Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Arnaldo Godoy, um grande intelectual e amigo dileto, colega no Mestrado e Doutorado em Direito do Uniceub, é o criador e responsável exclusivo pela magnifica seção “Embargos Culturais”, do Conjur, que ele alimenta semanalmente, e religiosamente (o termo se aplica neste caso), a cada fim de semana, sobre os mais variados assuntos, mas sempre de maneira impecável e indefectivelmente vinculado a algum tema do vasto campo do Direito, que é a sua praia, seus sete mares, seu imenso oceano de cultura, de erudição, de refinamento intelectual. Aqui mais um exemplo do que tenho o prazer de ler semanalmente.
Paulo Roberto de Almeida
EMBARGOS CULTURAIS
O tema da justiça e a parábola dos trabalhadores da vinha
O tema da justiça é o ponto de partida e o referencial de chegada de qualquer reflexão séria sobre o direito. A relatividade do conceito, cuja fragilidade transita da metafísica para as alegorias, de lugares-comuns para promessas não cumpridas, permite todas as formas de exploração de uma ideia. Assim como se sugeriu a liberdade, inclusive para matar a liberdade, suspeita-se que se sugere a justiça como forma de extinção da própria justiça. Tomemos cuidado.
Na tradição ocidental a ideia de justiça predica no dualismo entre o bem e o mal, no absolutismo da virtude, na teoria platónica da verdade, nos problemas aristotélicos de distribuição e de correção, no bem e, essencialmente, no amor. Principalmente no amor. Há versões mais contemporâneas de ideais de justiça, que radicam na liberdade (Rawls) ou auto-interesse, na simpatia e no compromisso (Amartya Sen). No limite oposto, a justiça é uma ilusão (Kelsen). Há uma dimensão prática, isto é, a quem deve se associar uma ideia de justiça, à democracia ou à autocracia ou, ainda, à economia livre ou à economia planejada? Há, substancialmente, o tema da desigualdade, que se resolveria na igualdade real (e não formal) de chances e de oportunidades. No sentido escolástico (São Tomás) a justiça é a principal das virtudes morais.
A tradição das Sagradas Escrituras oferece um interminável campo de reflexões sobre a justiça. Para um autor insuspeito no assunto (Kelsen), “a justiça é um mistério – um dos muitos mistérios – da fé”. A ideia de justiça no apóstolo Paulo, por exemplo, sintetiza-se no amor ao próximo, devido na mesma medida do amor que se tenha por si mesmo. Pode-se cogitar que o tema da justiça, porque um tema essencial da existência, é um dos temas centrais das Sagradas Escrituras. Ainda que tratados de um modo simbolicamente distintos no Antigo e no Novo Testamentos, há pontos em comum que provocam muita reflexão.
Nesse sentido, e em relação ao Novo Testamento, chamo a atenção para uma dificílima passagem contida em Mateus (20:1-16) que trata da parábola dos trabalhadores da vinha. Se o leitor espera uma reflexão teológica feita por autor competente no assunto, pare por aqui. Não sou teólogo, e não tenho competência para tratar de assuntos dessa magnitude. O esforço que segue resulta de uma exploração hermenêutica de uma narrativa literária. Os textos canônicos também são literatura (de primeiríssima qualidade). Não há nada que interpretar me impeça. Para os interessados em teologia é indispensável a leitura de Klyne Snodgrass, “Compreendendo todas as parábolas de Jesus”.
Enquanto Platão valia-se de alegorias e Paulo de cartas, os Evangelistas recorrentemente apresentavam parábolas. São pequenos textos de interpolação, que aproximam narrativas e metáforas, de advertência, de exemplo e de revelação, como referências ficcionais ilustrativas da vida. Há assuntos que se ensinam e há assuntos que não se ensinam nas parábolas.
Na parábola dos trabalhadores da vinha o enredo parece simples. Compara-se o Reino dos Céus a um proprietário que saiu de madrugada para assalariar trabalhadores para a sua vinha. Ajustou o preço e enviou-os para o trabalho. Ao longo do dia reuniu desocupados, até a hora undécima, e os enviou também. Pediu, no fim do dia, que o administrador chamasse a todos os trabalhadores, e que os pagasse pelo trabalho. A todos eles, tanto os que trabalharam o dia todo, quanto os que trabalharam por pouquíssimo tempo, os remunerou da mesma forma.
Os que trabalharam o dia todo se insurgiram. O proprietário argumentou que pagava exatamente como havia combinado. Pediu que tomassem o que fora ajustado e que se fossem então. Lembrou que era lícito que fizesse o que quisesse com o que fosse seu. O excerto se encerra de modo proverbial: “(...) os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos [porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos]”.
