quarta-feira, 28 de novembro de 2018

A Constituição Contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos - Paulo Roberto de Almeida

Nesta quarta-feira 28/11, o Mackenzie-SP realiza um evento para discutir os 30 anos da Constituição Federal, ao qual eu estava convidado, mas não posso comparecer por obrigações de trabalho em Brasília, eventos já programados.
Foi-me solicitado uma pequena intervenção via vídeo gravado, o que acabei fazendo em torno deste meu novo livro publicado, que reune justamente ensaios pré e pós-Constituinte por Roberto Campos.
Ao mesmo tempo aproveito para divulgar, abaixo, o Prefácio a esse livro, já disponível no mercado (sendo que eu sempre recomendo compras online, uma vez que as livrarias andam desaparecendo).
Eis o registro, e os respectivos links, das duas gravações que efetuei neste dia 27: 


1295. “Trinta anos da Constituição: evento no Mackenzie”, vídeo em QuickTime, de 6ms, com comentários sobre Roberto Campos e sua postura em face da CF-1988, remetendo à obra: Paulo Roberto de Almeida (org.), Roberto Campos, A Constituição Contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988 (São Paulo: LVM, 2018, 448 p.; ISBN: 978-8593751394). Postado no YouTube (link: https://youtu.be/ZDxNxFQvSUw). Gravação alternativa feita por câmera de vídeo, de menor duração (3ms), também carregada no YouTube (link: https://youtu.be/wpifxapYfBw); ambos disponíveis no Canal Pessoal do YouTube (link: https://www.youtube.com/user/paulomre/videos). Relação de Originais n. 3365.


Prefácio

Roberto Campos e a trajetória constitucional brasileira
Paulo Roberto de Almeida 

Artigos e ensaios de Roberto Campos

Parte I
Irracionalidades do processo de reconstitucionalização 
1.     Reservatório de utopias 
2.     Nosso querido nosocômio 
3.     A transição política no Brasil 
4.     A busca de mensagem 
5.     Ensaio sobre o surrealismo 
6.     Ensaio de realismo fantástico 
7.     É proibido sonhar 
8.     O radicalismo infanto-juvenil 
9.     Pianistas no ‘Titanic’ 
10.  Por uma Constituição não biodegradável  
11.  O “besteirol” constituinte, I 
12.  O ‘besteirol’ constituinte, II 
13.  O bebê de Rosemary 
14.  O culto da anti-razão 
15.  As soluções suicidas 
16.  Mais gastança que poupança 
17.  O direito de ignorar o estado
18.  O “Gosplan” caboclo 
19.  Dois dias que abalaram o Brasil
20.  Como extrair a vitória das mandíbulas da derrota
21.  Progressismo improdutivo 
22.  A ética da preguiça
23.  O escândalo da universidade
24.  A vingança da História
25.  As consequências não pretendidas
26.  Xenofobia minerária
27.  A revolução discreta 
28.  A marcha altiva da insensatez
29.  A humildade dos liberais
30.  O buraco branco 
31.  A Constituição-espartilho 
32.  Indisposições transitórias
33.  Os quatro desastres ecológicos 
34.  A Constituição “promiscuísta” 
35.  Desembarcando do mundo 
36.  A sucata mental 
37.  Loucuras de primavera 

Parte II
As utopias bizarras da nova Constituição
38.  Democracia e democratice 
39.  Nota Zero 
40.  Dando uma de Português 
41.  As falsas soluções e as seis liberdades 
42.  O avanço do retrocesso 
43.  Razões da urgente reforma constitucional 
44.  O gigante chorão 
45.  A Constituição dos miseráveis 
46.  Besteira preventiva 
47.  Saudades da chantagem 
48.  O fácil ofício de profeta 
49.  A modernidade abortada
50.  Brincando de Deus 
51.  Como não fazer constituições
52.  As perguntas erradas 
53.  Da dificuldade de ligar causa e efeito 
54.  O grande embuste... 
55.  O nacionalismo carcerário
56.  Da necessidade de autocrítica
57.  Piada de alemão é coisa séria... 
58.  O fim da paralisia política
59.  O anacronismo planejado
60.  A Constituição-saúva
61.  Assim falava Macunaíma 
62.  Três vícios de comportamento 
63.  Quem tem medo de Virgínia Woolf 
64.  O estado do abuso 
65.  Reforma política 

A Constituição contra o Brasil: uma análise de seus dispositivos econômicos
Paulo Roberto de Almeida 

Apêndice: Obras de Roberto Campos


Notas sobre o autor, o organizador e demais colaboradores


Prefácio 

Encontram-se aqui reunidos os mais importantes artigos que Roberto Campos escreveu sobre o processo de elaboração constitucional de 1987-88 e sobre a própria Constituição que dele resultou em outubro de 1988, agora oferecidos à leitura, ou à releitura, dos estudiosos da história constitucional brasileira, dos profissionais do Direito, dos interessados nessa matéria especializada ou até dos simples curiosos. Uma razão objetiva e uma outra subjetiva explicam a publicação deste livro que reúne artigos elaborados durante aproximadamente uma década – a partir de meados dos anos 1980 – ao longo da qual se situam, provavelmente, as verdadeiras origens dos atuais impasses, políticos e econômicos, com os quais se debate o Brasil: a primeira é obviamente o fato de que a Carta Magna está completando os seus primeiros trinta anos, embora ela possa ser considerada, praticamente, como já provecta; a segunda razão é que eu me sentia ainda tributário de mais uma homenagem ao homem que pensou o Brasil, uma vez que o pensamento de Roberto Campos esteve na origem e na conformação básica de minha própria trajetória intelectual
Devo ao diplomata e economista Roberto de Oliveira Campos o essencial de minha formação econômica, essencialmente feita através e por meio da leitura constante e atenta de seus muitos artigos de jornal, assim como de alguns outros ensaios, em suas antologias ou em obras coletivas, livros que ele mesmo redigiu – sozinho ou na companhia de seu amigo Mário Henrique Simonsen – ou aos quais Roberto Campos contribuiu, como autor convidado. Esta coletânea de artigos “constitucionais” agrega-se a uma primeira iniciativa que tomei, por ocasião do centenário de seu nascimento, em 17 de abril de 2017, sob a forma de um livro coletivo enfeixado exatamente sob um título que retoma os conceitos acima enfatizados: O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017). Mas a contribuição de Roberto Campos à minha formação, ainda que indireta, não se situou unicamente no campo da economia, pois os artigos que eu lia, ainda adolescente, nas páginas do Estadão, também se inseriam no âmbito das relações internacionais e no da política brasileira, no campo da análise comparativa do desenvolvimento econômico dos países latino-americanos e asiáticos, no terreno da cultura universal e, enfim, no da literatura, sem esquecer algumas pontinhas de latim aqui e ali, naqueles saborosos escritos. 
Roberto Campos pertencia a uma seleta tribo de pensadores liberais, categoria algo rara no panorama cultural do Brasil, à qual eu também gostaria de pertencer, após uma trajetória juvenil no marxismo acadêmico, se exibisse as mesmas qualidades intelectuais que fizeram do antigo seminarista convertido em diplomata um grande pensador dos problemas do Brasil, temática à qual venho igualmente me dedicando nas últimas quatro décadas, esforço já expresso em certo número de livros sobre as relações econômicas internacionais do Brasil, sua política externa e sua história diplomática, ademais dos temas de integração regional. Vindo, como Roberto Campos, de uma família modesta, sem no entanto passar por seminário, esforcei-me, ao longo desses anos, em estudar os mesmos problemas com os quais ele se debatia desde o início de sua vida profissional, movido provavelmente pela mesma ambição que ele tinha, que sempre foi a batalha para arrancar o Brasil da “pobreza corrigível” para colocá-lo numa situação de “riqueza atingível”. Um dos obstáculos a essa possível, mas difícil, transição pode estar situado nos muitos dispositivos antieconômicos inseridos na Constituição, agora balzaquiana (como ele diria), uma assemblagem heteróclita de disposições detalhistas e detalhadas que constrangem os empresários e trabalhadores do Brasil, ao terem de operar num ambiente dotado de muito pouca liberdade econômica.
Depois de visitar novamente sua trajetória intelectual naquela obra coletiva – mas na qual respondo por mais da metade do volume, em dois capítulos com mais de 160 páginas no total –, continuei a compilar ensaios de Roberto Campos sobre os mais diferentes problemas que atazanavam o grande estadista em sua luta incansável em prol de um outro Brasil, uma longa batalha reformista que o levava a confrontar-se, de forma incansável e muitas vezes angustiada, aos agentes do atraso, muitos deles seus colegas na diplomacia, no executivo (quando foi ministro) ou no parlamento, onde ele esteve nos dezesseis anos finais de sua vida. A presente coleção de argumentos inteligentes (e premonitórios) sobre o processo constituinte e sobre o próprio conteúdo da Constituição situa-se nessa etapa, com Roberto Campos já sexagenário, mas ainda tão lépido e tão vigoroso nos debates com seus pares quanto por ocasião de seus primeiros escritos sobre os grandes problemas do Brasil, nos anos cinquenta e início dos sessenta. Eles representam uma mostra de como Roberto Campos – como Raymond Aron, em outro contexto e sobre outros problemas – teve razão antes dos outros, de como ele antecipou as dificuldades futuras que o Brasil enfrentaria, ao equivocar-se tão amplamente na feitura do mais importante contrato social da governança nacional. 
Abrindo e fechando o volume, inseri nesta coletânea – gentilmente autorizada por seu filho Roberto Campos Jr. – dois ensaios de minha lavra: um primeiro, resumindo brevemente e introduzindo o teor das seis dezenas de artigos compilados, e o segundo analisando os mais importantes dispositivos econômicos da Constituição de 1988, bem como vários outros regulando direitos sociais, individuais e coletivos, dotados de grande impacto para a economia do país. Este segundo ensaio, um cuidadoso exame não complacente do texto constitucional (e das muitas emendas acumuladas desde o início), enfatiza o caráter distributivo da maior parte das generosidades concedidas aos cidadãos, ao arrepio da realidade econômica, pelos constituintes originais e pelos seus sucessores desde então. O ensaio finaliza por concluir que o modelo distributivo criado precocemente, mediante o contrato social elaborado em 1987-88, está inviabilizando uma taxa de crescimento mais vigorosa no Brasil, obstando, de fato, o seu desenvolvimento econômico e social.

