Quando alguém lê Isaiah Berlin, sente-se em boas mãos: uma conversa com Henry Hardy
por Rodrigo Coppe Caldeira e Jonathan Goudinho
Isaiah Berlin (1909-1997) foi um dos maiores intelectuais do século XX. De origem judaica, nasceu em Riga, atual Letônia, à época pertencente ao Império Russo, emigrando com a família para o Reino Unido ainda jovem. A mistura fina entre as culturas judaica, russa e britânica moldaram seu espírito e suas formulações intelectuais. Como filósofo e historiador das ideias, tornou-se célebre por duas contribuições em particular: o significado e a aplicação do conceito de liberdade, com a icônica distinção entre as liberdades negativa e positiva, e a noção de pluralismo dos valores morais e culturais, com a igualmente representativa metáfora do ouriço e da raposa. Presenciou a Revolução Russa, a Primeira e a Segunda Grandes Guerras, a Guerra Fria e os horrores do nazismo e do comunismo. Morreu aos 88 anos, em Londres, celebrado como um dos principais pensadores liberais do século.
Berlin era um grande orador, “o maior falador do mundo”, como muitas vezes foi nomeado. Milhares de pessoas compuseram sua audiência em aulas, palestras, discursos, entrevistas e participações em programas de rádio e televisão. Ele também era um exímio ensaísta, com linguagem tão compreensível que poderia enganar incautos com a ilusão de que interpretar pensadores como Giambattista Vico, Johann G. Herder e Aleksandr Herzen fosse tarefa fácil. O que nem todos sabem é que este polímata judeu-russo não era muito afeito a sistematizar seu pensamento em textos bem organizados. O conjunto de sua obra permaneceria esparso e desconhecido se não fosse a persistência de um então entusiasmado estudante de doutorado, o filósofo Henry Hardy (1949).
Hardy conheceu Isaiah Berlin em 1972 na Universidade de Oxford, instituição na qual Berlin construiu toda a sua carreira acadêmica (como estudante, professor, pesquisador e gestor). As primeiras conversas nos espaços comuns do Wolfson College logo despertaram em Hardy o interesse em se aprofundar no pensamento de Berlin, surgindo a proposta da publicação de um volume com alguns de seus ensaios. A primeira coletânea foi Russian Thinkers, publicada em 1978. De lá para cá, Henry Hardy não parou mais: editou ou coeditou 18 livros com textos de Berlin, preparou a publicação de quatro volumes com correspondências do filósofo (que percorrem os anos de 1946 a 1997), e recorrentemente colabora com outros estudiosos do pensamento de Isaiah Berlin.
Desde 2000, Henry Hardy mantém a The Isaiah Berlin Virtual Library (https://berlin.wolf.ox.ac.uk/), um acervo do trabalho de Berlin e outras referências importantes para compreender sua reflexão. Recentemente, em outubro de 2018, lançou In Search of Isaiah Berlin: A Literary Adventure, um precioso livro de memórias que envolve tanto sua atuação como editor quanto a de intérprete do pensamento berliniano. A nova edição de The Sense of Reality: Studies in Ideias and Their History, uma coletânea de ensaios de Berlin, acaba de ser publicada pela Princeton University Press. Atualmente, Henry Hardy é pesquisador honorário do Wolfson College, do qual Berlin foi entusiasta e primeiro presidente.
Hardy conheceu Isaiah Berlin em 1972 na Universidade de Oxford, instituição na qual Berlin construiu toda a sua carreira acadêmica
Profundo conhecedor não somente das formulações intelectuais, mas também do próprio Isaiah Berlin, Hardy concedeu esta entrevista ao Estado da Arte por e-mail, abordando temas caros a Berlin que permanecem presentes no debate público contemporâneo. Como principal curador literário de Berlin, Henry Hardy dá razões suficientes para a atualidade do pensamento desse intelectual que tornou as ideias políticas tão fascinantes quanto possível.
Rodrigo Coppe e Jonathan Goudinho: Em “Uma Mensagem para o Século XXI” (Âyiné, 2016), o “credo breve” de Isaiah Berlin, ele tece notas de otimismo em relação ao “futuro brilhante” que projetava para o novo século, afirmando haver razões suficientes para tal. Curiosamente, ele não deixa tão claro quais seriam essas razões. Você, que o conhecia tão bem, saberia apontar quais eram suas esperanças?