Na literatura especializada essa parábola é interpretada sistematicamente de vários modos, que não são excludentes. Há ênfase na importância da conversão tardia; isto é, os últimos eram os gentios, e os primeiros seriam os judeus. Na tradição protestante enfatiza-se também a plena, absoluta e indiscutível liberdade de escolha, por parte do proprietário, o que significa a preponderância da salvação pela graça, em oposição à salvação pelas obras. Pode ser uma interpretação calvinista. Chama-se também a atenção para a generosidade do proprietário. Percebe-se que a parábola também adverte dos perigos da avareza e da inveja. Explica-se o excerto também como uma referência à necessária solidariedade humana. Todos esses argumentos são explorados com competência no livro acima indicado.
Numa percepção não teológica há muitos problemas no ar. E há muitas soluções também. O proprietário cumpriu integralmente o que compactou com os primeiros trabalhadores, e por isso não pode ser censurado. O proprietário tem plena disposição sobre a remuneração que oferece, a opção é própria, e não pode ser reprimido, especialmente, se cumpriu o que contratou. Há um direito de disponibilidade dos próprios bens, especialmente porque não prejudicou a ninguém. No contrato com os primeiros trabalhadores não havia cláusula estipulando que se alguém trabalhasse menos, e recebesse igualmente, a remuneração seria elevada.
Também fora do campo teológico há quem possa argumentar que houve injustiça no pagamento, isto é, remunerou-se da mesma maneira a trabalhadores que fizeram trabalhos idênticos, em quantidade distinta de horas. Haveria (muito em tese) uma incompatibilidade da forma de pagamento com o disposto no inciso XXX do art. 7º da Constituição, com todo o horror que o anacronismo suscita. Argumento imprestável.
O problema central está no fato de que, distanciando-se do problema teológico, essa parábola pode sugerir a constatação da impossibilidade de se fixar um critério único e indiscutível de justiça. O conceito é volátil. No sentido aristotélico a justiça distributiva tem como parâmetros necessidades e proporções, em contexto no qual o Estado atua como preponderância. Por outro lado, a justiça comutativa operaria entre particulares, pautando transações, nas quais a cada um tocasse o que lhe pertencesse.
Nenhum desses critérios, o distributivo ou o comutativo, penso, resolveriam o problema, fora do contexto teológico, bem entendido. Ainda segundo Kelsen, talvez nunca encontraremos uma resposta satisfatória e definitiva para o problema da justiça. Melhor, assim, tentarmos perguntar melhor.
Revista de Sociologia e Política, v. 26, p. 39-61, 2018, 2018
RESUMO: Analisa-se a composição ministerial da Nova República a partir de cinco fatores: sexo, etnia, idade, procedência regional e escolaridade. Métodos: A pesquisa foi realizada por meio de trabalho empírico e qualitativo sobre o perfil dos ministros da Nova República. Utilizou-se entrevistas, questionários e informações online de vários sites oficiais. Resultados: Mostra-se a tímida democratização do ministério no que toca ao gênero e etnia, a idade média avançada dos ministros ao longo de todo o período, o recrutamento prioritário nas regiões mais ricas e mais populosas, mas contemplando todas as regiões do país. Por fim, destaca-se a surpreendente escolarização desse grupo. De outra parte, verifica-se que, na área econômica, a qualificação acadêmica profissional dos ministros é superior à dos demais e que esse aspecto tem sido constante em todos os governos. Discussão: Sem levar em conta as alianças político-partidárias, inerentes ao presidencialismo de coalizão, mostra-se que, em termos regionais, o gabinete atesta a validade de um dos princípios desse modelo, qual seja, o do equilíbrio federativo. Ademais, ministros altamente educados e com longas carreiras não têm necessariamente habilidades específicas para as pastas que ocupam. São pessoas acima dos 50 anos de idade, do sexo masculino, recrutadas nos estados mais ricos e que estudaram nas melhores escolas. O recrutamento do ministério reflete o arranjo político do Brasil (o "presidencialismo de coalizão") e a desigualdade estrutural do país.
PALAVRAS-CHAVE: Poder Executivo; ministros; elites políticas; Nova República; formação acadêmica.
Recebido em 12 de Fevereiro de 2017.
Aceito em 1 de Maio de 2017.