Algumas considerações pessoais podem ser relevantes, ao apresentar este meu segundo livro do e sobre o grande diplomata e economista, um verdadeiro estadista, que atuou, sem o saber, como meu professor à distância, ao longo de quase toda a segunda metade do século XX. Elas são significativas, em vista da importante, embora ainda insuficiente, transição recente do Brasil, do estatismo mais arraigado, como foi o caso, durante todo aquele período, para um tímido, talvez prometedor, liberalismo na área econômica, postura que agora parece despontar em vários setores da sociedade brasileira. Não fiquei imune a esse processo, como agora revelo.
Não deixa de ser sintomático o fato de que, a partir de minha origem marxista juvenil, mas típica da academia brasileira nos anos 1960 – e talvez ainda hoje ela se conserve assim –, eu tenha transitado de uma postura política que não hesito em classificar como sendo a de um “opositor ideológico” a Roberto Campos, para assumir a condição de um admirador crítico de todos os escritos assinados por ele e, finalmente, a de um propagador de suas ideias, ainda hoje plenamente válidas para a modernização do Brasil. Tratou-se de uma longa evolução intelectual, desde a leitura da sua tese de mestrado sobre os ciclos econômicos defendida na George Washington University em 1947 – que Joseph Schumpeter, professor em Harvard, não hesitou em classificar como tendo nível de doutoramento, e que li em cópia carbono, na biblioteca da universidade, quando servi na embaixada do Brasil em Washington, entre 1999 e 2003 –, até os últimos artigos, publicados nos principais jornais do país, na “virada do milênio”, que foi justamente o título de sua última antologia de ensaios (Topbooks, 1998). Essa é provavelmente a mesma trajetória seguida por outros jovens, e adultos obviamente, em face da implacável, e convincente, argumentação racional que Roberto Campos exibia em todos os seus trabalhos intelectuais. Nelson Rodrigues, numa de suas frases também implacáveis, o chamava de “fanático da coerência e idiota da objetividade”, tal a lógica irretocável dos argumentos presentes nas centenas de ensaios conjunturais ou de análise conceitual dos problemas brasileiros, tanto quanto sobre o cenário internacional.
A despeito de continuar, durante vários anos mais, até praticamente o final do regime militar, considerando-me um “opositor ideológico” de Roberto Campos, eu nunca deixei de ler, desde o início da ditadura – que marcou o deslanchar de minha radicalização em direção da esquerda –, ao lado da literatura marxista, seus artigos semanais no venerável e “reacionário” Estadão, eventualmente acompanhados, no mesmo jornal, de ensaios traduzidos de Raymond Aron. Uma das colaborações coletadas na obra coletiva de 2017, O Homem que Pensou o Brasil, a de Paulo Kramer, trata justamente dessa trajetória paralela de Roberto Campos e de Raymond Aron, uma irmandade política, e espiritual, que eu adotei precocemente em minha própria trajetória do marxismo juvenil para o liberalismo eclético da idade madura. 
tournant decisivo nesse itinerário, ainda que progressivo e delongado, em direção da racionalidade econômica foi provocado por uma conferência que Roberto Campos efetuou, na Universidade Mackenzie de São Paulo, em 1966, em defesa do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), a que assisti como um simples e intrometido curioso, naquele ano ainda secundarista e “office boy” numa grande empresa multinacional da capital paulista. A despeito de continuar me opondo ao “arrocho salarial” decretado pelo governo militar, ao qual Campos servia como ministro do Planejamento – na verdade, um redutor logicamente necessário, estimado em 80% do índice de preços, no contexto da inflação declinante comandada por esse programa de governo –, e participante das muitas manifestações estudantis contra a ditadura “aliada ao imperialismo americano”, começou aí, pelos artigos de Roberto Campos nas páginas do Estadão, minha educação econômica, o que me levou, muitos anos depois, a aprovar incondicionalmente todas as propostas de uma lógica impecável feitas pelo diplomata-economista para modernizar racionalmente o Brasil, inserindo-o integralmente na economia internacional. 
A compilação cuidadosa – feita a partir de jornais e das antologias publicadas – dos muitos artigos e ensaios sobre temas constitucionais de Roberto Campos, agora retirados de um esquecimento de três décadas para serem novamente colocados sob o escrutínio dos pesquisadores contemporâneos, ou dos simples curiosos acerca da “arqueologia constitucional” brasileira, oferece uma prova a mais – para usar uma de suas frases favoritas – de que o Brasil perdeu mais essa oportunidade de se reformar racionalmente. Acompanhando de forma extenuante as grandes transformações já em curso, naquela época, na economia mundial, Campos ficava angustiado ao ver que o país se excluía voluntariamente de um processo de mudanças econômicas e tecnológicas em relação ao qual permanecemos ainda muito afastados, mais de três décadas depois de seus alertas premonitórios. Ele já tinha feito o mesmo em relação à famigerada Lei de Informática, aprovada no apagar das luzes do regime militar, como também tinha feito sucessivas advertências no tocante ao monopólio estatal do petróleo durante toda a sua existência, mesmo depois das reformas conduzidas na era FHC.
Minha introdução ao volume, explicitando essas críticas feitas ex ante por Roberto Campos, resumidas mediante frases e parágrafos extraídos dos ensaios aqui coletados, e minha análise final sobre o conteúdo econômico da Constituição que emergiu, ex post, dos trabalhos constituintes estigmatizados por Campos, constituem uma boa síntese daquilo que ele pensava sobre os descaminhos institucionais do Brasil. Esses dois trabalhos, no entanto, não substituem a leitura dos próprios artigos originais, constantes nas duas partes principais desta obra. Minhas críticas preservam, na maior parte dos casos, e reproduzem, em sua essência, toda a validade das críticas feitas em tempo real por Roberto Campos, com exceção daqueles dispositivos econômicos mais discriminatórios e xenófobos, e que foram oportunamente, mas apenas parcialmente, emendados no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (e depois nunca mais tocados nos três governos e meio do lulopetismo, que até agravou o quadro com o seu estatismo desenfreado). Roberto Campos ainda foi contemporâneo dessas pequenas mudanças retificadoras nos dispositivos mais esquizofrênicos do texto de 1988, mas foi poupado da desgraça de contemplar os piores retrocessos da era lulopetista.

Lidas agora a uma distância de mais de trinta anos, as vibrantes e repetidas críticas constantes desta “coletânea constitucional” de artigos de Roberto Campos – que podem ser chamados de “proféticos” – sobre o texto em elaboração da nova Carta, nos oferecem mais uma oportunidade de refletir sobre um problema ainda não resolvido no Brasil no campo de sua organização institucional: a ilusão, ou a utopia, de que o direito positivo, na sua generosidade distributiva, pode servir de substituto à dura acumulação de riquezas pelo trabalho dos agentes econômicos primários, empresários ou simples trabalhadores. A despeito de todas as frustrações acumuladas, já antecipadas nestes artigos de Campos, legisladores ainda tentam, de forma recorrente, criar riqueza a partir de simples emendas constitucionais, ou de pedaços de dispositivos legais que pretendem distribuir leite e mel com base numa cornucópia que eles imaginam sempre cheia pela Divina Providência.
Por isso mesmo soa frustrante constatar que os repetidos e extenuantes alertas por ele formulados, quanto à inconsistência dos benefícios propostos sem qualquer suporte na realidade econômica, guardam atualidade três décadas depois. O tempo de Roberto Campos ainda não passou: suas ideias e propostas ainda estão à nossa frente, pois a maior parte delas nunca foi implementada. A leitura destas páginas indicará quais foram estas ideias e propostas, que permanecem inteiramente válidas, infelizmente não sabemos por quanto tempo ainda: o Brasil é um país duro de reformar, provavelmente pela ação combinada de capitalistas promíscuos, políticos oportunistas e um exército inteiro de mandarins oficiais, os integrantes do “estamento burocrático” identificado 60 anos atrás por Raymundo Faoro, corporações de ofício que atuam em benefício próprio ao abocanhar, com cruel voracidade, nacos cada vez mais amplos dos recursos do Tesouro Nacional. 
Vale a pena ler, ou reler, estes ensaios premonitórios, talvez melancolicamente persistentes em seus diagnósticos precisos e prescrições não seguidas pelas gerações que se seguiram até aqui. Aqui figuram mais de seis dezenas de pérolas do passado, tristemente atuais em suas recomendações de reforma interna e de inserção global.  Contrariando uma de suas frases mais famosas, não podemos perder mais uma oportunidade de perder a oportunidade de conhecer o que Roberto Campos tinha a dizer sobre a ordem econômica que deveria presidir ao progresso do Brasil.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de agosto de 2018

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Artigos de Roberto Campos sobre a CF-88: livro de Paulo Roberto de Almeida

Constituição de 1988: posição de Roberto Campos (27/11/2018) - Paulo Rob...

