista, tal o grau de intervencionismo estatal na economia.
Com isso encerro meu longo comentário inicial, e deixo vocês com este primeiro artigo sobre Hong Kong, a ser seguido por outros.
Paulo Roberto de Almeida 

A New Leader Outlines His Vision for Hong Kong



By EDWARD A. GARGAN
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HONG KONG -- For the first time in Hong Kong's history a Hong Konger, Tung Chee-hwa, stepped before his people as their leader today, explaining in their own dialect of Cantonese how the onset of Chinese rule, and his stewardship of the territory, would change their lives.
In what may be the first test of China's pledge that Hong Kong would be allowed its own distinct form of government, the police allowed a demonstration by a group, the Hong Kong Alliance, that China has branded subversive. About 2,500 protesters marched, some carrying red signs saying 'Build a Democratic China' and 'Put an End to the Dictatorship in China.'
The marchers, by applying for a permit, had complied with rules in force under colonial administration; new rules restricting demonstrations had been laid down by the new legislature appointed by Beijing within hours of Hong Kong's reversion to China, and technically the marchers were not in compliance with those.
For most Hong Kongers, though, the demonstration was a sideshow to the speech by Mr. Tung, China's choice as Hong Kong's new chief executive, who for the first time outlined in detail how he planned to lead what has become a special autonomous zone of China. In a detailed review of the issues that consume Hong Kongers, Mr. Tung promised to solve the territory's housing problem -- 'the aim is to achieve a home ownership rate of 70 percent in 10 years,' he said -- as well as to reinvigorate the school system by improving teachers' qualifications and insure full day schooling at the primary level, introduce a mandatory retirement fund, and establish a government Commission for the Elderly.
'Like most people in Hong Kong,' he said, 'I am not a passer-by. Our home, our career, and our hope are here in Hong Kong. We have deep feelings for Hong Kong and a sense of mission to build a better Hong Kong.'
Then, Hong Kong's new leader laid out a vision of a Government far more involved in people's lives than the old colonial administration. Ranging from exhortations for grown children to live with their parents, to direct involvement in the housing market, to steps to build and encourage a high-tech industrial belt in the territory. Mr. Tung's governmental activism, bred from both a belief in a quasi-Confucian paternalism and the instincts acquired running a shipping conglomerate, suggests a new direction for Hong Kong, one more akin to Singapore, which he has said he admires.
Mr. Tung's address came on the first day of Chinese rule, a day marked by a blizzard of concerts, operas, martial arts displays, what was billed as the world's largest karaoke and a sky-scalding display of fireworks and laser lights, accompanied by the elegaic strains of Yo Yo Ma's cello.
Mr. Tung spoke just hours after the red flag of China was run up flagpoles across the territory, from the former British military compounds to the glittering five-star hotels on the waterfront. His address was a speech for everyone, ranging from grand themes of identity and values to daily life concerns. It was, Mr. Tung explained, a blueprint that begins charting a Hong Kong different in many ways from the one left behind by the British.
Mr. Tung made only a passing reference to the loss of democracy in Hong Kong, saying only that his government would 'resolutely move forward to a more democratic form of government in accordance with the provisions of the Basic Law,' the mini-constitution devised by Beijing for Hong Kong.
China's President, Jiang Zemin, also addressed Hong Kong's elite gathered at the new convention center, in a speech intended both to reassure Hong Kongers and to confirm his own stature as the man who oversaw the end of colonial rule.
Speaking in the Mandarin dialect of northern China, Mr. Jiang repeatedly told Hong Kongers that they were to govern themselves, that their fate was in their own hands, that Hong Kong, a place so utterly different from the rest of China, would chart its own course.
'Hong Kong will continue to practice the capitalist system,' declared Mr. Jiang, as the members of the new government, the territory's multitude of tycoons, its social elite and a bevy of foreign dignitaries listened, 'with its previous socioecoomic system and way of life remaining unchanged and its laws remaining basically unchanged while the main part of the nation persists in the socialist system.'
In an apparent test of the right to demonstrate, the group of protesters, organized by the Hong Kong Alliance, marched across through central Hong Kong this afternoon. Like a rally of democratic protesters who climbed the Legislative Council building just after midnight this morning, they were given enough leeway by the authorities so that no confrontation occurred.
The police seemed to handle the march in the same way they had in the past, even though new civil order legislation gives the government a legal means to block a demonstration on the basis of a threat to China's national security.
The march was relatively small by Hong Kong standards. 'Today we are here to fight for democracy within China,' said Lee Cheuk-yan, one of the organizers. 'We are fighting for democracy now as a part of China, from within China for the first time. I think that's very significant.'
Mr. Lee said he was 'warned' by the police that the march had exceeded the 2,000 demonstrators specified in its application, reaching what the police estimated to be about 2,500 marchers. Mr. Lee said he responded that the group had actually only reached about 2,300, not too much above the original number expected.
However, senior superintendent Gregory Lam, said the police had not issued a warning but had simply pointed out that the march had exceeded the number in the application and asked the group to try not to let the demonstration grow any larger.
'There was no problem,' Mr. Lam said. 'We estimated the crowd at 2,500. They thought it was about 2,300. We don't want it getting too large and we told them that.'
No effort was made to break up the march, which soon dissipated.
Mr. Tung, who has come under considerable criticism for imposing new constraints on civil liberties, has struggled in the last six months since Beijing named him chief executive to overcome skepticism here about his loyalties and motives.
Some of the questions surrounding Mr. Tung's autonomy from Beijing stem from China's bailout of his virtually bankrupt shipping company in the 1980's, a financial rescue he has never explained. Indeed, he has refused repeatedly to explain the details of that arrangement although he insists it was, in his words, a purely 'commercial' transaction.
As one friend of Mr. Tung put it, however, 'he knows very well that Beijing saved his company. They haven't forgotten and he hasn't either.'
He isalso immersed in the West, having spent six years in England. He went on to the United States where he spent a decade, working mostly for his father's shipping company. While there, and during his tenure as chairman of his shipping company, Orient Overseas (International) Ltd., he developed and cultivated contacts with a broad network of American and European business and government leaders.
His choice by China was ordained 18 months ago during a visit to Beijing when Mr. Jiang singled him out from a group of Hong Kong luminaries for a warm handshake.
Because of his seeming eagerness to please Beijing -- Mr. Tung immediately embraced China's demand that Hong Kong's elected legislature be abolished and that a range of civil liberties be curtailed -- many Hong Kongers have come to regard him as a puppet. Indeed, in the last opinion poll taken before Mr. Tung's investiture early this morning, the outgoing British governor, Christopher Patten, won an approval rating of 79 percent, 22 percentage points above that of Mr. Tung.
Today, Mr. Tung sought to speak as his own man, committed to his Chinese heritage while engaging the virtues of the West that Hong Kong has so eagerly absorbed.
'Every society has to have its own values to provide a common purpose and a sense of unity,' declared Mr. Tung. 'We will continue to encourage diversity in our society, but we must also reaffirm and respect the fine traditional Chinese values, including filial piety, love for the family, modesty and integrity and the desire for continuous improvement. We value plurality, but discourage open confrontation; we strive for liberty, but not at the expense of the rule of law; we respect minority views but are mindful of wider interests; we protect individual rights, but also shoulder collective responsibilities.'
'I hope,' intoned Mr. Tung, 'these values will provide the foundation for unity in our society.'
Recognizing that an erosion of more traditional family values has occurred to some extent in Hong Kong, Mr. Tung insisted that government 'will encourage families to live with their elderly members.'
Hong Kong's principal English-language newspaper, The South China Morning Post, argued that Mr. Tung must pay more attention to the territory's political needs. 'His first, and most critical, political challenge,' the paper insisted in this morning's edition, 'will be to restore the degree of democracy that existed before today's swearing-in of the Provisional Legislature,' the Beijing-appointed body that will now pass Hong Kong's laws.
Reaction to Mr. Tung's speech across Hong Kong ran the spectrum from enthusiasm to doubt. Cheng Suk-hon, a 48-year-old property manager, was on his way home on the subway and said that he was impressed and reassured. 'I did watch Mr. Tung on television this morning,' he said. 'I'm confident of him governing Hong Kong. He's the first chief executive of Hong Kong so he must set a good example. He calmed people's concerns. I think he'll keep his promises.'
But Kitty Ho, a college junior who has been studying in the United States and who was scampering toward the harborfront to watch the evening's fireworks, was less charitable. 'He can say anything he wants but he won't necessarily do it,' she said. 'He's been saying the same thing over and over again. I don't trust him because he's just saying what he's been told to do.'