I. Introdução
1 O padrão de nomeação dos ministros no Brasil ainda não é suficientemente estudado e nem ao menos podemos afirmar que exista algo consistente a esse respeito. Aparentemente, à exceção da área econômica, a versão predominante endossada pela tese do presidencialismo de coalizão (Abranches 1988) é que as nomeações decorrem de arranjos político-partidários que desconsideram, na maior parte das vezes, as habilidades específicas ou a qualificação técnica dos escolhidos. Em geral, sabemos pouco sobre as características desse grupo, sua distribuição pelas regiões da federação, sua composição socioeconômica e como suas experiências e saberes disciplinares são distribuídos entre as diferentes pastas. Este artigo procura explicitar os atributos biográficos desse grupo, sua formação acadêmica e origem regional. Sobre este último ponto, lembremos que um dos traços mais importantes do sistema político brasileiro é a busca de equilíbrio entre os entes federativos, adotando um "modelo de federalismo simétrico em uma federação assimétrica" (Souza 2006, p.195). Mesmo com disparidades econômicas e demográficas entre os estados, "do ponto de vista constitucional, todas as unidades constitutivas possuem poderes e competências iguais" (Souza 2006, p.195), o que obriga o acionamento de arranjos alternativos em busca de um equilíbrio minimamente sustentável. O ministério é um dos principais recursos usados para a busca desse precário equilíbrio federativo. Permite a busca sistemática de compensações alternativas para amenizar as desigualdades abissais entre as regiões. O trabalho traz informações detalhadas sobre a maior parte dos ministros do Brasil que ocuparam o cargo por, pelo menos, três meses a partir do governo...
(...)
Doi: 10.1590/1678-987317266503
Publication Date: 2018
Publication Name: Revista de Sociologia e Política, v. 26, p. 39-61, 2018
Militares se desgastaram muito no 1º ano do governo Bolsonaro, diz cientista político
Luiza FrancoDa BBC News Brasil em São Paulo
O cientista social João Roberto Martins Filho, que estuda as Forças Armadas desde os anos 1980, se diz "desiludido e preocupado" com o comportamento de militares no primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro.
Apoiadores da candidatura presidencial do capitão reformado, militares formam uma ala importante do governo e conseguiram, por meio da reforma da Previdência, a aprovação de uma reestruturação de carreira que lhes trouxe benefícios — principalmente para o alto escalão. Mas eles sofreram reveses e perderam respeitabilidade ao se associarem ao governo de Bolsonaro, opina o pesquisador.
"Gostaria de acreditar que, 35 anos depois (do fim do governo militar), teríamos uma corrente democrática nas Forças Armadas que percebesse os danos que podem vir dessa associação com a política partidária. Mas não vejo isso", diz o pesquisador.
Para ele, neste primeiro ano de forte presença militar no governo, ficou evidente a influência de fatores como corporativismo, conservadorismo e ideologia no comportamento das Forças Armadas.
"Tem gente que acha que havia um objetivo material (conseguir a reestruturação da carreira por meio da reforma da Previdência). Eu acho que o principal objetivo era voltar à política, mostrar que poderiam ajudar o governo e discretamente voltar à política. Essa era a grande aposta. Não aceitavam aquela situação prevista na Constituição de não interferir na política. O segundo ponto era retirar do governo o máximo que pudessem em termos de melhorias materiais", diz ele.
Se conseguiram essa segunda demanda, não foram tão bem sucedidos na primeira, diz Martins Filho. "Os militares não conseguiram moderar o presidente (como esperavam), não conseguiram conter a piora da imagem externa ao Brasil."
Além disso, afirma, tiveram seus membros e seus valores atacados por colegas de governo.
"Logo ficou claro que havia um conflito entre o bolsonarismo civil, ligado ao Olavo de Carvalho, e os generais que tinham ajudado a eleger o Bolsonaro. (...) Os generais que estavam no começo do governo foram demitidos, marginalizados ou xingados por alguém do governo. O único que ficou, e mesmo assim foi ofendido, foi Heleno [general Augusto Heleno, hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional], porque se adaptou ao bolsonarismo civil. (...) Também temos casos do bolsonarismo civil atacando valores das Forças Armadas", diz ele.
O professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) é referência em pesquisas sobre o governo militar, especialmente no que diz respeito a disputas internas entre militares nesse período. Criou o Arquivo de Política Militar Ana Lagôa e foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (2005-2008).
Passou a acompanhar e escrever sobre o governo atual após a vitória de Bolsonaro, quando entendeu que sua candidatura vinha sendo gestada entre militares por cerca de dois anos.
"Nós, que estudamos os militares, percebemos isso tudo tardiamente. (...) Assim como não previmos a politização das Forças Armadas, não previmos que o Bolsonaro trataria militares como tratou", diz o pesquisador.
BBC News Brasil - O senhor é referência no estudo do governo militar. Quando e por que começou a se dedicar a acompanhar e escrever sobre o governo atual?
João Roberto Martins Filho - Com a vitória do Bolsonaro, que foi de certa maneira imprevista, fomos ver o que tinha acontecido nas Forças Armadas nos anos anteriores e ficou claro que, uns dois anos antes, as Forças Armadas passaram a considerá-lo como uma opção para uma vitória da centro-direita e começaram a se politizar.
BBC News Brasil - O que aconteceu, na sua opinião?