Henry Hardy – A passagem final desse texto é estranhamente otimista, e os eventos subsequentes fazem com que pareça excessiva. Devemos nos lembrar que o texto foi escrito para uma cerimônia de graduação [doutorado honorário em Direito] em Toronto, e talvez ele quisesse encorajar seu público a ser esperançoso com a humanidade. Contudo, há uma tendência em todo o trabalho de Berlin de ‘acentuar o positivo’ na natureza humana e subestimar o negativo. É claro que ele reconheceu o quão espantosamente podemos nos comportar, como fez no começo desse discurso, e ele não era um panglossiano simplista. Mas seu temperamento era caloroso e positivo, e ele preferiu se concentrar em nossas potencialidades benéficas. Elas existem, é claro, e embora haja retrocessos e avanços na nossa luta para melhorar o estado político do mundo, acho que no geral Berlin acreditava que o bem prevaleceria sobre o mal, ainda que a luta nunca terminasse e fosse renovada em cada geração. Aqui ele fala do poder da racionalidade, da tolerância e da democracia liberal para melhorar o nosso mundo. Ele acreditava, em geral, no poder das ideias, considerando ser dever dos pensadores profissionais promover as boas e desacreditar as más, para que estas não ganhassem influência. No discurso, ele está cumprindo esse dever e, ao fazê-lo, fornece motivos para a esperança.
Quase 25 anos depois de “Uma Mensagem para o Século XXI”, que avaliação é possível ser feita sobre as esperanças de Berlin em relação ao que a realidade tem mostrado?
Henry Hardy – Deve-se admitir que, em retrospecto, podemos ver que o otimismo de Berlin foi até certo ponto prematuro. Se isso é um revés temporário ou um caso de “reculer pour mieux sauter”, ainda não se tem certeza. Mas se não buscarmos melhorias, mesmo a um nível irreal, nunca conseguiremos alcançá-lo. Portanto, o erro de Berlin, se for isso mesmo, é certamente um erro na direção certa.
Berlin repetidamente criticava o “sacrifício humano nos altares das abstrações” (em uma referência à Aleksandr Herzen), isto é, a entrega total a grandes causas morais e políticas, como o comunismo, o nazismo e o nacionalismo. Quais seriam os novos altares do nosso tempo? O que Berlin teria a dizer, por exemplo, sobre as controversas causas identitárias de hoje?
Henry Hardy – O principal altar do nosso tempo me parece ser a crença religiosa fundamentalista, especialmente como visto entre muçulmanos fanáticos. Em minha opinião, esse sempre foi um dos principais altares em que os humanos foram sacrificados, e lamento que Berlin não tenha insistido mais nisso. O fundamentalismo religioso é um exemplo perfeito da excessiva certeza monista totalitária à qual ele se opunha terminantemente, mas que por alguma razão não viu dessa maneira. Quanto à política de identidade, não há nada de errado com isso em princípio. Na verdade, é outra maneira de descrever a necessidade de pertencer que Berlin, seguindo J. G. Herder, acreditava ser fundamental e permanente na natureza humana, e não uma aberração temporária que deveríamos aspirar a transcender. Contudo, isso pode sair do controle, como foi com o nacionalismo, e se tornar agressivo e maligno. Uma identidade não deve ser promovida às custas de outra igualmente legítima, e não devemos nos tornar fanáticos por questões de identidade, vendo tudo como algo que apoie ou seja hostil a esse propósito primordial. Mantida sob controle, a identidade (ou um grupo de identidades sobrepostas) faz parte de uma vida humana normal e saudável.
O nacionalismo foi outro tópico recorrente no pensamento de Isaiah Berlin, que já demonstrava preocupação com o fenômeno em textos da década de 1990. O que temos visto atualmente, com a explosão de novos nacionalismos ao redor do mundo, fazia parte do diagnóstico de Berlin? Como você avalia, por exemplo, fenômenos como o Brexit, no seu Reino Unido?
Henry Hardy – Sim, o relato de Berlin sobre o nacionalismo em termos de uma reação à humilhação nacional se encaixa em muitos desenvolvimentos modernos. Ele aprovou a consciência nacional benigna, que é parte da identidade aceitável e necessária mencionada na minha resposta anterior. Mas quando isso saiu do controle, tornando-se autoafirmativo às custas de outras instâncias de pertença nacional, ele viu como algo injustificável e destrutivo a ser preterido. Quanto ao Brexit, não me parece ser necessariamente um caso de nacionalismo maligno. Há uma questão real sobre qual é o melhor tamanho para as unidades políticas e quantas culturas diferentes podem ser efetivamente administradas a partir de um único centro. Imagine uma democracia mundial: isso seria uma receita para o caos. Parte do apoio ao Brexit se deve à Europa ser vista como uma unidade política muito grande para funcionar bem para todos os seus povos constituintes, cujas necessidades e identidades diferem, às vezes profundamente. Outra razão é que, em algum grau, [a Europa] é antidemocrática, e se a pessoa acredita na democracia em princípio, essa é uma lacuna grave. É claro que existem outros casos, como os EUA, onde unidades ainda maiores operam com uma medida de sucesso, mas o contexto histórico é completamente diferente.
Embora Isaiah Berlin seja muito conhecido pela discussão sobre os conceitos de liberdade, sua principal contribuição intelectual é a doutrina do pluralismo, que à época de sua formulação já era uma noção desafiadora. Qual é a relevância do pluralismo de Berlin nos nossos dias, em que parece haver um acirramento de grupos disputando a hegemonia cultural?