Aventuras diplomaticas mediterraneas: ali no Paraguai, mesmo...

Ah, a falta que faz um horizonte marítimo, para ver um pouco mais longe, pensar que as consequências sempre vêm depois, como diria um grande filósofo carioca (ou gaúcho, não sei, mas ambos com litoral marítimo), que falta faz pensar por si próprio, sem seguir os outros, já que quem pensa pelos outros acaba tendo de suportar os interesses dos outros...
Paulo Roberto de Almeida
http://www.istoe.com.br/reportagens/218248_BARBEIRAGEM+DIPLOMATICA


BRASIL
|  N° Edição:  2225 |  29.Jun.12 - 21:00 |  Atualizado em 01.Jul.12 - 04:03

Barbeiragem diplomática

Atuação desencontrada do Itamaraty no Paraguai coloca a cúpula da diplomacia brasileira em xeque. O chanceler Antonio Patriota e o assessor internacional da Presi dência, Marco Aurélio Garcia, se desgastam no governo

Claudio Dantas Sequeira e Michel Alecrim
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DESENCONTRO
Ação do chanceler Antonio Patriota durante a crise
paraguaia foi questionada por setores do governo
A crise deflagrada pela queda do presidente Fernando Lugo extrapolou as fronteiras do Paraguai, ganhou contornos de conflito regional e ameaça se transformar numa grande dor de cabeça para o governo Dilma Rousseff. Não bastassem todos os questionamentos sobre um impeach-ment com ares de golpe branco, a ação atrapalhada do Itamaraty pôs o Brasil numa situação delicada com um vizinho estratégico e desgastou a cúpula da diplomacia. Setores do governo pressionam a presidenta Dilma Rousseff pela demissão do ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota. Os grupos contrários à permanência de Patriota espalharam nos últimos dias que Dilma até já teria cogitado nomear uma mulher para o lugar do chanceler: a embaixadora Maria Luiza Viotti, chefe da missão do Brasil na ONU, em Nova York. O primeiro a ser atingido pela crise diplomática foi o embaixador aposentado Samuel Pinheiro Guimarães, obrigado a renunciar ao cargo de alto representante do Mercosul – uma espécie de chanceler do bloco regional. Foi ele um dos responsáveis por influenciar de forma equivocada o Palácio do Planalto a apoiar medidas drásticas de retaliação ao novo governo paraguaio, como a suspensão do País do Mercosul até as eleições de 2013. Embora a sanção política tenha sido respaldada por Dilma, a presidenta impediu que as punições se estendessem às relações econômicas e comerciais. A ideia de Samuel Guimarães era isolar totalmente o parceiro comercial. Esse radicalismo fragilizou ainda mais a situação de Guimarães e tornou inviável sua permanência no cargo. Oficialmente, o diplomata deu diferentes versões para a saída, falou primeiro em “falta de apoio” e depois em “motivos pessoais”.
Conhecido por suas posições favoráveis aos governos chamados de bolivarianos, Guimarães havia sido indicado para o posto por sugestão do ex-chanceler Celso Amorim, hoje ministro da Defesa, de quem é amigo e cossogro – a filha de um é casada com o filho do outro. Ele também teve o apoio do assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia, com quem Dilma não andaria muito satisfeita, segundo assessores do Planalto. Garcia foi outro que propagou a tese de interdição do Paraguai tanto no Mercosul como na Unasul. Ele e Guimarães alimentaram também a ideia de aproveitar a suspensão do Paraguai para aprovar a entrada da Venezuela no Mercosul, uma tese controversa, sem base jurídica nos acordos regionais e desconsiderando o fato de que Assunção é depositária de todos os acordos do bloco.