Nacionalismo, patriotismo e interesse nacional - Rubens Barbosa (OESP)

NACIONALISMO, PATRIOTISMO E INTERESSE NACIONAL
Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 27/11/2018
As comemorações pelo centenário do fim da guerra 1914-18, em Paris, reforçaram minha convicção de que estamos vivendo tempos estranhos e um momento de grande complexidade e incerteza no cenário internacional com consequências para todos os países.
Foi curioso ver pequenos detalhes protocolares desencadearem reações políticas, como no caso da Servia, que se sentiu insultada pela baixa posição que seu presidente ocupou em relação ao Kosovo, colocado mais próximo ao presidente francês pelo cerimonial. Afinal, foi em Sarajevo que tudo começou. Notei a ausência do Brasil, convidado pela primeira vez em um encontro dessa magnitude e que seria uma oportunidade para mostrar que nosso pais existe, tem presidente, e foi parte das duas guerras (Quando estava como embaixador em Londres, participei com o presidente FHC das celebrações do dia da Vitoria da Segunda Grande Guerra (1945) com o Brasil sendo convidado pela primeira vez). 
Todos puderam assistir a deliciosa coreografia do poder entre Putin e Trump, que chegaram em limusines cercadas de seguranças, enquanto os outros 82 chefes de estado e de governo saíram juntos do Palácio Elysée em ônibus especiais. Os lideres norte-americano e russo esperaram, escondidos, que todos tomassem seus assentos para assumirem seus lugares ao lado do presidente Macron. Putin, mais experto, esperou para chegar por último...
O presidente Macron, em discurso na solenidade, ao invés de saudar a presença dos lideres mundiais, de ressaltar a paz e a superação da guerra fria entre EUA e Rússia, resolveu chamar a atenção para as ameaças atuais que colocam a estabilidade internacional de novo em perigo, põem em risco a democracia e dividem os países ocidentais. Observou que os pilares que sustentam os regimes democráticos são mais importantes que a unidade transatlântica e nesse contexto mencionou que o patriotismo é mais importante que o nacionalismo. Essa afirmação tinha endereço direto, não só aos grupos de direita radical na França como, de maneira pouco sutil, era uma critica direta aos que dizem colocar os interesses de seus países em primeiro lugar e que a consequência disso para os outros pouco importa. Ao qualificar o nacionalismo como traição ao patriotismo, exagerou, porque o termo na França é associado à extrema direita, enquanto em outros países a expressão se renova e tem conotação valorizada, como, por exemplo, na Irlanda e no Canada. 
 A tensão estava criada. Não era a primeira vez que Macron, depois de ter sido um amigo muito próximo, divergia publicamente do presidente dos EUA. As boas relações pessoais se deterioraram devido às decisões de Washington de abandonar o Acordo de Paris sobre clima e pelo término do programa nuclear com o Irã. E também por estimular o protecionismo (ameaça de guerra comercial com a China), criticar o multilateralismo e de tornar difícil a solução de dois Estados para o conflito Israel-Palestina.
Não foi surpresa a reação de Trump ao anfitrião, mas sim sua rapidez e virulência. Na tarde do dia 11, Macron organizou o Forum da Paz com o objetivo de defender o multilateralismo, um dos pilares da nova ordem internacional depois de 1945 com o surgimento da ONU e do GATT/OMC, que os EUA ajudaram poderosamente a criar e agora procuram solapar. Todos os Chefes de Estado compareceram com exceção de Trump, que preferiu visitar sozinho cemitério militar americano na França. Além disso, desde a véspera, havia iniciado uma troca de tweets virulentos com Macron, trazendo a público a crescente rivalidade entre os dois lideres em um momento de aumento das tensões Transatlânticas. Apoio de Trump aos movimentos populistas-nacionalistas na Europa, despesas militares na OTAN, criação de exército europeu, proposto por Macron-Merkel, e até ameaça velada à exportação de vinhos franceses para os EUA entraram na inusitada altercação presidencial. Ficou evidenciado o divórcio entre Trump e a Europa, em especial com as instituições supranacionais e multilaterais.
Cabem alguns comentários sobre o que se falou durante a cerimônia de Paris. A critica de Macron ao nacionalismo está associada à direita populista de Marie le Pen, que, sob o pretexto de defender a Nação, defende posições radicais contra o movimento de unidade europeia. Por outro lado, Trump não está preocupado com a unidade da Europa (agora ameaçada com a saída da Grã-Bretanha), mas sim com a China, e não quer continuar com os altos gastos militares na OTAN. Por outro lado, talvez Macron não soubesse, mas a palavra patriotismo é pouco usada nos EUA, talvez por razões históricas, além de ter alí um sentido algo pejorativo. Ao elogiar o patriotismo - com significado positivo nos países de língua latina - Macron fez Trump se lembrar de frase atribuída a Samuel Johnson, “o patriotismo é o ultimo refúgio do canalha”. A oposição às instituições supranacionais e multilaterais representam um viés característico da superpotência norte-americana, agora exacerbado por Trump.
Qualquer semelhança disso tudo com alguns aspectos da discussão hoje no Brasil, em especial depois da eleição e da escolha do futuro ministro do exterior não é mera coincidência.
A cerimônia parisiense mostra igualmente como é perigoso para qualquer pais, nos tempos incertos em que vivemos, declarar alinhamentos e afinidades definitivas baseados em laços pessoais. Como aprendi nos meus primeiros anos no Itamaraty, os países (e os líderes) não tem amigos, tem interesses. O realismo e o pragmatismo na ação diplomática e comercial deverão prevalecer sobre vagos anseios conceituais, como o anti- globalismo e a defesa do Ocidente, de inspiração trumpista, bem assim sobre atitudes ideológicas em relação a China. 
O interesse nacional, acima de países, grupos ou partidos, é a prioridade da politica externa.
Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Emb. Lindgren Alves: A década das Conferências (1990-99); 30/11, Sala C, 15hs

A década das Conferências (1990-99)
Palestra-debate: Emb. Lindgren Alves; dia 30/11, Sala C, 15hs


A Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) têm o prazer de convidar para a palestra-debate da série “Diálogos Internacionais” do IPRI, com o embaixador José Augusto Lindgren Alves, “A década das Conferências (1990-99), diálogo por ocasião do lançamento da 2a edição do seu livro”. 
O evento será feito na sala C, passarela do Anexo II do Itamaraty, no dia 30 de novembro, às 15h00.
O livro encontra-se disponível na Biblioteca Digital da Funag: 

Winston Churchill: um estadista que faz falta - Paulo Roberto de Almeida

Winston Churchill: um estadista que faz falta 

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: entrevista áudio para o Instituto Millenium; finalidade: caráter didático]
  
Tendo recebido, depois de um pedido precedente do Instituto Millenium, no caso da líder britânica Margaret Thatcher, uma nova demanda para entrevista gravada, solicitei um roteiro de questões a serem tratadas. Recebi os interrogantes abaixo, que como sempre, de acordo com minha proverbial prolixidade, respondo amplamente, mas de forma livre, e sem maiores esforços de preparação sistemática. Aos interessados no exercício precedente, indico aqui o meu registro da primeira entrevista: 
3356. “O que Margaret Thatcher teria a ensinar ao Brasil?”, Brasília, 1 novembro 2018, 3 p. Notas para gravação de podcast a convite do Instituto Millenium. Divulgado no blog Diplomatizzando(link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/11/o-que-margaret-thatcher-teria-ensinar.html). Agregado texto resumo em 6/11/2018 e áudio disponível no site do IM (link: https://www.institutomillenium.org.br/destaque/o-que-o-brasil-pode-aprender-com-margaret-thatcher/). Transcrito na revista Exame(6/11/2018; link: https://exame.abril.com.br/blog/instituto-millenium/o-que-o-brasil-pode-aprender-com-margaret-thatcher/).

Desta vez, o personagem britânico escolhido foi ninguém menos que o grande Winston Churchill. Com base unicamente no que conheço de sua vida e sua obra, em livros próprios (Memórias da guerra, História dos povos de língua inglesa), biografias (existe uma excelente, mais recente, de Andrew Roberts), trabalhos de historiografia (recomendo John Lukacs, Five Days in London) e em filmes (muitos, entre eles o Darkest Hour), elaborei as seguintes respostas, sem uma preparação maior.

