Alguns meses atrás, sempre armado de minhas cadernetas Moleskine, indo e voltando de uma aula magna na UFPB, eu traçava no avião algumas notas sobre a corporação que é a minha, desde algumas décadas. Eis o que escrevi no voo de ida e de volta, sendo que antes transcrevo a ficha do trabalho:
3277. “O poder do Itamaraty: o conhecimento como base”, Em voo, Brasília-João Pessoa-Brasília, 28-29 maio 2018, 6 p. Comentários sobre a agenda de reformas do Brasil e suas implicações para a política externa e para o Itamaraty. Inédito.
O poder do Itamaraty: o conhecimento como base
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: comentários sobre as reformas no Brasil; finalidade: papel do Itamaraty]
Introdução
O Itamaraty não tem muito poder, ou quase nenhum. Poucos políticos miram o seu comando, uma vez que ele não dá votos, talvez apenas um pouco de prestígio para quem não deseja maiores cargos na trajetória política. Ele tampouco possui, longe disso, alguma força própria no sentido estrito, poder de polícia, de defesa ou de ataque, nada. Ele não tem, obviamente, nenhum poder econômico ou financeiro: dispondo de menos de 0,5% do orçamento geral do executivo, ele não pode sequer pensar em lançar grandes projetos por sua própria iniciativa, pois sem prévia aprovação das autoridades econômicas, necessitando ainda do empenho pessoal do presidente, nada pode fazer, uma vez que a burocracia do setor podaria qualquer aumento de despesa. Em outros termos, trata-se de um ministério fraco, desprovido de meios, de recursos, dispondo, apenas e tão somente, de algum controle sobre as informações que processa, a partir de suas antenas, que são os postos no exterior, aliás, considerados em número excessivo por essas mesmas autoridades.
O único poder de que dispõe o Itamaraty, mas que pode ser a sua força moral, é a arma do conhecimento, ainda que não se tenha certeza de que ele faça bom uso desse recurso valiosíssimo. A presente nota, de caráter subjetivo, pretende discutir o poder do conhecimento no plano mais amplo das políticas públicas em geral, com referência ao papel subsidiário do Itamaraty no processo de reformas de que carece o Brasil.
O que faz o Itamaraty?
A linguagem, o discurso, as negociações em torno de acordos, o entendimento recíproco no plano bilateral, a participação plena no contexto multilateral, constituem as principais ferramentas de trabalho do Itamaraty, ao longo de toda a sua história e no futuro previsível. Mas todos esses instrumentos representam apenas meios, e não seriam de grande ajuda no plano substantivo, se eles não estivessem apoiados, se não fossem embasados num conhecimento profundo do que é o Brasil e do que é o mundo, e de como evoluem e se relacionam essas duas entidades políticas desiguais, sobre como fazê-las interagir ao melhor dos modos possíveis, de maneira a lograr com que o Itamaraty possa contribuir de modo decisivo para que se alcance a grande obsessão nacional desde largo tempo: o desenvolvimento. Este representa bem mais do que o simples crescimento econômico: sociedade próspera, democracia estável e inclusiva, economia dinâmica, tecnologia avançada, sociedade relativamente igualitária, ou pouco desigual, respeitadora dos direitos humanos, uma nação integrada nos seus vários componentes étnicos, culturais, religiosos, respeitadora das diferenças e dos direitos das minorias e, sobretudo e principalmente, um Estado de Direito.
Alcançar o status de país desenvolvido tem sido o objetivo maior da sociedade brasileira desde sempre, como parece natural. Mas é forçoso reconhecer que nossas elites – todas elas, inclusive a corporação dos diplomatas – têm fracassado nessa meta nacional. Digo isto com certo constrangimento, pois parece que também pertenço a essas elites que fracassaram no atingimento do grande objetivo nacional, embora eu talvez possa me atribuir certa isenção de culpa. Nunca me julguei pertencer a qualquer tipo de elite, exceto, talvez, à elite do conhecimento, justamente. Sendo originário de uma família extremamente modesta, eu ascendi a essa elite social de renda e prestígio exclusivamente pela via do trabalho e da educação, isto é, por meio do conhecimento.
Se existe algum sentido mais elevado no trabalho amplamente burocrático de que nos ocupamos na maior parte do tempo ele deveria estar, precisamente, na produção de conhecimento especializado e instrumental, não apenas na busca, processamento e organização de conhecimento produzido não por diplomatas, mas por outras categorias de trabalhadores não manuais, os “trabalhadores intelectuais”. Pois bem, como se produz conhecimento original? Como fazer aportes inéditos, novos insumos ao trabalho diplomático, trazidos afanosamente para processamento na Secretaria de Estado ou comunicado a postos no exterior, que não seja a mera transmissão de conhecimento produzido alhures, nos meios de comunicação, nos informes e relatórios de organismos internacionais, nas consultas e expedientes de outros governos, nas comunicações de interlocutores, do país e do exterior?