As articulações atabalhoadas da cúpula da diplomacia irritaram a presidenta, que foi pega de surpresa com o anúncio do impeachment de Fernando Lugo durante a Rio+20. O embaixador brasileiro no Paraguai, Eduardo dos Santos, enviou, nos últimos seis meses, inúmeros informes alertando o Itamaraty do risco de deterioração da governabilidade no Paraguai, mas essas informações não sensibilizaram a cúpula. Nem Patriota nem Marco Aurélio Garcia acharam que o problema era sério. Pressionado por Dilma, o assessor internacional argumentou que já havia recebido 23 alertas de intenção de impeachment contra Lugo, desde sua posse em 2008. Em sua opinião, não havia razão para suspeitar que o último prosperaria. Garcia e Patriota sugeriram a Dilma atuar por meio da Unasul, para compartilhar a responsabilidade na crise. Até aí, tudo bem. O problema é que a missão de chanceleres sul-americanos que desembarcou em Assunção na sexta-feira 22, dia em que o Congresso iniciou o julgamento político, teve efeito inverso ao esperado. 
Com medo de que a interferência de outros países acabasse por inviabilizar o impeachment, deputados e senadores paraguaios aceleraram o processo. Na quinta-feira 21, dia em que souberam da ida de representantes da Unasul para o País, os parlamentares paraguaios decidiram não acatar o pedido de Lugo de abrir um prazo de três dias para apresentar sua defesa. Ficou estipulado o prazo de 24 horas. Ou seja, a ação precipitou o julgamento de Lugo, que teve resultado acachapante: foram 39 votos a favor e apenas quatro contra sua saída. Entre a abertura do impeachment e a homologação da decisão do Congresso pela Suprema Corte decorreram 30 horas. O vice-presidente Federico Franco, do Partido Liberal, assumiu rapidamente com a justificativa de “evitar uma guerra civil”. Nas ruas, com exceção de pequenos grupos, não houve reação popular. Muito menos as Forças Armadas reagiram. Mesmo assim, Lugo se disse vítima de um “golpe de Estado parlamentar”.
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EQUÍVOCO
Marco Aurélio Garcia (abaixo) argumentou que já havia recebido 23 alertas
de intenção de impeachment contra Fernando Lugo (acima), desde 2008.
E não haveria razão para suspeitar que o último prosperaria
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Golpe, propriamente, não houve. Mas a forma como se deu o processo indica uma ruptura democrática no país vizinho. Embora o julgamento político tenha observado as normas constitucionais, não há lei paraguaia que regulamente o tempo que o presidente teria para sua defesa. A própria peça de acusação deixa evidente que Lugo estava condenado de antemão, ao dizer que “todas as causas para o impeachment são de notoriedade pública, motivo pelo qual não precisam ser provadas, conforme o ordenamento jurídico vigente”. 
A maneira como se deu o impeach-ment revelou também que Lugo se tornou um presidente solitário, sem o mínimo de apoio político. Ex-bispo de esquerda, adepto da Teologia da Libertação, Lugo alcançou o poder com o apoio popular ante o desgaste do tradicional Partido Colorado, que governou o país por quase cinco décadas. Mas sempre foi considerado um “outsider”, sem experiência política e apoio dentro do Congresso. Para governar, precisou fazer concessões, aliar-se ao direitista Partido Liberal, e negociar com os colorados. Em pouco mais de três anos de mandato, o agora ex-presidente decepcionou. A reforma agrária, sua grande bandeira de campanha, avançou timidamente. Pouco foi feito também em relação ao crime organizado, ao tráfico de drogas e de pessoas – questões que afetam diretamente o Brasil. 
De acordo com setores do governo que pressionam pela saída de Patriota do cargo, a impaciência de Dilma com o ministro das Relações Exteriores não é de agora. Segundo essas fontes, desde abril, quando esteve nos Estados Unidos, a presidenta fez duras críticas à atuação de Patriota no governo. A presidenta evitou despachar com Patriota até a lista de laureados da comenda do Rio Branco, e desprestigiou a cerimônia. Já o problema de Marco Aurélio Garcia, para Dilma, é que ele falaria demais. Em março, ela o desautorizou publicamente depois que o assessor vazou que o Banco Central reduziria a taxa de juros. Na crise paraguaia, a presidenta mandou Garcia consertar suas declarações à imprensa e deixar claro que o impeachment de Lugo era um problema interno do Paraguai. Mas o estrago, mais uma vez, já estava feito.
“O Patriota fez o que deveria ter feito antes, quando viajou para o Paraguai. Talvez tenha ido tarde demais”, avalia o embaixador aposentado José Botafogo Gonçalves, vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Além da reação lenta, Botafogo acha que a crise deveria ter sido discutida no âmbito do Mercosul, não da Unasul, organismo novo e ainda disperso. Essa ação permitiu a interferência dos bolivarianos Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia), fazendo coro com o discurso inflamado da presidenta argentina, Cristina Kirchner. Estrago feito, a estratégia de Dilma agora é tentar restringir a crise ao Mercosul. Ela também colocou em campo o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, que passou a falar com a imprensa e foi enviado como representante do governo à 13ª Cúpula Social do Mercosul, evento paralelo à cúpula presidencial do bloco, em Mendoza, na Argentina.
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Foto: Eraldo Peres/AP Photo

Países âncora e países emergentes: comentários a uma pesquisa

Um texto elaborado como comentário, que acabou ficando quase tão grande quanto o original. Foi feito para um seminário da Fundação Friedrich Ebert, realizado em São Paulo, em 29/06/2005.
Países âncora e países emergentes: comentários a uma pesquisa
A propósito do texto do Prof. Dr.Andreas Stamm:
“Países emergentes e países âncora como agentes de parcerias globais:
considerações básicas para um posicionamento da política alemã de desenvolvimento”; (Deutsches Institut für Entwicklungspolitik);
por Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de junho de 2005
Ler o texto no blog Textos Paulo Roberto de Almeida (1/07/2012; link: http://textospra.blogspot.com.br/2012/07/paises-ancora-e-paises-emergentes.html).