Martins Filho - Nós, que estudamos os militares, percebemos isso tudo tardiamente. Víamos o Villas Bôas (general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército) como um homem que achava que as Forças não deviam interferir na política. Mas não percebemos dois processos importantes. Havia generais que desafiavam a disciplina com manifestações políticas, principalmente o Heleno (general Augusto Heleno, hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional), mas não só ele. Então o general Villas Bôas foi mudando de posição para ficar no comando da situação, ele mesmo assumindo um discurso de crítica aos governos do PT, coisa que ele não fazia.
Além disso, começaram a chamar Bolsonaro para participar de formaturas da Academia Militar das Agulhas Negras (escola de ensino superior do Exército que forma oficiais), onde ele fazia propaganda política e começou a ser visto como um modelo para os cadetes, o que ele nunca havia sido. Não percebemos isso no momento.
BBC News Brasil - Passado um ano, quais são suas impressões da situação dos militares no governo?
Martins Filho - Assim como não previmos a politização das Forças Armadas, não previmos que o Bolsonaro trataria militares como tratou. Logo ficou claro que havia um conflito entre o bolsonarismo civil, ligado ao Olavo de Carvalho, e os generais que tinham ajudado a eleger o Bolsonaro — eles chegaram a ter uma lista de 2 milhões de pessoas, membros das Forças Armadas e policiais, que recebiam regularmente mensagens por Whatsapp em apoio ao Bolsonaro. Não ganharam sozinhos, mas apoiaram ativamente. Então achávamos que haveria desgaste, mas não um confronto aberto.
O que aconteceu? Eles tiveram que reconhecer que o presidente era incontrolável. Talvez pensassem que, por serem generais e ele, capitão, teriam alguma ascendência sobre ele. Os generais que estavam no começo do governo foram demitidos, marginalizados ou xingados por alguém do governo. O único que ficou, e mesmo assim foi ofendido, foi Heleno, porque se adaptou ao bolsonarismo civil.
O Santos Cruz (general Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido do comando da Secretaria Geral da Presidência da República, um dos cargos-chave no governo, em junho), que era quem dava prestígio por causa de sua carreira, foi demitido sumariamente e de forma vergonhosa pelo presidente. Temos inúmeros casos de demissões.
Também temos casos do bolsonarismo civil atacando valores das Forças Armadas. Olavo de Carvalho disse que a última colaboração das escolas militares foram as obras do escritor Euclides da Cunha (1866-1909), e desde então "foi só cabelo pintado e voz empostada". O ano fechou com o ministro da Educação atacando diretamente o Deodoro da Fonseca [marechal que participou da proclamação da República e foi seu primeiro presidente], que é um grande símbolo para os militares, e comparando ele a Lula. Sofreram inúmeros reveses.
No plano internacional, o estilo de governo de Bolsonaro comprou briga com França, Alemanha, se alinhou incondicionalmente aos EUA, quase comprou briga com a China e mundo árabe ao aventar passar a embaixada para Jerusalém. Isso tudo foi colocando militares numa situação ruim porque são associados ao governo, mas é um governo muito imprevisível.
Foi um ano muito agitado. Nós que estudamos as Forças Armadas estamos profundamente desiludidos e preocupados com o que aconteceu.
BBC News Brasil - Eles próprios foram surpreendidos?
Martins Filho - Sim, e ficaram cada vez mais comprometidos. Depois da demissão do Santos Cruz, nomearam Luiz Eduardo Ramos, general da ativa, licenciado e ex-comandante militar do Sudeste. Quando ele foi perguntado o que pensava das eleições, disse que o Exército não tem lado, que seu candidato é a pátria. Seis meses depois, disse que uma dobradinha entre Bolsonaro e Moro seria imbatível. Qualquer criança percebe que é uma declaração partidária, pela eleição do Bolsonaro. Como um general da ativa se mistura de tal forma à articulação política? Não há como dizer que o Exército não se queimaria numa situação como essa.
BBC News Brasil - Como vê a relação do Alto-Comando com o governo um ano depois?
Martins Filho - Não temos detalhes sobre isso, mas é possível dizer que havia uma grande esperança, manifestada pelo próprio Villas Bôas, mas depois da demissão do Santos Cruz, ficou muito difícil. É nítido que o Alto-Comando sentiu o baque. Há alguns sinais sutis disso. Etchegoyen [general da reserva Sérgio Etchegoyen, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência no governo de Michel Temer] disse que militares não se envolveriam mais profundamente com o governo.
Foi nomeado como sucessor do general Ramos [para o Comando Militar do Sudeste] um general que foi chefe da segurança da Dilma, o que certamente desagradou Bolsonaro. O general Rêgo Barros [Otávio Rêgo Barros, atual porta-voz da Presidência] se candidatou para ganhar uma quarta estrela e entrar para o Alto-Comando, mas isso não aconteceu. Era esperado que, por ser próximo do presidente, estaria na lista, mas não estava. São indícios sutis de uma insatisfação no Alto-Comando. O problema é que não chegam à opinião pública. O que fica é a imagem das Forças Armadas intimamente vinculadas com o governo.