1) Podemos contextualizar quem foi Winston Churchill e qual foi sua trajetória até que chegasse ao cargo de primeiro ministro do Reino Unido? O que faz com que ele seja lembrado até hoje como um dos maiores líderes que já existiram na história mundial?
Paulo Roberto de Almeida (PRA): Winston Churchill foi, antes e acima de tudo, um defensor do Império britânico, um dos maiores empreendimentos coloniais – direto e indireto – da história mundial, um herdeiro de uma linhagem de aristocratas, políticos e líderes militares da Grã-Bretanha que construíram o mais vasto império jamais visto na história mundial. No momento de sua maior extensão, em 1913, ou seja, às vésperas da Grande Guerra, esse império estava espalhado por todos os continentes e regiões do mundo, com destaque para as unidades integrantes diretos da chamada comunidade britânica de nações: o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia, ademais de Hong Kong e, com menor destaque, a África do Sul. Uma antiga dependência, as treze colônias da América do Norte, evoluiu para se constituir na nação mais avançada do mundo já no final do século XIX, ultrapassando até mesmo a antiga metrópole, em PIB per capita, em poderio industrial e tecnológico, e, em poucos anos mais, como um grande centro financeiro internacional, passando a substituir a libra esterlina, como moeda mundial, a partir da Segunda Guerra Mundial.
Winston Churchill foi um acirrado defensor desse grande império, que compreendia ainda territórios submetidos a uma administração direta ou indireta, nas Américas, em metade da África e sobretudo na Ásia do Sul, com destaque para a Índia, um mosaico de nações, de línguas e religiões, que em seu conjunto exibia uma economia superior à da própria potência colonial no momento da conquista, no século XVIII. Na verdade, a Índia foi conquistada primeiro pela Companhia das Índias Orientais Britânicas, e só em meados do século XIX passou a ser um vice-reino submetido diretamente a um ministério das colônias britânicas. A África do Sul, por sua vez, era uma antiga colônia holandesa, colocada sob a dependência da comunidade britânica depois de uma cruel guerra de conquista por tropas do Reino Unido, em 1900, após episódios militares dos quais Winston Churchill participou diretamente enquanto repórter incorporado às forças de conquista. Ele também se associou a outras aventuras militares no Sudão, no subcontinente indiano e, de forma geral, tinha imenso orgulho da vastidão do império britânico em sua fase de maior extensão.
Ambicioso no plano político, Winston Churchill tornou-se, precocemente, um ministro das colônias, depois Lord do Almirantado – ou seja, ministro da Marinha britânica, a poderosíssima Royal Navy –, quando presidiu à importante conversão dos navios da frota das caldeiras a vapor, alimentadas a carvão, para os motores a diesel, mantendo a preeminência em poder de fogo e de deslocamento, frente ao crescente e agressivo império alemão, que empreendia uma grande competição naval entre o final do século XIX e o inicio do XX. 
Sua experiência na Grande Guerra não foi das mais exitosas, sendo culpado, talvez por teimosia, pelo desastre de Galipoli, uma tentativa frustrada de neutralizar o Império Otomano, então aliado dos impérios centrais responsáveis pela guerra, para permitir a saída ao Mediterrâneo da frota da Rússia, uma das nações aliadas. Milhares de soldados pereceram na tentativa e Churchill teve de abandonar o seu cargo. Para compensar, foi ser comandante de batalhão nos campos do norte da França e da Bélgica, o que lhe permitiu recuperar parcialmente a sua reputação. Nunca se sentiu à vontade, seja com os Conservadores, seu partido de origem, seja com os Liberais, pois mantinha concepções próprias sobre as grandes questões politicas e estratégicas que deveriam guiar as ações do Império britânico; por isso oscilou algumas vezes no tocante às suas preferências políticas, sendo hostilizado em ambos os partidos, sem falar no Labour.
Teve uma percepção muito nítida, por exemplo, da ameaça que surgiria contra o Império britânico e toda a civilização ocidental – constituída pelas democracias de mercado – representada pelo novo regime bolchevique que emergiu na Rússia, em meio a uma terrível guerra civil ao final da Grande Guerra. Contra ele apoiou várias intervenções militares opostas ao nascente poder bolchevique, já que via no comunismo o grande contendor do Ocidente no plano das ideias e dos valores fundamentais que devem guiar o sistema econômico capitalista e o regime político liberal. Não logrou vencer esse poder em sua origem, mas não hesitou em aliar-se a ele, quando uma ameaça ainda mais terrível, a do nazi-fascismo passou, por sua vez, a contestar os fundamentos mesmos da sociedade aberta e das democracias de mercado nos momentos mais decisivos de meados do século XX. 
Winston Churchill teve uma outra fase infeliz quando assumiu o cargo de Lord of Treasury, ou seja, ministro das finanças, quando intentou fazer o Reino Unido voltar ao antigo padrão monetário vigente no século XIX até a Grande Guerra, ou seja, a libra esterlina baseada no lastro metálico em ouro. Em 1925, contra as recomendações do já famoso economista britânico John Maynard Keynes, ele tentou operar essa volta da libra ao padrão-ouro pré-1913, mas na mesma paridade que aquela que operou de 1816 até às vésperas da Grande Guerra, descurando completamente a grande inflação e os monumentais desequilíbrios econômicos trazidos pelo primeiro grande conflito global do século XX. Foi um desastre completo: Churchill permaneceu isolado por longo tempo depois disso, aproveitando seu tempo para escrever e recuperar um pouco do dinheiro empregado para manter um padrão de vida que ele já não podia suportar. 
Os anos 1930 foram de um relativo declínio em sua carreira política, até que o início da guerra deslanchada por Hitler viesse milagrosamente retirá-lo de uma semi-marginalidade, para levá-lo ao mais importante desafio lançado não só à sua carreira política, mas também à própria sobrevivência do império britânico.

2) A vida de Churchill foi marcada pelas grandes guerras. Podemos falar um pouco sobre essa relação e também destacar como a sua conduta ajudou a sustentar um clima político que levantou a nação durante as batalhas?
PRA: Winston Churchill foi, durante toda a sua vida, um estadista dotado de uma visão estratégica fundamentada basicamente no poderio militar, como garantia de manutenção do império britânico e de sobrevivência da Grã-Bretanha e seu sistema econômico e regime político. Anteviu a necessidade de modernizar e equipar a frota da Royal Navy, e agiu em consequência no confronto com o crescimento da armada do Império Alemão. Previu desde cedo a necessidade de uma estreita aliança entre o Império Britânico e os Estados Unidos, num momento em que este dispunha de uma armada razoável, mas quase nenhum exército, ou forças orientadas para atuação em cenários externos. Desde o início pressentiu os instintos expansionistas dos regimes totalitários do entre guerras, assim como o espírito belicoso e militarmente agressivo dos dois fascismos da Europa continental, ainda que tenha demorado um pouco mais para detectar os mesmos perigos advindos do militarismo japonês (que até o final dos anos 1920 era, praticamente, um aliado dos poderes ocidentais). 
Combateu acirradamente o ânimo pacifista dos líderes políticos ocidentais, em especial da França e dos seu próprio país, e não hesitou a denunciar como um enorme erro estratégico as inaceitáveis concessões feitas pela Grã-Bretanha e pela França às investidas de Hitler contra a Áustria e a República Tchecoslovaca, em 1938 e 1939. O Anchluss– a anexação da Áustria ao novo Reich alemão – e o esquartejamento de parte da República Tcheca e sua incorporação à soberania nazista confirmaram para Churchill que a guerra era inevitável, recomendando ele que as democracias ocidentais se preparassem imediatamente para o confronto militar. Atacou com justa razão o pacifismo inaceitável de seus líderes, dizendo que eles tinham feito uma opção irracionável pela paz com honra, mas que teriam como resultado a guerra com desonra.
Foi praticamente o único dos líderes políticos da Grã-Bretanha que recomendou a resistência a todo custo contra o imenso poderio hitlerista, quando as forças nazistas invadiram os Países Baixos, a Bélgica e derrotaram a França numa Blitzkrieg, uma guerra relâmpago, quanto os principais membros do gabinete britânico pretendiam entrar em negociações de paz com a Alemanha nazista, a vencedora da primeira fase da guerra europeia. Foi chamado pelo soberano do Reino Unido, George VI, para assumir a chefia do gabinete na hora mais sombria da Grã-Bretanha, quando numerosas forças britânicas se encontravam cercadas por tropas nazistas no bolsão de Dunquerque, no continente, e havia a ameaça real de invasão das ilhas britânicas pelas forças superiores da Alemanha hitlerista. No dia 10 de maio de 1940, se converte no primeiro ministro de um governo de coalizão, banindo a ideia de negociação e de submissão, e proclamando a vontade do povo britânico em prol da resistência a qualquer custo. Ele mobilizou a língua inglesa, que dominava como ninguém, e a enviou às frentes de batalha.
Pode-se dizer que ele não salvou apenas as ilhas britânicas e todo o Império, mas praticamente toda a civilização ocidental de uma bárbara dominação totalitária, que poderia condenar as democracias de mercado a um quase certo desaparecimento no continente europeu e, por extensão, em boa parte dos demais continentes e regiões colocados sob a influência ou dependência dos grandes impérios ocidentais. Churchill, pela sua obstinação, sua ousadia, sua coragem, determinação, pertinácia e grande visão estratégica sobre a condução da guerra, salvou o Ocidente e o mundo de uma descida humilhante aos horrores de um regime criminoso, dirigido por um psicopata. Churchill visou alto, consciente dos imensos sacrifícios que ele demandava ao seu povo, mas tinha absoluta certeza quanto à justeza de suas ideias, de seus princípios, em face da necessidade de salvar a democracia e as liberdades a qualquer custo. Foi um vencedor, e nunca hesitou, a despeito de enormes dificuldades, na defesa das liberdades, sabendo que qualquer preço era aceitável para preservar a soberania da Comunidade britânica.