AC e DC na diplomacia
A produção de conhecimento, da mesma forma como a de qualquer outro insumo ou mercadoria, requer agregação de valor pela via da mobilização de fatores produtivos. No caso dos diplomatas, trata-se de produzir conhecimento especializado e adaptado aos requerimentos do serviço exterior da nação. A finalidade última é, obviamente, a de subsidiar a política externa definida pelo governo: no caso dos regimes presidencialistas, aquela definida pelo presidente, auxiliado por seu ministro das relações exteriores; no caso dos regimes parlamentaristas, o presidente do Conselho, ou o primeiro ministro, e o seu auxiliar setorial.
A diplomacia profissional, ao subsidiar esses executivos na política externa, não só deve trazer-lhes as informações mais acuradas sobre as relações exteriores do país, sobre a política internacional e a economia mundial, como também produzir guias de ação para os itens mais relevantes da agenda de política externa desse país. Isso significa, muitas vezes, libertar-se das amarras do passado e inovar, num sentido que por vezes não é bem percebido pelos próprios diplomatas, acostumados que eles estão, como sempre foram, a seguir as ordens vinda de cima, que cumprem disciplinadamente, mesmo quando o senso comum pode revelar o contrário do que lhes é ordenado.
Tomemos, por exemplo, o caso da política externa brasileira que nos foi servida diligentemente nos últimos quinze anos, e talvez até um pouco mais, essa diplomacia que já foi classificada de “ativa e altiva”, mas que, salvo na superfície – como o término do apoio a ditaduras execráveis, na região e fora dela –, não mudou significativamente, talvez alguma coisa na forma e quase nada no conteúdo. Ora, o que faz o Itamaraty, o que faz a diplomacia brasileira, que não produz conhecimento novo sobre a política externa, para servir a um novo governo, animado por outros princípios? O que fazem todos os diplomatas profissionais que continuam disciplinadamente obedecendo aos mesmos padrões de política externa, sem questionar nada do que aconteceu na cronologia política desse período? Eu o divido, como na historiografia cristã, em duas eras bem definidas, uma AC e outra DC: Antes dos Companheiros e Depois dos Companheiros. O que fazem os diplomatas que não elaboram novos conceitos para a política externa brasileira, para subsidiar o presidente e o seu ministro da área?
Os novos conceitos da diplomacia: seria ela meramente acessória?
Por novos conceitos eu quero me referir, não a uma versão diferente da diplomacia “ativa e altiva”, de tão triste memória (em minha opinião), mas a uma diplomacia da inserção global do Brasil, como aparentemente estamos tentando fazer, com o ingresso pleno no Clube de Paris e a demanda de adesão à OCDE. Considero essas duas iniciativas não como um fim em si mesmo, mas como mero meio para implementar uma política externa de abertura realista, um regionalismo sensato – não aqueles arreganhos de liderança regional de que se jactava o Guia Genial dos Povos –, a continuidade da prática de um multilateralismo ponderado, focado em objetivos pragmáticos, não estrepitoso ou voluntarista, visando definir e estabelecer parcerias estratégicas no estrito limite dos interesses nacionais, não determinadas a priori por uma postura ideológica canhestra e anacrônica, caracterizada por um anti-imperialismo infantil e um anti-hegemonismo de fancaria. O que se visa é uma política externa podendo servir ao Brasil numa fase de transição para um outro tipo de política geral de governo, que será a do país nos próximos anos.
Por que digo isto? Porque vejo o Brasil como um país notoriamente fracassado em atingir o seu objetivo básico de desenvolvimento integrado, ou seja, com igualdade social. Vejo um país frustrado com os retrocessos que lhe foram impostos por uma política econômica esquizofrênica, não apenas inepta, no sentido operacional do termo, mas especialmente corrupta até a raiz dos cabelos, se é possível dizer. Tratou-se de uma administração econômica que nos levou à Grande Destruição a que eu já me referi em outros trabalhos. Não tenho nenhuma dúvida de que o Brasil é um país derrotado por suas próprias elites, irresponsáveis, patrimonialistas, prebendalistas, incompetentes e singularmente corruptas, fenômenos tradicionais desde sempre, mas que se agravaram a partir do momento em que uma organização criminosa tomou de assalto o Brasil.
Estabelecer novos conceitos para uma nova política externa significa, antes de mais nada, reconhecer essa realidade, a de um país fracassado, deteriorado em suas instituições, fragmentado e dividido pela ação criminosa e irresponsável daqueles que insistem em dividi-lo ainda mais, com suas propostas deletérias, equivocadas, enfim, anacrônicas do ponto de vista de um país que pretende se inserir na moderna economia global. Significa também reconhecer que a política externa é meramente acessória, secundária, não determinante na solução dos principais problemas que afligem o Brasil atualmente. Mas, o que é determinante no Brasil atual?
Para mim, trata-se de considerar a questão social como uma questão nacional, a prioridade das prioridades, a única que deveria mobilizar nossas energias de mandarins da República, de altos burocratas, de membros de uma elite privilegiada, que não quer ver-se dessa maneira. E qual é a tarefa básica nessa missão de fazer da questão social a mais alta prioridade da nação?