BBC News Brasil - O que acha que eles queriam e, disso, o que conseguiram?
Martins Filho - Tinham uma pauta oculta que era conseguir a reestruturação da carreira por meio da reforma da Previdência. Isso eles conseguiram, com poucas críticas, apesar de terem afetado negativamente a economia que o governo vai fazer com a reforma, e de terem melhorado muito seus salários, principalmente aqueles que estão mais avançados na hierarquia, a partir de coronel e general.
BBC News Brasil - Essa era o principal objetivo?
Martins Filho - Tem gente que acha que sim, que havia um objetivo material. Eu acho que o principal objetivo era voltar à política, mostrar que poderiam ajudar o governo e discretamente voltar à política. Essa era a grande aposta. Não aceitavam aquela situação prevista na Constituição de não interferir na política.
O segundo ponto era retirar do governo o máximo que pudessem em termos de melhorias materiais. Isso foi uma vitória do corporativismo, uma espécie de prêmio pelo apoio ao Bolsonaro.
BBC News Brasil - A reforma da Previdência privilegiou militares de alta patente em comparação aos de baixa patente. Houve bastante barulho sobre isso. Quais podem ser as consequências?
Martins Filho - Sim, houve tensão e até medidas no comando para impedir manifestações em redes sociais. Houve ordens de que nas redes sociais militares têm que respeitar disciplina e hierarquia. Houve desgaste, mas foi menor do que se esperava. O apoio ideológico a Bolsonaro entre praças e sargentos foi mais forte. Quem apostava numa rebelião apostou errado. Apesar da instatisfação, isso não ocorreu. A base dele nesses setores segue forte.
BBC News Brasil - Em que esse apoio se baseia agora?
Martins Filho - Ele sempre foi eleito por esses setores, as chamadas famílias militares. Existe uma identidade muito forte e ambígua dele como militar e como líder sindical desses setores. Essa última é tão forte que permanece. Ideologia pesa muito. A alternativa para esses setores mais baixos seria aceitar uma aliança com os partidos da esquerda, e isso eles descartam totalmente (deputados do PSOL defenderam praças nas discussões sobre a reforma no Congresso). Está claro que estão insatisfeitos, mas não há possibilidade de aliança com a esquerda.
BBC News Brasil - O que os militares não conseguiram nesse primeiro ano?
Martins Filho - Não conseguiram moderar o presidente, não conseguiram conter a piora da imagem externa ao Brasil — hoje, o Brasil tem uma imagem que não tinha desde a ditadura. Conseguiram coisas pontuais — evitar a transferência da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, evitar interferir na Venezuela. Eles deveriam ser contrários a essa deterioração da imagem do Brasil, mas hoje o conservadorismo entre eles não permite afirmar que houve um afastamento. Houve tensões, mas não afastamento.
BBC News Brasil - Qual foi o efeito da crise na Amazônia?
Martins Filho - Foi ambíguo. Em parte alguns militares ficaram preocupados com a briga com a França, mas também houve um surto de nacionalismo, alegações de que estrangeiros estavam tentando interferir na Amazônia. Essa crise beneficiou a aliança com Bolsonaro. Ele soube explorar isso bem porque houve uma espécie de reflexo nacionalista com relação a críticas internacionais. Acabou sendo favorável ao Bolsonaro.
BBC News Brasil - Quanto de influência os militares têm hoje?
Martins Filho - Menos do que achávamos no início do governo. Nunca achei que seriam o lado racional do governo, mas não esperava que fosse ser tão ruim para eles. Foi um desgaste muito grande. Ao mesmo tempo, o conservadorismo é muito forte e também o pragmatismo. Hoje, parecem ter uma visão mais curta, pensando no que podem tirar em termos de equipamentos militares dessa relação com os Estados Unidos, por exemplo. É um momento muito pobre em termos de pensamento das Forças Armadas. Estamos vivendo uma crise de prestígio que deveria preocupá-los.
BBC News Brasil - O sr. vê diferenças entre as gerações? Quem está hoje no governo se formou antes do retorno à democracia.
Martins Filho - Não vejo diferença. Gostaria de acreditar que, 35 anos depois, teríamos uma corrente democrática nas Forças Armadas que percebesse os danos que podem vir dessa associação com a política partidária. Infelizmente, não vejo crítica deles ao que aconteceu durante o governo militar e vejo um discurso de anticomunismo que justifica, na visão deles, o apoio ao Bolsonaro.
BBC News Brasil - A política voltou aos quartéis?
Martins Filho - Sim, não como naquela época, onde tudo passava por eles, mas acho que sim. São mais de 2.000 cargos para militares no governo. São aspectos que tocam no bolso.