3) Além de sua liderança, Winston Churchill também foi um grande administrador e deu exemplos sobre como comandar uma nação em tempos difíceis. Podemos citar algumas medidas importantes que ele tomou enquanto era Primeiro-Ministro?
PRA: Churchill tinha plena consciência de que não poderia enfrentar sozinho o terrível poderio da imensa máquina de guerra nazista, potencializada pelos recursos amealhados com a conquista de metade da Europa ocidental. A primeira aliança que buscou já estava em sua previsões desde muitos anos antes: com os Estados Unidos. Para seu alívio, encontrou um parceiro admirável na pessoa do presidente Franklin Delano Roosevelt, mas sem condição de ajudá-lo na fase inicial da guerra europeia, talvez a mais terrível e ameaçadora para a sobrevivência da Grã-Bretanha, uma vez que o líder americano se encontrava constrangido pelo isolacionismo do Congresso, e impedido de conceder ajuda militar direta. A solução encontrada foi a negociação dos famosos empréstimos de aluguel e arrendamento de equipamentos de todo tipo, a serem pagos, ou “devolvidos”, numa fase posterior.
Paralelamente, Churchill negociou com Roosevelt uma “Carta do Atlântico”, em agosto de 1941, base da constituição das Nações Unidas, com fundamentos nas quatro liberdades proclamadas pelo presidente americano em janeiro desse ano: a liberdade de expressão, a religiosa, a da penúria e a do medo. A Carta do Atlântico ia até mais além, ao proclamar um conjunto de princípios e de objetivos que deveriam guiar a ação das nações aliadas contra a ofensiva dos totalitarismos. Logo secundados por uma série de outros países democráticos – vários com governos no exílio, muitos em Londres –, os pontos principais da declaração cobriam as seguintes questões: ausência de ganhos territoriais, autodeterminação dos povos, ausência de barreiras comerciais ao livre intercâmbio, cooperação econômica entre os países em busca de bem-estar social, liberdades pessoais e de trânsito por todos os mares e o desarmamento das potências agressoras ao final do conflito.
Simultaneamente a essa aliança entre as duas principais nações ocidentais de base comum anglo-saxã, a União Soviética – vista como a grande inimiga do Ocidente por Churchill durante boa parte do primeiro pós-guerra – era invadida em junho de 1941 pela Alemanha nazista; desfazia-se, assim, o vergonhoso pacto de mútua conveniência estabelecido em agosto de 1939, que permitiu justamente o deslanchar da guerra pelas forças hitleristas contra a Polônia, país também atacado pela URSS em suas fronteiras orientais. Churchill não hesitou um só instante em vir em socorro imediato da União Soviética contra a invasão nazista, forjando-se então uma aliança entre dois antigos inimigos. No final de 1941, o ataque japonês contra a frota americana estacionada em Pearl Harbor, no Havaí, abriu uma nova frente no conflito até então europeu, que tornou-se, assim, verdadeiramente global, uma vez que a Alemanha também declarou guerra contra os Estados Unidos. Churchill conseguiu completar assim a arquitetura da contraofensiva para responder à ameaça do totalitarismo nazista, ainda que numa primeira fase, até 1943 praticamente, as perspectivas para as nações aliadas, tanto na frente europeia, quanto nos teatros da Ásia Pacífico, fossem as piores possíveis. As frentes de vitória foram sendo conquistadas pouco a pouco, no norte da África, no Mediterrâneo, na Itália, nos espaços marítimos do Pacífico, nas imensas estepes e planícies da Rússia soviética e, finalmente, na frente da Europa ocidental, a partir da Mancha, quando da invasão do Dia D – 4 de junho de 1944 – nas costas da Normandia. A partir daí a vitória estava assegurada, mas um ano ainda se passou antes que as potências militaristas fascistas fossem vencidas com enormes sacrifícios em homens e em material por parte das nações aliadas. O Brasil também participou desse esforço, enviando tropas ao teatro italiano, integradas ao V Exército americano. 

4) Também houve avanços na área econômica? Quais?
PRA: Os avanços não foram significativos do ponto de vista exclusivo do Reino Unido, que enfrentou uma gigantesca perda patrimonial e financeira, ao engajar todos os seus recursos humanos e materiais no esforço de guerra, mas eles foram relevantes do ponto de vista da construção de uma maior interdependência entre as democracias de mercado, e tremendamente importantes no plano na formulação e implementação de uma nova ordem econômica multilateral, a partir do final da guerra. Esse processo teve início ainda durante a guerra, com os acordos econômicos efetuados entre os EUA e o Reino Unido, a própria URSS e o Brasil, no momento oportuno. Funcionários britânicos e representantes americanos discutiam, desde 1941, o tipo de ordenamento econômico que deveria prevalecer no pós-guerra, sem o bilateralismo estrito vigente anteriormente, o protecionismo comercial, os regimes discriminatórios em matéria econômico, e a ausência completa de um sistema monetário e cambial, compatível com as novas regras e princípios multilateralistas que começavam a ser desenhados desde essa épocas. Uma primeira aproximação a essa nova arquitetura da ordem econômica internacional do pós-guerra foi discutida e aprovada em Bretton Woods, em junho de 1944, quando se adotam duas novas organizações interestatais, o FMI e o Banco Mundial, para regular as relações monetárias e financeiras entre os países. 
Muito do esforço feito nessa conjuntura consistia inclusive no desmantelamento do protecionismo comercial existente no Commonwealth britânico, atingia fortemente os interesses econômicos dos EUA, assim como no desenho de uma arquitetura monetária que não fosse automaticamente redistributiva – em detrimento dos países superavitários, como os EUA, e em favor dos deficitários, como o Reino Unido – ou excessivamente permissivo quanto a desequilíbrios fiscais e estabelecimento de paridades cambiais. Algum esforço se fez para acomodar as peculiaridades das economias socialistas – até Bretton Woods se tratava unicamente da URSS – mas ao final os soviéticos decidiram não aderir ao FMI ou ao Banco Mundial, a despeito de os EUA se oferecerem para ajudar na integralização das cotas de contribuição original. O Brasil aderiu relutantemente aos novos princípios, mesmo sem ter conseguido obter satisfação no tocante a seus interesses prioritários, que eram a estabilização dos preços dos produtos primários de exportação (basicamente o café, nessa altura). 
Em todo caso, com as adaptações requeridas após sucessivos choques ocorridos desde o início dos anos 1970 – fim das paridades fixas de câmbio, alta dos preços do petróleo, volatilidade nos mercados de capitais e nas taxas de juros, dívidas excessivas e déficits orçamentários –, o sistema de Bretton Woods prevaleceu amplamente, logrando inclusive a adesão das potências socialistas, antes mesmo do abandono parcial ou completo das deformações antimercado nos anos 90 do século XX. Mas Churchill não esteve associado a nenhum desses processos, a não ser na fase inicial dos arranjos bilaterais entre o Reino Unido e os EUA, e na tentativa de preservação do antigo poderio do Império britânico, que começou a soçobrar no imediato pós-guerra, com a independência da Índia, em 1947. 