A moeda unica europeia e a experiencia do Mercosul - artigo PRA (2005)

Mais um conjunto de respostas a um questionário, de 2005, que jamais foi divulgado, a não ser, talvez, algumas frases ou trechos desse texto tenham se integrado a tese de colega de carreira, que me formulou as questões abaixo.
Mercosul-União Europeia Brasília, 21 jun. 2005

A Moeda Única europeia e a experiência do Mercosul
QUESTIONÁRIO

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 22 de junho de 2005

1) Pergunta: até que ponto o euro poderá, de fato, representar um fator efetivo de estímulo ao crescimento, modernização e competitividade da economia européia? em que medida a ausência de progressos nas reformas pendentes em diversos pontos (harmonização do mercado financeiro e de capitais, liberalização do setor de energia, flexibilização da rígida legislação trabalhista, reforma dos generosos sistemas de previdência do setor público) poderá dificultar ou até mesmo obstaculizar aquela pretensão? o euro poderá vir a desempenhar o papel de catalisador da modernização da economia européia, de forma a possibilitar o cumprimento das ambiciosas metas traçadas durante a Cúpula de Lisboa, no ano 2000 (fazer da UE a região economicamente mais dinâmica do mundo até 2010)?;
            PRA: Numa fórmula sintética, se poderia dizer que o “rabo monetário” não pode abanar o “cachorro do desenvolvimento”. A moeda única é o complemento natural de um mercado único, mas ela não pode, por si só, criar as condições estruturais e institucionais para que a economia européia adquira, ou mantenha, condições de competitividade que só são dadas pela manutenção daquilo que os economistas chamam de “good fundamentals”. Ou seja, a Europa continua a não cumprir outras condições necessárias à dinamização de sua economia notoriamente debilitada e letárgica, notadamente no que se refere à flexibilização do mercado de trabalho. A moeda é, em princípio, neutra em relação às demais medidas de política econômica que devem ser adotadas para manter um ritmo adequado, e sustentável, de crescimento econômico. Uma “boa” moeda pode ser uma condição necessária para sustentar um processo desse tipo, e o euro parece constituir uma “boa” moeda, mas mesmo nessa condição ela não configura condição suficiente para impulsionar, por si só, esse processo.
2) Perguntas:
i-) até que ponto o euro poderá, de fato, vir a constituir uma ameaça à supemacia internacional do dólar?
            PRA: Não creio que o termo “ameaça” represente adequadamente uma situação de “competição” entre moedas concorrentes. A situação atual do dólar, que de certa forma já dura cinco ou mais décadas, é o resultado de um processo histórico que retirou a Europa das alavancas da política mundial, posição que ela tinha assumido no século XVII ou XVIII e que manteve até as primeiras décadas do século XX. Por incompetência própria e outros desastres auto-infligidos, a Europa conseguiu se diminuir a si mesma, ao ponto de tornar-se uma anã política e estratégica, ademais de uma potência secundária no plano da economia mundial. Isso foi ainda mais verdadeiro no capítulo monetário, em virtude de processos inflacionários corrosivos que minaram a credibilidade da maior parte das moedas nacionais dos países europeus.
O euro vem, de certa forma, recuperar um pouco dessa importância diminuída da Europa até a época do padrão ouro. Sendo de boa qualidade, ele poderá competir com o dólar, como elemento de troca, de reserva e instrumento financeiro internacional, mas isso depende inteiramente da confiança dos agentes econômicos em seu poder de manter essas qualidades, que de certa forma são também dependentes da presença econômica, das interfaces relacionais e da participação dos países detentores do euro nos grandes fluxos comerciais e financeiros da intedependência global.
O euro não é uma “ameaça” ao dólar, que ocupa um papel exagerado no sistema financeiro e monetário internacional, pelo simples fato de que ele tem, sim, de ocupar o seu próprio espaço, que corresponderia à fração da economia mundial que possui interface com os países detentores do euro, acrescida da parte de reservas internacionais que terceiros países estejam dispostos a manter nessa moeda, em função da manutenção percebida de seu poder de compra em períodos mais longos. O euro, de certa forma, está subrepresentado, mas ele ainda precisa provar que possui características de flexibilidade, estabilidade e liquidez que o dólar ostentou (por ausência de concorrentes sérios) no último meio século ou mais.

ii-) a trajetória futura do euro poderá dar razão aos críticos que apontam o paradoxo de uma “moeda sem Estado”, ressaltam o descompasso entre a política monetária (supranacional: BCE) e a fiscal (autonomia dos Estados nacionais) e assinalam inconsistências na “arquitetura institucional” da moeda única?
            PRA: De certa forma sim, pois essa inconsistência fiscal e monetária traz custos adicionais do ponto de vista das políticas setoriais nacionais e não resolve o problema da confiança fundamental dos agentes econômicos na manutenção dos “good fundamentals”.

iii-) a rejeição do referendo sobre o Tratado Constitucional da União Européia na França e na Holanda poderia pôr em xeque as perspectivas de avanços efetivos rumo a uma “união política” na UE e, em última instância, vir a ameaçar até mesmo a sobrevivência do euro? 
            PRA: Não creio. A rejeição tem a ver também com elementos de política interna e com outras ameaças percebidas ou reais ao “modo de vida” europeu, confortado por anos de crescimento sob o welfare state, e hoje confrontado aos riscos da globalização e da crise fiscal derivada de regimes sociais muito generosos. De toda forma, a união política é muito difícil e também tem custos econômicos, que os europeus não parecem ter medido adequadamente. Eles tem um regulacionismo excessivo, num momento em que a globalização pede mais flexibilidade, mas não querem conceder nesse ponto, pois isso significa passar a trabalhar mais por menos.

3) Pergunta: quais os efeitos esperados da ampliação da UE sobre a gestão da moeda única? aumentariam os riscos de ocorrência de choques assimétricos no interior da UEM?
            PRA: Provavelmente, mas não devemos exagerar esses efeitos políticos e econômicos sobre a moeda única. Os países que entram têm um peso econômico diminuto em relação aos que já integram a zona euro e seu impacto será limitado. O euro pode servir a 30 ou mais países sem problemas, desde que esses países não minem a credibilidade da moeda engajando práticas nocivas do ponto de vista dos principais indicadores macroeconômicos. A moeda é um instrumento, ela não cria ela mesma as condições para os choques, que só podem ocorrer se sua manipulação desafiar de modo exagerado as “leis de gravidade” do campo econômico “natural”, que são as regras de mercado (ou seja, de compra e venda de moedas e de ativos financeiros).