BBC News Brasil - Como manifestações do presidente Bolsonaro, de seus filhos e também de ministros do governo relacionadas à ditadura militar ressoam entre militares?
Martins Filho - Estamos falando de um governo de extrema-direita. Essas declarações deveriam provocar grande incômodo nos militares, que supostamente seriam mais racionais e menos ideológicos, mas não estou vendo isso.
BBC News Brasil - O senhor parece surpreso com a postura dos militares nesse primeiro ano…
Martins Filho - Fiquei no começo, mas somos realistas, percebemos o quão pouco as Forças se democratizaram em termos de ideias desde o regime militar.
BBC News Brasil - Quando o senhor começou a pensar assim?
Martins Filho - No começo do governo Temer, com a ascensão do general Etchegoyen. Há pouca informação sobre a participação militar no processo do impeachment, mas o papel desempenhado por ele foi o de fiador do novo governo, para o que contou com o prestígio que tinha e tem no Exército. Etchegoyen integrou o núcleo decisório do governo Temer e, com a recriação do GSI, reconstruiu o sistema militar de inteligência no coração do Estado.
BBC News Brasil - Como o senhor acha que pode ficar a relação no futuro?
Martins Filho - Como está hoje. Uma tentativa de negar o óbvio, que há essa relação forte entre militares e o governo. A não ser que aconteça algo muito grave na economia ou [no cenário internacional], a relação deve continuar em banho-maria. É como disse o próprio Etchegoyen, 'não devemos nos comprometer mais, mas o governo tem mais coisas positivas do que negativas'. Acho que é essa a visão, no Exército especialmente.
BBC News Brasil - E na Marinha e na Aeronáutica? Por que há essa diferença e como ela se manifestou nesse primeiro ano?
Martins Filho - O Exército é muito mais numeroso e ativo politicamente. Houve apoio ao Bolsonaro nas outras Forças, mas o desgaste é maior entre elas. Parece haver mais condescendência com o Bolsonaro no Exército do que na Marinha e na Aeronáutica.
Bolsonaro tem tido um papel de divulgar o que foi o governo militar. Ele acaba associando os militares atuais com a ditadura, que é algo que eles não querem. Ele recebeu duas vezes a viúva do Ustra [Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI apontado pela Justiça como responsável por torturas e ídolo de Bolsonaro]. Que bem traz a eles lembrar a população que houve uma ditadura? O aniversário do golpe não foi comemorado na Marinha e na Aeronáutica. No Exército, sim, discretamente, mas chegou à primeira página dos jornais. Militares de outros países democráticos passaram a ver os militares brasileiros como politizados e de direita. Isso não pega bem.
O professor da Uerj Maurício Santoro fala ao ‘Nexo’ sobre os possíveis efeitos que o alinhamento brasileiro ao governo americano pode ter nas relações do Brasil com países do Oriente Médio
Foto: Alan Santos - 18.mar.2019/Presidência da República
O presidente Jair Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro (ao fundo) durante evento nos Estados Unidos
O governo do Irã pediu explicações ao Brasil sobre a nota divulgada pelo Itamaraty em apoio à operação dos Estados Unidos no Iraque que resultou no assassinato do general Qassim Suleimani, principal liderança militar iraniana. O pedido ocorreu no domingo (5), dois dias depois da divulgação da posição do governo brasileiro sobre o caso.
O general foi morto na madrugada de sexta-feira (3) após o carro em que estava ser atingido por um míssil disparado por um drone americano, perto do aeroporto internacional de Bagdá, no Iraque. A ação foi autorizada pelo presidente Donald Trump, que acusou Suleimani de planejar atentados a diplomatas e funcionários americanos na região.
Logo após a morte do general, o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, pediu vingança. Na noite de terça-feira (7), o país atacou com mísseis pelo menos duas bases aéreas que abrigavam tropas americanas no Iraque, em retaliação à ação dos EUA.
No domingo (5), Trump havia dito que responderia “de maneira desproporcional” a qualquer ação iraniana contra americanos no exterior. Em discurso nesta quarta (8), o presidente americano afirmou que a ofensiva do Irã contra as bases não deixou mortos e, adotando um tom mais brando, não falou em em retaliação militar. Em suas redes sociais, Bolsonaro gravou uma live acompanhando o pronunciamento.
A morte do general causou comoção no país persa e levou centenas de milhares de pessoas às ruas durante seu cortejo fúnebre. Um tumulto durante o funeral do militar, na cidade de Kerman, sua terra natal, deixou mais de 50 mortos e cerca de 200 feridos na terça-feira (7).
O pedido de explicações
O questionamento sobre a nota foi feito a representantes brasileiros em Teerã, capital do Irã. Encarregada de negócios da embaixada brasileira na cidade, Maria Cristina Lopes se reuniu com as autoridades iranianas no Ministério das Relações Exteriores do país para dar explicações, mas o teor da conversa não foi revelado. O embaixador do Brasil no Irã, Rodrigo Azeredo, não foi ao encontro por estar de férias.