5) Ele também nos ensinou muito sobre como gerir recursos escassos durante grandes crises? 
PRA: Winston Churchill sempre soube administrar muito bem recursos extremamente escassos, que são as qualidades do estadista em face de grandes desafios e de graves crises, que, no caso da Grã-Bretanha, chegaram inclusive a ameaçar a sua sobrevivência enquanto nação independente, enquanto país livre, enquanto domínio das liberdades democráticas. Ela era um patrimônio dos mais altos valores dos direitos humanos e da dignidade de uma pátria livre de todo despotismo, praticamente desde a Magna Carta de 1215. Esses recursos podem ser representados, pela ordem, pelas seguintes qualidades: a capacidade de ter uma visão clara sobre o que é essencial, o que é estratégico no plano das liberdades democráticas e da ordem política liberal que deve presidir à organização do Estado num regime de mercados livres; em segundo lugar, uma coragem inflexível para arrostar qualquer dificuldade, enfrentar qualquer desafio, qualquer ameaça a esse regime de liberdade e dignidade; igualmente uma confiança inabalável na capacidade do povo em suportar todas as durezas de uma grave crise, quando orientado por um líder dotado de visão estratégica e comprometido com a felicidade e o bem-estar de seu povo. A sinceridade na expressão dos problemas a serem enfrentados, o oferecimento de uma via de solução aos problemas existentes, sem qualquer demagogia política ou populismo econômico, a transparência na condução dos negócios do Estado, o respeito absoluto aos valores e princípios democráticos e aos direitos humanos, são recursos escassos na maior parte dos casos e das experiências nacionais ao longo da história. 
Esses recursos se encontraram numa feliz conjunção de grande educação política, vivência militar, amplo conhecimento da geopolítica mundial e visão realista das capacidades do seu povo e do seu país na figura excepcional que foi esse homem nascido no auge do Império britânico e que assistiu ao seu lento declínio ao longo do século XX. Winston Churchill foi, sem qualquer dúvida, um indivíduo absolutamente excepcional para o seu próprio povo, mas também para todo o mundo, sendo, muito provavelmente, o maior estadista do século XX e, talvez, uma das mais importantes personalidades da história mundial, de todos os tempos. Se não fosse por sua obstinada resistência à avassaladora máquina de guerra nazista, talvez todo o continente europeu, possivelmente toda a Eurásia, e boa parte de outros continentes, permanecesse subjugado pelo totalitarismo nazifascista durante vários anos, em circunstâncias dificilmente previsíveis de superação da dominação e de pleno restabelecimento das liberdades democráticas. A Europa e o mundo lhe devem muito, e não só na guerra.
Não podemos tampouco esquecer que, uma vez vencido o projeto totalitário da direita, e já não mais como primeiro-ministro, Winston Churchill liderou uma nova resistência contra o totalitarismo de esquerda, representado pela União Soviética, no imediato pós-Segunda Guerra. Suas palavras foram, uma vez mais, impactantes, mobilizando as democracias ocidentais contra uma nova e terrível ameaça totalitária. 
Sua famosa frase sobre uma “cortina de ferro”, separando a Europa ocidental da centro-oriental, indo de norte a sul, exerceram um efeito concreto sobre a disposição de grandes líderes ocidentais em unir esforços na construção de estruturas de cooperação e de integração, capazes de fortalecer as então frágeis democracias de mercado. Desde a instituição do Plano Marshall, um generoso programa de ajuda desinteressada aos países europeus destruídos pela guerra, a criação da OECE – depois transformada em OCDE –, passando pela fundação da OTAN, o pacto de segurança coletiva do Atlântico Norte, os primeiros exercícios de integração europeia – Benelux, Acordo de Paris criando a CECA, os acordos de Roma instituindo o mercado comum europeu e uma comunidade atômica –, até a cobertura militar oferecida pelos EUA a europeus e asiáticos, tudo isso garantiu uma estreita cooperação na defesa e no reforço das democracias. Todos esses processos receberam o apoio entusiástico de Winston Churchill, um promotor precoce, desde os anos 1920, de projetos de união e de cooperação entre as nações da Europa ocidental. Quando ele faleceu, em 1965, depois de novas funções governamentais nos anos 1950, pode-se dizer que sua visão de mundo tinha triunfado e seus projetos de solidariedade entre as democracias de mercado estavam amplamente assegurados na Europa ocidental e em outras regiões bafejadas pelo mesmo espírito humanista. 

6) Para finalizarmos, na sua opinião, quais são as principais lições de Churchill que podemos adotar aqui no Brasil neste novo momento que se inicia no país a partir de janeiro?
PRA: Difícil traçar lições que possam ser extraídas a partir da rica vida de um grande estadista de uma das mais antigas e estáveis democracias parlamentares do mundo ocidental para aplicar a um país relativamente excêntrico, de democracia ainda precária e insuficientemente desenvolvido como o Brasil. Não só pelas características “ambientais” da velha Inglaterra, mas também pelas qualidades próprias de Winston Churchill – um esplêndido escritor, mestre da língua inglesa, um estudioso e praticante de virtudes militares, membro do parlamento por muitas décadas, ministro em diversas ocasiões, primeiro-ministro na hora mais dramática do seu país na era moderna –, essa figura excepcional pode destacar-se como nenhum outro na história contemporânea, de sua nação e para o mundo. Parece difícil, portanto, estender suas eventuais lições às condições do Brasil atual, na ausência de condições “ambientais” favoráveis – isto é, políticas e socioeconômicas –, assim como na difícil “oferta” de líderes com status de estadistas para enfrentar desafios que não são tão dramáticos quanto o foram, no caso do Reino Unido, os desafios colocados pelos grandes totalitarismos do século XX, a era das grandes ideologias e dos regimes antiliberais da contemporaneidade. 
O Brasil enfrenta enormes desafios, certamente não tão extremos quanto aqueles com os quais se confrontou o Reino Unido, mas que provavelmente requerem, de igual forma, estadistas de certo porte, para indicar as soluções requeridas e implementar as medidas necessárias. Vou resumir ao essencial os desafios básicos que o Brasil enfrenta, e que precisam ser encaminhados de maneira adequada, para que o país possa retomar um ritmo sustentado de crescimento, capaz de apoiar um processo de desenvolvimento econômico e social, com mudanças estruturais, produzindo retornos satisfatórios em termos de renda e de bem-estar social. Esses desafios são três, sem uma ordem precisa de prioridades, mas já dando atenção urgente à maior ameaça de curto prazo: 
(1)o desequilíbrio fiscal, traduzido num grave déficit orçamentário e num aumento preocupante da dívida doméstica; 
(2) a lacuna de investimentos produtivos, tanto em razão da carência de poupança interna, quanto em função da volatilidade de políticas econômicas, macro e setoriais, ou seja, regulatórias, que inibem um fluxo contínuo e crescente de investimentos diretos estrangeiros; 
(3)a questão absolutamente dramática da baixa produtividade, problema que só encontra solução no longo prazo, mas cujas soluções precisam ser lançadas desde já, em especial no plano da educação de massa, na formação técnica especializada, no provimento de uma infraestrutura adequada, na boa governança (que assegura custos de transação reduzidos), e num ambiente verdadeiramente favorável aos negócios, o que significa amplas liberdades econômicas em nível geral.
Quais lições Winston Churchill poderia dar a um candidato a estadista que, no Brasil, decidisse empreender essas tarefas, não tanto de salvamento, como foi o seu caso em 1940, mas de recuperação, depois da Grande Destruição lulopetista da economia, acoplada ao maior caso de corrupção política de toda a história brasileira, um esquema gigantesco de assalto aos recursos do Estado e da população que não encontra paralelo em nenhum outro país do hemisfério ocidental, e quiçá do mundo? Vejamos quais lições poderiam ser sugeridas, se não as de Churchill, os seus equivalentes funcionais.
Em primeiro lugar, uma boa experiência de vida – no caso de Churchill na vida militar, mas que pode ser na vida empresarial também –, agregada, de preferência a uma boa experiência governamental. Churchill foi parlamentar por várias décadas, ministro por diversas vezes e duas vezes primeiro ministro, uma delas em condições extremas de desafios externos, no limite supremo da capacidade de resistência, sua pessoalmente, e do país, enquanto comunidade unidade num propósito convergente de defesa e de sobrevivência do próprio Estado. No caso do Brasil, tal grau de perigo não está em absoluto colocado, pois nossos inimigos são essencialmente todos internos, todos eles situados no próprio Estado ou pululando em volta dele, rentistas e oportunistas. 
Em todo caso, a primeira condição para a superação dos nossos problemas está em assegurar uma visão clara dos problemas a serem resolvidos, como já expostos: um problema de curto prazo de natureza fiscal, um de médio prazo relativo a investimentos produtivos, um terceiro de longo prazo tocando ao crescimento da produtividade do trabalhador nacional, mas que deve ser imediatamente enfrentado a partir de um diagnóstico correto quanto às suas fontes e causas específicas. Pessoalmente, considero os problemas fiscais e de investimentos de mais fácil resolução, pois medidas técnicas podem oferecer as soluções adequadas, ainda que elas sejam difíceis: redução radical dos gastos públicos, diminuição do peso do Estado na vida econômica, privatização ampla das estatais ainda existentes (de preferência todas elas), reforma tributária no sentido da redução da carga fiscal, limitação do extremo corporativismo existente no coração do próprio Estado e diminuição impiedosa dos inaceitáveis privilégios dos mandarins estatais, a começar pela aristocracia do Judiciário, nosso equivalente do Ancien Régime. Agregaria ainda a eliminação da burocracia e da regulação dispensável, do protecionismo exagerado, com imediata abertura econômica e uma liberalização comercial unilateral, seguida de atração irrestrita e indiscriminada de capitais diretos estrangeiros, em todos os setores abertos à produção de bens e serviços de consumo corrente, para atender à população, e mesmo o Estado, e sobretudo o comércio exterior. 
Por outro lado, sou bem mais pessimista quanto à solução do grande problema da produtividade, pois ele depende de uma revolução no sistema educacional, que não vejo como facilmente ou rapidamente implementável, dada a estreiteza mental dos nossos pedagogos e acadêmicos em geral. O Brasil teria de deixar de lado suas imensas deformações nos três níveis de ensino, em especial a baixa produtividade dos mestres e professores, fruto de uma formação deficiente e de um sindicalismo de baixa extração, isonomista e anti-meritocrático, o que torna impossível trabalhar com o material humano existente. O Estado precisa fazer um enorme esforço em direção dos primeiros níveis, ou seja, uma escola pública de boa qualidade para os ciclos fundamental, médio e técnico-profissional, e conceder ampla liberdade às instituições do terceiro ciclo, com atribuição de uma dotação básica para o seu funcionamento, e total autonomia de gestão para resolver seus outros problemas de financiamento em bases de mercado.
Para empreender tudo isso se requer um estadista que consiga explicar de modo claro seus objetivos à população e ao parlamento, colocando a barra de realizações bem alta, para mobilizar a sociedade e o corpo representativo. O objetivo seria, nada mais, nada menos, o de converter o Brasil em país desenvolvido no espaço de uma geração, o que é extremamente desafiador. Para isso, ademais de uma visão clara quanto aos objetivos e metas, a palavra de ordem, única e exclusiva, só pode ser um: trabalho duro. Um esforço incessante, sem esmorecer, mas em comunicação contínua com o povo. Nunca deixar que as dificuldades se interponham ante o objetivo máximo estipulado em cada uma das reformas: as frustrações ocasionais ou temporárias não podem ser motivo para se desviar da rota traçada. Nunca atribuir a outros o insucesso parcial de algum objetivo específico, mas buscar sempre as melhores vias, eventualmente alternativas, para o atingimento dos objetivos fixados. Estas talvez fossem sugestões de Churchill.
Estar satisfeito com o que se faz, ter respeito pelas opiniões diversas, discutir abertamente com auxiliares e adversários, sempre responder aos questionamentos, nunca eludir as questões interpostas com objetivos divergentes, também são atitudes que Churchill provavelmente recomendaria a qualquer homem de bom senso, sem que este seja necessariamente um estadista. Grande abertura de espírito, disposição para sempre estudar, sempre aprender, revisar seus conceitos e opiniões, se informar sempre, questionar, examinar, pedir os custos (não só os nominais, mas também o custo-oportunidade) de cada ação empreendida, estas constituem outras possíveis lições, as quais convém considerar com atenção, churchillianas ou não. Por fim, nunca se pode esquecer o lado moral de cada ação humana, aspecto indissociável das democracias.
Se ouso agregar uma atitude pessoal, eu teria uma única recomendação: ser um contrarianista, não no sentido negativo, mas no sentido do questionamento de todos os problemas e soluções inscritas na agenda de mudanças e de reformas. Eu me guio por uma atitude básica: ceticismo sadio, ou seja, nunca tomo uma proposta pelo seu valor de face; examino o outro lado, vejo os antecedentes e consequências e, uma vez certificado que estou bom caminho, sigo em frente. 
Resolução e propósito na ação são duas boas atitudes a observar, e acredito que Churchill concordaria com essa postura. Por fim, caberia preservar uma característica que considero ser o valor máximo num estadista, ou em todo e qualquer trabalhador acadêmico: a honestidade intelectual...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de novembro de 2018