4) Pergunta: a seu ver, o Pacto de Estabilidade e Crescimento representa uma insuportável “camisa de força” para as economias européias ou um instrumento eficaz para assegurar a convergência e a sincronização dos principais indicadores macroeconômicos regionais? Algo semelhante deveria ser adotado no Mercosul? Que organismo seria responsável pelo enforcement das regras de um Pacto com essas características no Mercosul?
            PRA: Pode ser, de fato, uma “camisa de força”, mas apenas na medida em que a nova moeda precisa “provar” sua credibilidade, e ela só pode fazê-lo em condições mínimas de ortodoxia econômica. Como toda regra rígida, ela não é adequada em momentos de desequilíbrio sistêmico ou conjuntural, quando os governos precisam tangenciar certos riscos para acomodar pressões momentâneas. Difícil, da mesma forma, falar em “convergência e sincronização dos principais indicadores macroeconômicos regionais”, quando as dinâmicas nacionais respondem a impulsos setoriais (por vezes em grandes economias) que colocam o equilíbrio em países vizinhos sob stress. Essa “instabilidade” é inerente aos mercados em geral, e aos mercados capitalistas em particular e os países e o BCE têm de aprender a conviver com ela. Não há nada de dramático nos descompassos setoriais ou intra-regionais, desde que a mobilidade de fatores seja plenamente assegurada, o que parece ainda não ser o caso na Europa.
            Não creio que o Mercosul reuna condições para sequer começar a discutir um projeto de moeda única. Quando ele se constituir em mercado verdadeiramente unificado, e estamos longe disso, pode-se pensar em começar a discutir a unificação monetária, passando porém por vários anos de coordenação de políticas macroeconômicas. Um pacto similar, mas não semelhante, no Mercosul, valeria em seu mérito próprio e não como indutor ou estimulado de uma moeda comum, que não está em causa na presente conjuntura nem estará nos próximos anos.

5) Prgunta: como visualiza a estrutura e as regras de funcionamento de um eventual Banco Central supranacional no Mercosul? A “independência absoluta” do BCE poderia ser um precedente válido? Não haveria resistências políticas consideráveis por parte do estamento político no Brasil, que tantas dificuldades encontra para aceitar a idéia de uma “autonomia operacional” do BC nos moldes do sistema adotado pelo Banco da Inglaterra?
            PRA: Essa questão não figura e não figurará na agenda do Mercosul antes de muito tempo. Os bancos centrais nacionais precisam adquirir independência e funcionar nesse regime durante muitos anos, antes de sequer se pensar em fazer um “instituto” de coordenação das políticas macroeconômicas nacionais, tarefas que de resto podem ser cumpridas por órgãos intergovernamentais, como ocorre agora. A questão portanto não está na agenda, mas a da independência nacional dos BCs sim, é urgente, necessária e indispensável, a despeito de qualquer outro desenvolvimento no Mercosul, com mercado unificado ou sem ele.

6) Pergunta: não lhe parece aconselhável caminhar com prudência no processo de conformação de uma moeda única no MERCOSUL, mantendo o tema como meta de longo prazo no discurso oficial de Brasil e Argentina mas privilegiando, na prática, a obtenção de resultados concretos em relação a questões vistas como requisitos fundamentais para o êxito de qualquer iniciativa de unificação monetária? (convergência dos principais indicadores macroeconômicos, consolidação da União Aduaneira e da TEC, avanços concretos em relação à constituição de um autêntico mercado comum, introdução de mecanismos ou bandas cambiais para a flutuação administrada das respectivas moedas);
            PRA: Certamente. Essa disposição de caminhar em direção da moeda comum pelo motivo de que as políticas macroeconômicas nacionais não são boas é um argumento falho e capcioso, ainda que se possa conceber essa “camisa de força” soi-disant “supra-nacional” para impedir mais instabilidade no plano interno, algo como ter um vigilante do peso ou de bebidas alcoólicas em festinhas de obsesos ou de adolescentes. Os “vigilantes” podem até contribuir para evitar maiores desastres, mas eles não podem impedir os indivíduos de continuar sendo pecadores em suas próprias casas. Quando, e se, eles tiverem uma casa comum, sua eficácia será certamente maior. Creio que foi nesse espírito que foi concebida a proposta Giambiagi- Barenboim: impedir os dois grandes de continuarem se “emborrochando” de maneira irresponsável. Mas, certamente, a moeda é um instrumento inadquado para isso, sobretudo se se leva em conta que o Brasil não usaria essa moeda para parte substancial de suas transações externas, que continuariam atreladas ao dólar (e ao euro) durante bastante tempo ainda.


7) Pergunta: Quais as principais lições deixadas pela unificação monetária européia, no contexto da projetada adoção de uma moeda única entre Brasil e Argentina (ou no Mercosul, ou ainda no chamado “Mercosul ampliado”?)
            PRA: Primeira lição: libere de fato os fluxos de todo tipo e garanta a mobilidade de fatores. Segunda lição: garanta a estabilidade das moedas nacionais in any circumstances. Terceira lição: coloque os “banqueiros centrais” e os tecnocratas monetários e fazendários em contato entre si durante bastante tempo, mesmo que seja para jogar poker e não fazer nada. A convivência vai aumentar a confiança entre eles. Quarta lição: libere os movimentos de capitais assim que for possível e garanta a conversibilidade das moedas. Quinta e última lição: faça sempre o dever de casa bem feito, que os resultados aparecerão.
            Mas isso tudo é apenas pré-condição, não os fundamentos da moeda comum. Trata-se de pré-requisitos, indispensáveis. Numa segunda etapa, se for o caso, e se as circunstâncias econômicas o justificarem, pode-se pensar em estabelecer um regime monetário comum (que só pode ser o da flutuação administrada), talvez fazer um sistema monetário correlacionado (isto é, com banda interna dotada de variação mínima) e pensar em adotar metas monetárias e fiscais comuns. Mas, para isso se precisa ter a casa em ordem e possuir muitas reservas, bem mais do que os países dispõem hoje. Tendo em vista as dimensões relativamente reduzidas da integração na formação do PIB de cada país, não tenho certeza de que todo esse sacrifício valha a pena...


8) Pergunta: Está de acordo com a idéia de uma moeda única para o Mercosul (ou Brasil-Argentina)? Por quê? Em caso afirmativo, delineie um roteiro temporal aproximativo para a conformação de uma união monetária no subcontinente  (prazos, etapas, instituições)
            PRA: Em princípio não, mas não sou dogmático. Pode ser que no futuro ela seja justificada, isso é, se os territórios econômicos dos dois países forem verdadeiramente unificados e se as administrações econômicas funcionarem de modo concordante. Acho isso possível, mas nem por isso uma moeda comum se justifica. Ela representa uma tremenda renúncia de soberania e não creio que circunstâncias políticas, históricas, geográficas ou mesmo econômicas justifiquem esse abandono de soberania nacional. Não temos nenhum objetivo nacional, regional ou internacional (como ocorreu na experiência européia) que recomende essa via para alguma recuperação de poder e prestígio interno e externo. Não precisamos da moeda compartilhada, podemos sobreviver com a nossa pelo futuro previsível.  O próprio fato de se falar desde já em moeda comum me parece uma renúncia antecipada de soberania, que considero inaceitável nas presentes circunstâncias.

Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

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Perguntas Originais:

1-) A moeda única européia: a dimensão econômica: A rationale imediata por trás da iniciativa do euro diz respeito aos benefícios econômicos a serem auferidos pelos países que decidam aderir à União Econômica e Monetária. Costumam ser ressaltados, nesse sentido, quatro pontos:
a-) a tese segundo a qual a moeda única seria o corolário natural de um mercado comum pleno para bens, serviços, capitais e mão-de-obra (“one market, one money”);
b-) as vantagens decorrentes da adesão a uma união monetária, tais como preconizadas pelos formuladores da teoria das “optimum currency areas”: eliminação do risco cambial, diminuição dos custos de transação, redução da taxa de juros, sincronização dos ciclos econômicos, etc;
c-) a possível expansão adicional dos fluxos de comércio no interior do espaço monetário unificado, tese defendida em diversos trabalhos de Andrew Rose;
d-) a virtual eliminação do recurso às “desvalorizações competitivas” no interior da UEM, o que faria do euro um fator de estabilização no sistema monetário internacional.

Pergunta: até que ponto o euro poderá, de fato, representar um fator efetivo de estímulo ao crescimento, modernização e competitividade da economia européia? em que medida a ausência de progressos nas reformas pendentes em diversos pontos (harmonização do mercado financeiro e de capitais, liberalização do setor de energia, flexibilização da rígida legislação trabalhista, reforma dos generosos sistemas de previdência do setor público) poderá dificultar ou até mesmo obstaculizar aquela pretensão? o euro poderá vir a desempenhar o papel de catalisador da modernização da economia européia, de forma a possibilitar o cumprimento das ambiciosas metas traçadas durante a Cúpula de Lisboa, no ano 2000 (fazer da UE a região economicamente mais dinâmica do mundo até 2010)?;

            PRA: Numa fórmula sintética, se poderia dizer que o “rabo monetário” não pode abanar o “cachorro do desenvolvimento”. A moeda única é o complemento natural de um mercado único, mas ela não pode, por si só, criar as condições estruturais e institucionais para que a economia européia adquira, ou mantenha, condições de competitividade que só são dadas pela manutenção daquilo que os economistas chamam de “good fundamentals”. Ou seja, a Europa continua a não cumprir outras condições necessárias à dinamização de sua economia notoriamente debilitada e letárgica, notadamente no que se refere à flexibilização do mercado de trabalho. A moeda é, em princípio, neutra em relação às demais medidas de política econômica que devem ser adotadas para manter um ritmo adequado, e sustentável, de crescimento econômico. Uma “boa” moeda pode ser uma condição necessária para sustentar um processo desse tipo, e o euro parece constituir uma “boa” moeda, mas mesmo nessa condição ela não configura condição suficiente para impulsionar, por si só, esse processo.


2-) A dimensão política do euro : Além de seus objetivos econômicos, o lançamento da moeda única européia visava, claramente, à consecução dos seguintes objetivos de cunho estratégico ou geopolítico:
a-) dar um impulso renovado ao processo de integração europeu, mediante uma iniciativa que, além de virtualmente irreversível, deveria, idealmente, favorecer o aprofundamento da “ever closer union” dos países-membros da UE em outras áreas, entre as quais a coordenação de políticas fiscais (no limite, a instituição de um “governo econômico da UE”), a política externa e de segurança e a reforma do arcabouço institucional comunitário;
b-) representar, em uma perspectiva de médio e longo prazo, um desafio concreto à indiscutível hegemonia do dólar no sistema monetário internacional.

Perguntas:
i-) até que ponto o euro poderá, de fato, vir a constituir uma ameaça à supemacia internacional do dólar?
            PRA: Não creio que o termo “ameaça” represente adequadamente uma situação de “competição” entre moedas concorrentes. A situação atual do dólar, que de certa forma já dura cinco ou mais décadas, é o resultado de um processo histórico que retirou a Europa das alavancas da política mundial, posição que ela tinha assumido no século XVII ou XVIII e que manteve até as primeiras décadas do século XX. Por incompetência própria e outros desastres auto-infligidos, a Europa conseguiu se diminuir a si mesma, ao ponto de tornar-se uma anã política e estratégica, ademais de uma potência secundária no plano da economia mundial. Isso foi ainda mais verdadeiro no capítulo monetário, em virtude de processos inflacionários corrosivos que minaram a credibilidade da maior parte das moedas nacionais dos países europeus.
O euro vem, de certa forma, recuperar um pouco dessa importância diminuída da Europa até a época do padrão ouro. Sendo de boa qualidade, ele poderá competir com o dólar, como elemento de troca, de reserva e instrumento financeiro internacional, mas isso depende inteiramente da confiança dos agentes econômicos em seu poder de manter essas qualidades, que de certa forma são também dependentes da presença econômica, das interfaces relacionais e da participação dos países detentores do euro nos grandes fluxos comerciais e financeiros da intedependência global.
O euro não é uma “ameaça” ao dólar, que ocupa um papel exagerado no sistema financeiro e monetário internacional, pelo simples fato de que ele tem, sim, de ocupar o seu próprio espaço, que corresponderia à fração da economia mundial que possui interface com os países detentores do euro, acrescida da parte de reservas internacionais que terceiros países estejam dispostos a manter nessa moeda, em função da manutenção percebida de seu poder de compra em períodos mais longos. O euro, de certa forma, está subrepresentado, mas ele ainda precisa provar que possui características de flexibilidade, estabilidade e liquidez que o dólar ostentou (por ausência de concorrentes sérios) no último meio século ou mais.


ii-) a trajetória futura do euro poderá dar razão aos críticos que apontam o paradoxo de uma “moeda sem Estado”, ressaltam o descompasso entre a política monetária (supranacional: BCE) e a fiscal (autonomia dos Estados nacionais) e assinalam inconsistências na “arquitetura institucional” da moeda única?
            PRA: De certa forma sim, pois essa inconsistência fiscal e monetária traz custos adicionais do ponto de vista das políticas setoriais nacionais e não resolve o problema da confiança fundamental dos agentes econômicos na manutenção dos “good fundamentals”.

iii-) a rejeição do referendo sobre o Tratado Constitucional da União Européia na França e na Holanda poderia pôr em xeque as perspectivas de avanços efetivos rumo a uma “união política” na UE e, em última instância, vir a ameaçar até mesmo a sobrevivência do euro? 
            PRA: Não creio. A rejeição tem a ver também com elementos de política interna e com outras ameaças percebidas ou reais ao “modo de vida” europeu, confortado por anos de crescimento sob o welfare state, e hoje confrontado aos riscos da globalização e da crise fiscal derivada de regimes sociais muito generosos. De toda forma, a união política é muito difícil e também tem custos econômicos, que os europeus não parecem ter medido adequadamente. Eles tem um regulacionismo excessivo, num momento em que a globalização pede mais flexibilidade, mas não querem conceder nesse ponto, pois isso significa passar a trabalhar mais por menos.