Parece-me, sem sombra de dúvida, que é o ajuste fiscal. Sem tergiversações, eu diria que esse ajuste deve sim ser feito com austeridade, a mais completa e corajosa austeridade. Não aquela que atingiria os mais pobres, mas a que precisa, desta vez, atingir os mais ricos. Os mais ricos somos nós, não necessariamente os diplomatas, mas os membros da magistratura, os da mais alta cúpula do Estado, os políticos em geral, os mandarins dos três poderes, nos três níveis da federação e os seus associados de carreira ou de circunstância. O ajuste fiscal deve figurar como tarefa básica no contexto da austeridade geral, e esta atingir primeiro o Estado, antes que a sociedade produtiva, os empresários e os trabalhadores, que são os que criam riqueza, renda, empregos. O Brasil precisa empreender um processo vigoroso, continuado, persistente, de reformas estruturais profundas, em todos os setores de sua vida pública, a começar pela Constituição, esse monstro metafísico notoriamente esquizofrênico em seus capítulos econômicos e sociais.
Essas reformas não devem incidir apenas e tão somente sobre aspectos deletérios, iníquos e irracionais de nossa presente organização institucional, como o sistema previdenciário e o assistencialista, a legislação laboral, as políticas setoriais protecionistas e subvencionistas (como na indústria e na agricultura). Elas devem se concentrar, sobretudo e principalmente, no peso do Estado na vida pública, na enorme e opressora carga fiscal, que atinge todos os brasileiros, especialmente os do setor produtivo, e inclusive os mandarins do Estado, que vivem dos recursos extraídos dos verdadeiros criadores de riqueza. Deve-se desde já revisar e eliminar do jargão corrente um conceito totalmente errado, o tal de “custo Brasil”, que só redunda em atribuir genericamente a culpa de nossas mazelas a todo o país, de maneira vaga. Não existe “custo Brasil”. O que existe é o custo do Estado brasileiro, que pesa como uma canga sobre os ombros dos brasileiros produtivos.
Caberia também empreender uma revolução educacional, que não é apenas uma reforma dos sistemas educativos, nos seus vários níveis, do pré-primário ao pós-doc, esse turismo de luxo para os detentores de sinecuras acadêmicas. A reforma da educação, na verdade, exigiria uma verdadeira revolução mental, mudança para a qual a maioria dos brasileiros não está provavelmente preparada para aceitar e empreender. O analfabetismo funcional atinge, ao que parece, os mais altos níveis da educação formal: os brasileiros, já se constatou, exibem uma enorme dificuldade para aceitar a simples lei da oferta e da procura, a coisa mais elementar que existe em economia, equivalente à lei da gravidade para a física.
A produção de conhecimento para uma nova política externa
A reforma da política externa não estaria imune a esse processo de revisão geral das políticas públicas, a começar pela revisão dos conceitos nos quais ela se tem apoiado nas últimas décadas. Isso passa, obviamente, por uma reforma dos métodos de trabalho do Itamaraty, mas não se resume a esse aspecto operacional. Essa reforma da política externa passa também por uma revolução mental, que nos liberte de certas suposições do passado recente e nos coloque num outro patamar de formulação e de execução da diplomacia profissional. Se as palavras máximas da nova política externa de inserção plena do Brasil na economia global são abertura econômica e liberalização comercial, então a diplomacia profissional precisa se preparar para suas novas tarefas.
Já indiquei, em trabalho recente sobre as relações econômicas internacionais do Brasil (em capítulo no livro de Jaime Pinsky, Brasil: o futuro que queremos, São Paulo: Contexto, 2018), os principais elementos que me parecem dignos de integrar uma nova agenda para as relações exteriores do país. Uma formulação paralela dos objetivos estratégicos do Brasil, em linha com esses objetivos e os princípios aqui traçados, encontra-se em curso de elaboração, em texto independente.
Se existe algum poder no, ou do, Itamaraty, esse poder está em sua capacidade, em nossa capacidade, de adaptar a política externa às necessidades mais prementes do país. Os diplomatas profissionais não devem ser mandarins desligados das carências mais sentidas pelos concidadãos mais humildes. Ou melhor: eles são mandarins, mas nem por isso devem se sentir, ou se julgar alheios aos problemas internos do país. A força moral do Itamaraty consiste em usar todo o poder derivado do seu conhecimento especializado para, como já disse alguém, transpor possibilidades externas ao terreno das capacidades internas. Para isso, o mero conhecimento das realidades externas talvez não seja suficiente; um profundo conhecimento do que é o Brasil, de sua história e de sua presente fase de transição, de seus problemas cruciais e dos remédios a eles associados, representa não apenas uma agregação de valor à diplomacia profissional, mas a condição necessária para a expressão de um poder próprio.
Paulo Roberto de Almeida
Em voo: Brasília, João Pessoa, Brasília, 28-29 de maio de 2018