Grande estrategia e idiossincrasias corporativas: George Kennan - Paulo Roberto de Almeida

uma reflexão a partir da experiência de George Kennan

Paulo Roberto de Almeida

Lendo a biografia de John Lewis Gaddis, sobre o grande diplomata e historiador americano, que dominou a segunda metade do século XX, George F. Kennan: An American Life (New York: The Penguin Press, 2011), deparo-me com um trecho, relativo ao ano de 1943, quando Kennan era encarregado de negócios na legação dos Estados Unidos em Lisboa; negociações eram conduzidas na capital portuguesa para assegurar o uso, por forças americanas, dos Açores, como plataforma absolutamente indispensável para conduzir as operações europeias da Segunda Guerra Mundial em sua vertente norte-atlântica:
“[George Kennan] began to develop... a new sense of responsibility within the duties assigned to him: at several points over the next few years Kennan took risks that jeopardized his own Foreign Service career because he thought that the nationalinterest demanded that he do so. Obliged to operate for the first time at the level of grand strategy, he found the rules oh his profession falling short. He chose, successfully but dangerously, to violate them.” [Loc 3387 of 18204 Kindle edition, Amazon].
Gaddis informa ainda, na sequência dessa passagem, as circunstâncias em que Kennan decidiu assumir vários riscos em sua carreira, violando deliberadamente várias regras do jogo, tal como definidas por instituições excessivamente burocráticas ou muito conservadoras, quanto o Departamento de Estado ou o comando das Forças Armadas, como se pode depreender desta transcrição adicional:
During the Azores base negotiations [com o próprio Primeiro-Ministro português Antonio de Oliveira Salazar], Kennan violated at least four rules, any one of which could have him sacked from the Foreign Service. He exceeded his instructions in a conversation with a foreign head of government. He refused to carry out a presidential order. He lied, to another government, about the position of his own. And he went over the heads of his superiors in the State Department – as well as the secretary of war and the Joint Chiefs of Staff – to make direct appeal to the White House.” (Loc 3436 of 18204 Kindle edition, Amazon).