O Ministério das Relações Exteriores brasileiro, comandado pelo chanceler Ernesto Araújo, confirmou a reunião, mas disse que seu teor é “reservado”. Segundo o Itamaraty, a conversa transcorreu com “cordialidade”, “dentro da usual prática diplomática”. Convocações do tipo são vistas, entretanto, como reprimendas.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, Maria Cristina Lopes foi orientada a dizer às autoridades iranianas que a nota do governo brasileiro não era uma manifestação contra o Irã e que a relação entre os dois países não poderia se reduzir ao tema abordado no comunicado.
Inicialmente, o presidente Jair Bolsonaro sinalizou que o governo poderia se manter distante do caso, mas a nota do Itamaraty criou um problema com um parceiro comercial. Em 2018, o Brasil exportou US$ 2,26 bilhões para o Irã, em produtos como milho, soja, açúcar e carne. Já as importações brasileiras de produtos semimanufaturados de ferro e aço do Irã somaram US$ 39 milhões.
As manifestações brasileiras sobre o caso
Consulta a Heleno e preço do combustível
Numa das primeiras manifestações sobre o tema, Bolsonaro disse a jornalistas, ao deixar o Palácio do Alvorada na sexta-feira (3), que iria se encontrar com o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, para “se inteirar” sobre o caso e poder “emitir seu juízo de valor”. Também se mostrou preocupado com o aumento do preço do petróleo devido ao conflito. “Já está alto o combustível, se subir muito, complica”, afirmou.
Sem armas nucleares para poder opinar
No final da sexta-feira, Bolsonaro voltou a tratar do assunto em entrevista à TV Band e disse que precisava tomar “cuidado com as palavras”. Ele disse seguir uma linha “pacífica” e que não podia dar “opinião tranquilamente sem sofrer retaliações” porque o Brasil não tem “forças armadas nucleares”. Mesmo assim, sugeriu que a ação americana se tratava de um exemplo de combate ao terrorismo.
A nota do Itamaraty pró-EUA
Na noite de sexta-feira (3), o Itamaraty divulgou uma nota sobre os “acontecimentos no Iraque”, sem abordar especificamente o ataque dos EUA ao general iraniano. O texto usa a palavra “terrorismo” cinco vezes, sem dizer abertamente do que se tratava, o que sugeriu que Suleimani, uma alta autoridade responsável por comandar a unidade de elite da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã, seria um terrorista. Os únicos episódios que o governo brasileiro condenou no comunicado foram os ataques à embaixada dos EUA em Bagdá, dias antes. Segundo o site UOL, a nota foi duramente criticadadentro do próprio Itamaraty por colocar em risco os interesses nacionais e quebrar uma tradição diplomática de propor o diálogo.
Ordem para manter silêncio sobre o caso
Na terça-feira (7), Bolsonaro evitou falar sobre o assunto e reafirmou repudiar o terrorismo. Ele disse que vai esperar o ministro Ernesto Araújo voltar de férias para tratar do episódio em que o Irã pediu explicações. Afirmou ainda que não houve nenhuma retaliação comercial contra o Brasil e que o país continuará fazendo negócio com os iranianos. Segundo o jornal O Globo, a ordem no Planalto é não falar mais do tema. A ala militar do governo considera que o país tem que se manter distante do conflito, mesmo que concorde com os EUA.
Uma análise sobre a posição brasileira
O Nexo conversou com Maurício Santoro, professor-adjunto do departamento de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) para entender as consequências da posição adotada pelo governo brasileiro em relação à crise no Oriente Médio.
Como o sr. avalia a nota do Itamaraty?
Maurício Santoro Na minha avaliação, é uma nota de apoio aos EUA e à morte do general Suleimani. Embora o texto não cite explicitamente o ataque que matou o general, toda a argumentação, toda a estrutura da nota é de apoio a essa morte, com a justificativa de que ela faz parte do combate ao terrorismo. E tem também uma condenação explícita, com todas as letras, aos protestos em Bagdá que culminaram no ataque à embaixada americana. É uma nota que, no seu tom e no seu estilo, foi mais longe do que a nota da Otan a respeito do ataque, ou a nota do Reino Unido, que são aliados tradicionalíssimos dos EUA. A Otan é uma organização militar da qual os próprios EUA são parte. É realmente algo que destoa do que é o posicionamento tradicional brasileiro nas guerras no Oriente Médio.
Com a nota, o Brasil classifica as forças iranianas como terroristas?