3-) Os desafios da ampliação (“enlargement”) da UE: Em maio de 2004, a UE passou a contar com 25 membros. Em 2007, deverão ingressar no bloco a Romênia e a Bulgária e, possivelmente alguns anos depois, a Turquia. Há, ainda, diversos outros países europeus que deverão, em algum momento, formalizar pedido de abertura de negociações para uma eventual adesão à UE, entre os quais os Estados que integravam a ex-Iugoslávia (a Eslovênia já foi incluída na “first wave” da ampliação).

Pergunta: quais os efeitos esperados da ampliação da UE sobre a gestão da moeda única? aumentariam os riscos de ocorrência de choques assimétricos no interior da UEM?
            PRA: Provavelmente, mas não devemos exagerar esses efeitos políticos e econômicos sobre a moeda única. Os países que entram têm um peso econômico diminuto em relação aos que já integram a zona euro e seu impacto será limitado. O euro pode servir a 30 ou mais países sem problemas, desde que esses países não minem a credibilidade da moeda engajando práticas nocivas do ponto de vista dos principais indicadores macroeconômicos. A moeda é um instrumento, ela não cria ela mesma as condições para os choques, que só podem ocorrer se sua manipulação desafiar de modo exagerado as “leis de gravidade” do campo econômico “natural”, que são as regras de mercado (ou seja, de compra e venda de moedas e de ativos financeiros).


4-) Pontos polêmicos no atual arcabouço institucional do euro:

Gostaria de receber seus comentários sobre algumas questões atinentes à arquitetura institucional da moeda única européia que têm gerado forte polêmica, incluindo sua visão a respeito da eventual conveniência de introduzir mecanismos análogos para a implementação da projetada moeda comum do Mercosul:

a-) Pacto de Estabilidade e Crescimento : Introduzido basicamente por iniciativa da Alemanha, que visava a conter a “prodigalidade fiscal” dos países mediterrâneos, especialmente da Itália, e assegurar, em bases permanentes, o cumprimento dos parâmetros de Maastricht depois do lançamento da moeda única, o chamado Pacto de Estabilidade e Crescimento tem recebido, nos últimos meses, uma verdadeira saraivada de críticas. O Pacto é acusado de “engessar” a economia dos países europeus, “amarrando as mãos” das autoridades para adotar medidas fiscais anticíclicas destinadas a atenuar os efeitos da sensível redução da taxa de crescimento verificada no último biênio. O próprio ex-Presidente da Comissão Européia, Romano Prodi, chegou a declarar que a rigidez inerente ao cumprimento de suas regras fazia do Pacto um instrumento “estúpido”. Diversas propostas de reforma do Pacto têm sido apresentadas, incluindo sugestões para deixar maior margem de manobra em matéria fiscal para os países que obedecem aos parâmetros de Maastricht no tocante à relação dívida pública/PIB e para a utilização da chamada “golden rule” (diferenciação das despesas correntes dos gastos com investimento no cômputo da ratio déficit público/PIB).

Pergunta: a seu ver, o Pacto de Estabilidade e Crescimento representa uma insuportável “camisa de força” para as economias européias ou um instrumento eficaz para assegurar a convergência e a sincronização dos principais indicadores macroeconômicos regionais? Algo semelhante deveria ser adotado no Mercosul? Que organismo seria responsável pelo enforcement das regras de um Pacto com essas características no Mercosul?
            PRA: Pode ser, de fato, uma “camisa de força”, mas apenas na medida em que a nova moeda precisa “provar” sua credibilidade, e ela só pode fazê-lo em condições mínimas de ortodoxia econômica. Como toda regra rígida, ela não é adequada em momentos de desequilíbrio sistêmico ou conjuntural, quando os governos precisam tangenciar certos riscos para acomodar pressões momentâneas. Difícil, da mesma forma, falar em “convergência e sincronização dos principais indicadores macroeconômicos regionais”, quando as dinâmicas nacionais respondem a impulsos setoriais (por vezes em grandes economias) que colocam o equilíbrio em países vizinhos sob stress. Essa “instabilidade” é inerente aos mercados em geral, e aos mercados capitalistas em particular e os países e o BCE têm de aprender a conviver com ela. Não há nada de dramático nos descompassos setoriais ou intra-regionais, desde que a mobilidade de fatores seja plenamente assegurada, o que parece ainda não ser o caso na Europa.
            Não creio que o Mercosul reuna condições para sequer começar a discutir um projeto de moeda única. Quando ele se constituir em mercado verdadeiramente unificado, e estamos longe disso, pode-se pensar em começar a discutir a unificação monetária, passando porém por vários anos de coordenação de políticas macroeconômicas. Um pacto similar, mas não semelhante, no Mercosul, valeria em seu mérito próprio e não como indutor ou estimulado de uma moeda comum, que não está em causa na presente conjuntura nem estará nos próximos anos.