Estas passagens chamaram-me obviamente a atenção, ou “struck a cord on me”, como diria o próprio Gaddis, provavelmente o maior historiador vivo da Guerra Fria e o único biógrafo autorizado de George Kennan. Explico por que, já que isso tem a ver com a mesma sensação de barreiras burocráticas e conservadoras, em assuntos que demandariam uma visão mais larga dos processos diplomáticos, que eu já enfrentei na carreira. Não querendo me comparar a George Kennan, possivelmente o maior especialista diplomático americano em assuntos russos que jamais existiu nos anais daquele serviço diplomático, mas eu também adquiri, ainda antes de ingressar no serviço diplomático, uma percepção histórica e estrutural de muitos dos temas que compõem, burocraticamente, a agenda diplomática corrente. 
Tendo começado a estudar os assuntos brasileiros desde muito cedo – compulsando uma bibliografia de nível universitário, ou de pesquisa especializada, ainda quando estava em meio aos estudos do ciclo médio – desenvolvi provavelmente de maneira muito precoce um cuidado com a análise do contexto, dos precedentes históricos, e dos impactos estruturais ou implicações políticas de cada um dos problemas com que me deparava em minhas leituras ou pela leitura dos jornais de maior qualidade em suas edições dominicais (invariavelmente o velho jornal conservador O Estado de São Paulo, ainda quando discordasse profundamente de seus editoriais, que julgava representativos das opiniões da “classe dominante”). Foram anos, em meados da década de 1960, em que eu lia os grandes mestres da teoria social brasileira, entre eles os representantes da “escola paulista de Sociologia” – que pouco depois se tornaria minha alma mater, ao ter ingressado no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – e através dos quais eu filtrava minhas reações aos editoriais “reacionários” do Estadão, combinando todas essas leituras para refletir sobre os caminhos do desenvolvimento econômico e político brasileiro, no quadro das crises contínuas que agitavam o período que se tinha iniciado com o golpe de 1964, e que eu imaginava combater pela via do socialismo e de um governo comprometido com a “ditadura do proletariado”. 
Independentemente dessas ilusões e descaminhos ideológicos – que foram sendo corrigidos tão pronto eu deixei o país, no final de 1970, para conhecer o triste cenário do socialismo real do leste europeu e as nuances dos capitalismos realmente existentes na Europa, durante quase sete anos – eu adquiri, a partir desses hábitos juvenis de leitura, um sentido de abrangência analítica e de inserção contextual que me acompanharia pelo resto da vida, sobretudo no domínio profissional, quando ingressei na carreira diplomática, poucos meses depois de voltar da Europa em 1977. Mas o que isso quer dizer, no quadro desta seleção de trechos da biografia de Kennan por Lewis Gaddis? Explico-me agora mais detalhadamente. 
Ingressei no Itamaraty ainda na era militar, quando ainda pensava em derrubar o regime, embora não mais pela via das armas e sim pela via da pressão democrática. Tampouco pretendia converter o Brasil em uma nova Cuba ou uma nova China, como talvez fosse a intenção em meados dos anos 1960; mas o modelo ainda seria algo bem próximo do socialismo democrático europeu, que eu julgava bem mais propenso a empreender a correção das tremendas injustiças sociais em vigor no Brasil, desde sempre, do que, alternativamente, a visão mais pró-mercado que não tenho hesitação em defender atualmente. Nessa época, eu ainda era obrigado a escrever artigos com algum nom de plume, já que minhas “convicções radicais” provavelmente chocariam meus colegas e superiores diplomáticos – que eu considerava todos alinhados ao regime – e chamariam a atenção dos órgãos de segurança, especialmente ativos naquela conjuntura, quando a repressão física tinha amainado, mas o controle de inteligência continuava atento a todas as manobras da oposição ao governo militar.
Tendo iniciado minha carreira no Itamaraty por uma divisão secundária, a do Leste Europeu (então todo ele dominado pela União Soviética), pude distinguir-me rapidamente em alguns trabalhos analíticos, inclusive porque, ademais dos boletins da Radio Free Europe e da Radio Liberty – ambas financiadas pela CIA, obviamente – que líamos na DE-II, eu possuía um conhecimento interno, se ouso dizer, sobre o funcionamento desses regimes autoritários, já que tinha militado na esquerda marxista durante tempo suficiente para aprender – e apreender – todos os trejeitos vocabulares e as muitas peculiaridades políticas do mundo comunista. Recordo-me, em todo caso, de uma informação que preparei sobre o quadro político no leste europeu, em especial sobre a situação da Polônia, no imediato seguimento, em 1978, da surpreendente eleição do cardeal Karol Wojtila como o novo papa, de nome João Paulo II. Ao que parece, minha análise abrangente das implicações dessa escolha para todo o leste europeu e para o poder comunista foi devidamente apreciada pelos meus superiores, para ascender ao conhecimento do Gabinete do ministro, o que constitui, no Itamaraty, uma marca de distinção a dividir os assuntos que permanecem na “senzala”—como sempre foram depreciativamente chamados os serviços setoriais das divisões, no Anexo – e os que ascendem ao conhecimento da Casa Grande, como se designavam, respeitosamente, os dois gabinetes do Palácio. 
Não exatamente por esse episódio específico, mas talvez mais pelo meu jeito histórico-intelectual de interpretar cada iniciativa ou resposta do serviço diplomático brasileiro, em função de um contexto mais vasto, no tratamento dos assuntos da agenda corrente, fui sendo considerado um diplomata especial, ou diferente, talvez bizarro, em todo caso colocado num clube à parte, não necessariamente melhor, dessa tribo de elite dos servidores do Estado. De um lado, nunca tive que mendigar postos ou posições no curso da carreira, já que em geral recebia convites para servir em tal posto ou tal unidade da Secretaria de Estado; de outro lado, jamais me dediquei a “pescar” votos de colegas ou implorar apoio de chefes para ser promovido na escala funcional, o que ofenderia meus princípios pessoais, ou minha maneira de ser, mas que pode ter irritado muita gente da corporação. 
Tampouco pedia permissão para escrever à minha maneira – e não naquele burocratês diplomático que tanto desprezo – ou sequer me desculpava por pensar de forma muito diferente da maior parte dos colegas ou mesmo dos superiores, e mais de uma vez ousei contestar opiniões de chefes em reuniões de coordenação, quando os fundamentos de minha posição me pareciam suficientemente sólidos para levantar o dedo e exclamar – algumas vezes na estupefação dos colegas e alguns superiores – uma frase do tipo: “Não é bem assim [Fulano]!” Acho que isso talvez não tenha ajudado no curso ulterior, ou superior, da carreira. Já ao ingressar na carreira, revoltei-me contra a exigência, que sempre julguei absurda – e anticonstitucional, em todo caso violadora dos direitos individuais, que invariavelmente coloco acima dos interesses do Estado –, de ter de pedir permissão às autoridades pertinentes para contrair matrimônio com minha esposa: um abuso e uma indignidade, a que meu espírito anarquista jamais consentiu por princípio. Numa etapa intermediária, cansado do ritual de ter de pedir permissão para publicar que fosse uma simples resenha de livro sobre temas da diplomacia, deixei de submeter textos à apreciação superior, e passei a publicar o que julgava apropriado e conveniente (ainda que exercendo algum grau de autocensura no que era cabível dizer de público sobre tão augusta Casa e tão distinguido Serviço Exterior). 
De fato, se ouso julgar, agora, as características do serviço em prol do qual exerci meus talentos nas últimas três décadas e meia, eu diria que o Itamaraty tem uma cultura muito especial, em todo caso diferente das demais corporações a serviço do Estado. Confessadamente, eu nunca fui muito adepto das manias e trejeitos dos meus colegas diplomatas: trata-se de uma carreira ultra competitiva, com altas doses de autocontenção, marcada por dogmas de disciplina e hierarquia que nunca se encaixaram bem ao meu natural libertário, exigindo ainda certo enquadramento nos rituais internos para que essa competição seja bem sucedida no plano individual, ou seja, para que ela se reflita na progressão funcional, na atribuição de postos e outras distinções. Visivelmente, eu nunca pretendi me enquadrar no estilo de rigor. Sempre mantive meus hábitos de trabalho, em parte isolado, estudando e escrevendo, de outra parte falando com sinceridade aquilo que me parecia negativo do ponto de vista da pura racionalidade instrumental dos objetivos diplomáticos. Ainda que tal tipo de atitude possa suscitar admiração em certas áreas, acredito que essas não são as qualidades requeridas para se triunfar numa Casa que faz da obediência estrita aos superiores a pedra de toque para a inserção no inner circledos premiados oficiais.
Tomando como base o que acima vai descrito, não tenho qualquer restrição mental em confessar que, em diversas ocasiões, dissenti das opiniões oficiais da Casa – ou seja, aprovadas em alguma instância superior – no tratamento de temas específicos ou na condução de algumas negociações para as quais eu me julgava especialmente preparado, em função, justamente, dos estudos que eu conduzia paralelamente à carreira, para aprofundar-me nos assuntos que me eram atribuídos. Uma atitude desse tipo não é fácil de ser assumida, quando se trata, não das preliminares para a formulação de uma posição negociadora, mas de instruções formais, consubstanciadas em telegrama da série, com base na qual a resposta invariável do diplomata obediente deve ser: “Cumpri instruções”, e o chefe do posto passa a relatar como ele se ateve fielmente às ordens emanadas da Santa Casa.
Pessoalmente, já passei por esse tipo de situação, envolvendo uma negociação internacional de um tratado multilateral. Tendo me ocupado do tema durante meses e meses, eu literalmente dominava o assunto, técnica e diplomaticamente, e as instruções formuladas em Brasília, de nítido corte tradicional, eram claramente inadequadas. Os argumentos que poderiam ser mobilizados em favor de teses diferentes ou alternativas, por mais racionais ou “probatórios” que sejam (com base numa análise histórica, nos dados da economia, numa visão de longo prazo), nem sempre são convincentes ou suficientes para “dobrar” o burocrata na outra ponta do processo ou até fazer com que a instituição como um todo se mova em outra direção. Esse tipo de situação pode ser terrível, pois aparentemente (ou concretamente) o diplomata em causa pode estar se colocando contra as instruções da sua instituição.
Não tive medo de fazê-lo, naquele momento preciso, assim como em outras circunstâncias posteriores. De certa forma, esse tipo de atitude me prejudicou, pois fiquei com fama de rebelde, de dissidente, de arrogante, de pretencioso “sabe-tudo” e outros qualificativos mais, que nem são do meu conhecimento. Se insisto em certas teses é, contudo, com base num estudo profundo das problemáticas das quais me é dado ocupar. Sou por excelência um estudioso compulsivo, e não costumo me dobrar a nenhum argumento de autoridade, e sim à autoridade do argumento. Numa casa “feudal”, como é o Itamaraty, isso é quase um crime de lesa-majestade.
Mas o assunto supera as atitudes individuais de um diplomata, para adentrar no terreno mais complicado das questões macro-políticas, ou se quisermos, no eterno debate sobre como interpretar o chamado “interesse nacional”, um conceito altamente difuso para permitir qualquer tipo de argumento não fundamentado ou especioso. Não vou tratar das bases epistemológicas do que, exatamente, constituiria o interesse nacional nos limites desta reflexão, mas vou tratar da questão no contexto da própria formação e educação dos diplomatas. Acredito, com base numa avaliação puramente subjetiva, que poucos diplomatas têm uma cultura econômica verdadeira, ou seja, o instrumental analítico de cunho histórico e econômico que poderia levá-los a analisar uma questão qualquer de política externa do ponto de vista daquilo que os economistas chamam de custo-oportunidade do capital, ou seja, a eficiência paretiana dos meios e fins, que não se restringe ao melhor emprego dos recursos, ou a um cálculo sobre o retorno dos investimentos, mas envolve todos os “fatores de produção” de um determinado assunto diplomático. Tudo, ou quase tudo, na diplomacia, é feito de forma muito politizada e, por vezes, de forma irracional, já que levando em conta circunstâncias imediatas e as preferências políticas de quem manda, não necessariamente os interesses de mais longo prazo da nação.
Teríamos inúmeros exemplos de decisões claramente absurdas, no contexto mais vasto das tradições diplomáticas brasileiras, tomadas em certo período, e que no entanto foram tomadas, ao arrepio de qualquer racionalidade administrativa ou mesmo política; eximo-me, por razões diversas, mas claramente compreensivas, de discorrer sobre elas neste momento. O fato é que, em momentos como esses, o ator em questão tem várias escolhas, todas elas difíceis: submeter-se passivamente a instruções que ele pode julgar prejudiciais ao país ou ao serviço, no contexto dos interesses de mais longo prazo; negar cumprimento e argumentar alternativamente ao que julga contrário a suas convicções ou avaliação do tema em apreço; afastar-se do processo, com prejuízo pessoal ou fricção funcional. 
Minhas próprias atitudes sempre foram pautadas em função de minha trajetória habitual de estudos e de busca de coerência lógica no processo decisório, esforçando-me por manter minha indispensável integridade intelectual, em face de eventuais adversidades momentâneas, que sempre julgo devam ser afrontadas com serenidade e com a dignidade funcional que devem guiar o comportamento de membros de uma corporação como esta à qual pertenço. Em tempos difíceis de submissão a vocações autoritárias essas atitudes cobram um preço por vezes difícil em termos pessoais, mas a coerência e a honestidade na defesa de certos princípios, que reputamos mais elevados do que a acomodação servil, e a consciência de se estar defendendo causas mais altas do que as escolhas sectárias do momento constituem os prêmios mais gratificantes que se possa ter num itinerário de vida. 
Vale persistir, como aliás demonstrou o próprio George Kennan, ao abandonar a carreira diplomática, para ingressar numa categoria à parte da história intelectual de seu país, como um grande pensador das relações internacionais dos Estados Unidos. Sem aspirar a tanto, e sem renunciar a uma carreira que me trouxe tantos benefícios intelectuais e pessoais, vou persistir na defesa da coerência com o livre pensamento mesmo nos tempos sombrios e tristes de um outro regime autoritário.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2409: 14 de julho de 2012.
Postado novamente no Diplomatizzando em 4/01/2016 (link: http://www.diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/01/george-kennan-era-um-contrarianista.html).


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