Maurício Santoro Ao contrário, por exemplo, da União Europeia, ou dos EUA, o Brasil não tem, ou pelo menos não tinha até o governo Bolsonaro, uma lista de organizações ou regimes políticos considerados como terroristas. O que o Brasil fazia era condenar atos individuais de terrorismo, mas não classificar, por exemplo, o Hezbollah, como terrorista. O que o Brasil fazia era simples: fazer a crítica dos atos em si. A nota é muito abrangente, mas dá a entender, e acho que é uma interpretação legítima, de que a força Al Quds, que era a unidade comandada pelo general Suleimani, seria uma organização terrorista ou envolvida em crimes desse tipo, uma vez que o assassinato de seu comandante se justificaria como parte desse combate internacional terrorista.
O que significou o pedido do Irã de explicações ao Brasil?
Maurício Santoro Significa que o embaixador brasileiro vai ter que dizer exatamente o que essa nota significa. Com todas as letras: o que o Brasil pensa sobre o assassinato do Suleimani, qual é a posição brasileira em relação às ameaças que estão sendo feitas contra o Irã. Do ponto de vista diplomático, é um indicador muito forte de que “nós não gostamos do que vocês escreveram e me deem o detalhes disso”. Eu não acredito, a princípio, que isso resulte em nenhuma grande perda para o Brasil. O Brasil não é um ator importante dentro dessas tensões armadas que estão se desenhando no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, é um fornecedor relevante de comida para o Irã. As exportações agrícolas brasileiras, e a carne, são importantes para o Irã. Não acredito que o Irã vá correr algum risco em relação a esse comércio por causa da retórica exacerbada do Brasil. Mas é uma coisa que traz uma tensão desnecessária para a diplomacia brasileira, que traz um problema onde antes não existia nenhum. O que realmente destoa do que tradicionalmente é a política externa brasileira para o Irã ou para o Oriente Médio em geral.
O caso pode aumentar a tensão entre as alas militares e ideológica dentro do governo brasileiro?
Maurício Santoro Certamente. Eu diria que, na verdade, há uma tensão entre os militares e o agronegócio, pressionando por uma posição mais moderada por parte do Brasil, e essa ala que envolve o chanceler Araújo, o [deputado] Eduardo Bolsonaro, a família do presidente de uma maneira geral. E a gente vê essa queda de braço dentro do próprio governo nas manifestações contraditórias do Brasil desde a morte do Suleimani. Por exemplo, logo no início, as primeiras falas do Bolsonaro foram indicadores de que o Brasil não ia ter uma declaração de peso, de que a gente não tem capacidade nuclear para falar disso. Depois, veio essa nota do Itamaraty. Isso mostra, também, que já há um debate acontecendo dentro do próprio governo e que pelo menos, momentaneamente, foi vencido por esse lado mais radical que está enxergando nessa crise do Oriente Médio uma oportunidade de o Brasil afirmar uma vez mais a busca dessa relação preferencial com os EUA. Foi uma busca que, diga-se de passagem, ao longo de 2019 não resultou em benefícios econômicos para o país. Pelo contrário. Houve uma série de disputas: aquele anúncio do Trump de querer aumentar a tarifa para o aço brasileiro, depois o Bolsonaro disse que o Trump tinha voltado atrás, mas o Trump até agora não confirmou nada disso. Foi uma diplomacia que não apresentou os resultados esperados pela ala ideológica do governo no primeiro ano. Num certo sentido, é uma diplomacia que está na berlinda, sob questionamento.
Que impacto pode ter no Oriente Médio esse alinhamento aos EUA?
Maurício Santoro No longo prazo, pode ser que aponte para uma diplomacia brasileira mais complicada no Oriente Médio. Não foi o que aconteceu no primeiro ano do governo Bolsonaro. O que a gente viu, passado aquele primeiro momento de uma retórica de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel, o que houve foi a manutenção das posições tradicionais do Brasil, sobretudo por causa da pressão do agronegócio. Tanto o Irã quanto os países árabes são parceiros econômicos importantes para o Brasil, que tem superávits bilionários no comércio com esses países. Se a gente estiver diante de uma crise prolongada no Oriente Médio, que degenere para uma nova guerra na região, é possível que isso perturbe esse tenso equilíbrio do primeiro ano do governo Bolsonaro e que leve a uma diplomacia mais ideológica para o Oriente Médio, nessa busca de afirmar essa relação especial com os EUA.
A preocupação é estritamente comercial?
Maurício Santoro Até houve no governo Lula uma tentativa de ter uma posição política mais forte no Oriente Médio, aquele esforço do Brasil e da Turquia de mediar um acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, mas essa tentativa acabou abandonada depois que houve uma rejeição muito grande das grandes potências a isso, e ela não foi retomada nem no governo Dilma nem nos governos posteriores. Basicamente o que tem sido a política externa brasileira para o Oriente Médio, ao longo do últimos dez anos, é basicamente a busca de mercados, a ampliação dessa oportunidade para o agronegócio, sem que haja um grande envolvimento do Brasil em negociações políticas na região.