Henry Hardy –O pluralismo, se verdadeiro (e certamente eu acho que é), está na raiz de uma compreensão adequada da situação humana, e se aplica em todos os níveis, individual e coletivo, de choques dentro da consciência de uma pessoa à incompatibilidades entre culturas e nações. Nesta época de globalização, na qual culturas diferentes não vivem mais isoladas umas das outras, precisamos mais do que nunca de uma compreensão verdadeira da relação entre bens e objetivos diferentes, entre uma ampla variedade de aspirações culturais incompatíveis, para que as diferenças não levem a conflitos desnecessários. O pluralismo gera tolerância e compreensão mútua entre indivíduos e grupos de todos os tamanhos. Monismos rivais derramam sangue. O próprio termo “hegemonia cultural” reflete um entendimento errado das relações das culturas entre si. Não é a questão de uma cultura dominar outra, mas de coexistir com ela de forma pacífica. Berlin acreditava que uma cultura deveria ser preponderante em uma dada entidade política em favor de um mínimo de coesão e ordem necessários, mas esse papel não é sensivelmente descrito como “hegemonia”, termo que tem reflexos indesejados de supressão e superioridade. O pluralismo é uma maneira de compreender conflitos de valores, identidades e culturas que torna possível vê-los como aspectos positivos de uma humanidade saudável, não como batalhas que devem ser vencidas por um dos competidores em detrimento dos outros. Nós vivemos em um jardim de muitas flores.
Há décadas existe uma disputa sobre as posições ideológicas de Isaiah Berlin: foi admirado pela direita, visto com desconfiança pela esquerda e simpático à social democracia. No cenário político atual, com tamanha polarização e radicalização, qual seria o posicionamento de Berlin, o filósofo do conflito e do diálogo?
Henry Hardy – Berlin escreveu “Se alguma vez houve um liberal de centro, extrema-esquerda da direita e extrema-direita da esquerda, sou eu mesmo”. Ele acreditava em uma quantidade generosa de liberdade negativa, mas também apoiava o New Deal e o Welfare State. Ele se identificou com Turgenev, que estava aflito com a capacidade enlouquecedora de ver todos os lados de uma questão com igual convicção. Isso é o que ele chamou de “a situação liberal”, e não me parece um motivo de disputa, exceto entre aqueles que anseiam por soluções excessivamente simples. Como Turgenev, ele não conseguiu se simplificar. Suas visões e vida refletem seu reconhecimento do pluralismo, que é complicado, mas realista.
Nos últimos anos, o Brasil está experimentando uma “onda liberal”, com grupos que se fortaleceram à medida que os governos de esquerda fracassaram. Que lição Berlin deixaria para aqueles que estão sendo iniciados na doutrina política liberal?
HH: “Neither a be-all nor an end-all be” (um lema outrora sonhado pelo filósofo J. L. Austin). Reconheça o múltiplo, não entre em conflito por uma única perspectiva. Tolere a diferença, não a enfrente, a menos que seja maligna. Entenda a natureza humana da melhor maneira possível e use essa compreensão como base para decidir o que deve ser aceito e o que deve ser resistido; o que deve ser reforçado e o que deve ser corrigido.
Em ‘In Search of Isaiah Berlin’, seu novo livro, você dedica parte considerável para tratar de pluralismo e religião. Atualmente, vários países experimentam um novo vigor das disputas entre grupos religiosos e não-religiosos (ou seculares) no debate público. Que lições as ideias pluralistas podem oferecer nesse cenário?
Henry Hardy – Um bom pluralista tolerará as crenças religiosas mesmo que não concorde com elas, desde que elas próprias não conduzam à intolerância a outras crenças desse tipo. No entanto, eu próprio acredito que o pluralismo é incompatível com as principais religiões do mundo, que me parecem inevitavelmente monistas e, portanto, propensas à intolerância e ao autoritarismo. Portanto, sou a favor de um estado secular; sou um oponente da religião organizada, e defendo que é dado à religião muito espaço no discurso público. (Berlin, devo acrescentar, provavelmente não compartilhava plenamente dessa visão, pelo menos na forma em que a sustento.)
Nos últimos anos, houve um considerável interesse no conjunto da obra de Isaiah Berlin ao redor do mundo. A que você atribui isso? Que tipo de sinal essa busca pelo trabalho de Berlin parece indicar?
Henry Hardy – Berlin me parece ser um pensador de grande humanidade e sabedoria, que aborda os problemas humanos centrais em prosa acessível e elegante. Sua compreensão da natureza humana, seu “senso de realidade”, é raro e profundo, e qualquer pessoa inteligente que queira fazer perguntas sondando sobre a situação humana, encontrará em seus escritos uma rica mina de insights satisfatórios. Quando alguém o lê, sente-se em boas mãos.
Jonathan Goudinho é jornalista e mestrando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
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Rodrigo Coppe Caldeira
Rodrigo Coppe Caldeira é Historiador e Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É líder do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LeRMOT) da PUC Minas. (As opiniões do autor são de cunho pessoal e não refletem necessariamente a posição oficial da instituição). (Twitter: @rodrigocoppe)