b-) Banco  Central Europeu:  critica-se o BCE, fundamentalmente, pelos seguintes motivos:
b.1-) falta de suficiente transparência de seus procedimentos (as atas das reuniões do Comitê Governativo não são divulgadas; não se sabe, portanto, como votam os Conselheiros do BCE) e a carência de maior accountability de sua cúpula, a qual, embora deva ser aprovada pelo Parlamento Europeu, não pode ser destituída por moção direta do PE (não está sujeita a moção de confiança);
b.2-) ênfase, por muitos considerada excessiva, na manutenção da estabilidade do nível geral de preços, objetivo consagrado como prioridade absoluta no Estatuto do BCE. Contrasta-se essa situação com o caso do Federal Reserve System, nos EUA, cujos Estatutos conciliam a busca simultânea do controle da inflação com a manutenção e crescimento do nível geral das atividades econômicas. Critica-se, ainda, o patamar de inflação anual utilizado como referência pelo BCE (“below but close to 2%”) como maximalista. f
Pergunta: como visualiza a estrutura e as regras de funcionamento de um eventual Banco Central supranacional no Mercosul? A “independência absoluta” do BCE poderia ser um precedente válido? Não haveria resistências políticas consideráveis por parte do estamento político no Brasil, que tantas dificuldades encontra para aceitar a idéia de uma “autonomia operacional” do BC nos moldes do sistema adotado pelo Banco da Inglaterra?
            PRA: Essa questão não figura e não figurará na agenda do Mercosul antes de muito tempo. Os bancos centrais nacionais precisam adquirir independência e funcionar nesse regime durante muitos anos, antes de sequer se pensar em fazer um “instituto” de coordenação das políticas macroeconômicas nacionais, tarefas que de resto podem ser cumpridas por órgãos intergovernamentais, como ocorre agora. A questão portanto não está na agenda, mas a da independência nacional dos BCs sim, é urgente, necessária e indispensável, a despeito de qualquer outro desenvolvimento no Mercosul, com mercado unificado ou sem ele.

5-) O “timing” adequado para a adoção de uma moeda comum no Mercosul:
Em ensaio de Fabio Giambiagi e Igor Barenboim sobre as lições do processo de unificação monetária na Alemanha, sugere-se que o cronograma para a eventual adoção de uma moeda única no MERCOSUL poderia ser abreviado, em função, entre outros aspectos, da “vontade política” reiteradamente manifestada pelas máximas autoridades no Brasil e na Argentina, das similaridades encontradas na estrutura produtiva dos dois países e do abandono do sistema de “currency board” no país platino

Pergunta: não lhe parece aconselhável caminhar com prudência no processo de conformação de uma moeda única no MERCOSUL, mantendo o tema como meta de longo prazo no discurso oficial de Brasil e Argentina mas privilegiando, na prática, a obtenção de resultados concretos em relação a questões vistas como requisitos fundamentais para o êxito de qualquer iniciativa de unificação monetária? (convergência dos principais indicadores macroeconômicos, consolidação da União Aduaneira e da TEC, avanços concretos em relação à constituição de um autêntico mercado comum, introdução de mecanismos ou bandas cambiais para a flutuação administrada das respectivas moedas);
            PRA: Certamente. Essa disposição de caminhar em direção da moeda comum pelo motivo de que as políticas macroeconômicas nacionais não são boas é um argumento falho e capcioso, ainda que se possa conceber essa “camisa de força” soi-disant “supra-nacional” para impedir mais instabilidade no plano interno, algo como ter um vigilante do peso ou de bebidas alcoólicas em festinhas de obsesos ou de adolescentes. Os “vigilantes” podem até contribuir para evitar maiores desastres, mas eles não podem impedir os indivíduos de continuar sendo pecadores em suas próprias casas. Quando, e se, eles tiverem uma casa comum, sua eficácia será certamente maior. Creio que foi nesse espírito que foi concebida a proposta Giambiagi- Barenboim: impedir os dois grandes de continuarem se “emborrochando” de maneira irresponsável. Mas, certamente, a moeda é um instrumento inadquado para isso, sobretudo se se leva em conta que o Brasil não usaria essa moeda para parte substancial de suas transações externas, que continuariam atreladas ao dólar (e ao euro) durante bastante tempo ainda.

6-) Quais as principais lições deixadas pela unificação monetária européia, no contexto da projetada adoção de uma moeda única entre Brasil e Argentina (ou no Mercosul, ou ainda no chamado “Mercosul ampliado”?)
            PRA: Primeira lição: libere de fato os fluxos de todo tipo e garanta a mobilidade de fatores. Segunda lição: garanta a estabilidade das moedas nacionais in any circumstances. Terceira lição: coloque os “banqueiros centrais” e os tecnocratas monetários e fazendários em contato entre si durante bastante tempo, mesmo que seja para jogar poker e não fazer nada. A convivência vai aumentar a confiança entre eles. Quarta lição: libere os movimentos de capitais assim que for possível e garanta a conversibilidade das moedas. Quinta e última lição: faça sempre o dever de casa bem feito, que os resultados aparecerão.
            Mas isso tudo é apenas pré-condição, não os fundamentos da moeda comum. Trata-se de pré-requisitos, indispensáveis. Numa segunda etapa, se for o caso, e se as circunstâncias econômicas o justificarem, pode-se pensar em estabelecer um regime monetário comum (que só pode ser o da flutuação administrada), talvez fazer um sistema monetário correlacionado (isto é, com banda interna dotada de variação mínima) e pensar em adotar metas monetárias e fiscais comuns. Mas, para isso se precisa ter a casa em ordem e possuir muitas reservas, bem mais do que os países dispõem hoje. Tendo em vista as dimensões relativamente reduzidas da integração na formação do PIB de cada país, não tenho certeza de que todo esse sacrifício valha a pena...

7-) Está de acordo com a idéia de uma moeda única para o Mercosul (ou Brasil-Argentina)? Por quê? Em caso afirmativo, delineie um roteiro temporal aproximativo para a conformação de uma união monetária no subcontinente  (prazos, etapas, instituições)
            PRA: Em princípio não, mas não sou dogmático. Pode ser que no futuro ela seja justificada, isso é, se os territórios econômicos dos dois países forem verdadeiramente unificados e se as administrações econômicas funcionarem de modo concordante. Acho isso possível, mas nem por isso uma moeda comum se justifica. Ela representa uma tremenda renúncia de soberania e não creio que circunstâncias políticas, históricas, geográficas ou mesmo econômicas justifiquem esse abandono de soberania nacional. Não temos nenhum objetivo nacional, regional ou internacional (como ocorreu na experiência européia) que recomende essa via para alguma recuperação de poder e prestígio interno e externo. Não precisamos da moeda compartilhada, podemos sobreviver com a nossa pelo futuro previsível.  O próprio fato de se falar desde já em moeda comum me parece uma renúncia antecipada de soberania, que considero inaceitável nas presentes circunstâncias.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de junho de 2005