Reunião na sede da OCDE.
OCDE, “clube dos ricos”? O epíteto parece ter sido lançado com intuito pejorativo, pois, estritamente, a OCDE em nenhuma época chegou a ser composta apenas de países ricos. Quando foi fundada, em 1961, por países europeus mais os Estados Unidos e Canadá, a Irlanda estava entre os fundadores e ainda era um país agrícola longe de ser rico.
Aliás, quando começou, em 1948, para administrar o Plano Marshall de reconstrução da Europa, era um conjunto de países devastados pela guerra, e se chamou Organização para a Cooperação Econômica Europeia (OCEE), sublinhando a interdependência entre países europeus. Com o fim do Plano Marshall, deu-se a adesão dos Estados Unidos e do Canadá e foi criada a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 1961. Os Estados Unidos, em pleno período de auge da Guerra Fria, tratavam de não perder influência na Europa. Originalmente teve 22 países, e fora Estados Unidos e Canadá, eram todos europeus: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça, e Turquia (que nunca se decidiu entre ser Europa e ser Oriente Médio).
Já no ano seguinte começa a se ampliar, com a entrada da Itália em 1962 e depois, em 1964, do Japão. Continuou se expandindo, para todas as regiões, e hoje tem 38 países. O último a entrar, ano passado, foi a Costa Rica, e assim, com México (1994), Chile (2010) e Colômbia (2020), a OCDE já tem quatro países latino-americanos, seus membros mais pobres, qualquer que seja a maneira de calcular. O PIB per capita menor (segundo estimativas da OCDE a preços constantes e taxa de câmbio de paridade de poder de compra constante) é o da Colômbia, uns 13 mil dólares, e o maior o de Luxemburgo, uns 107 mil. O PIB per capita médio da OCDE é 41 mil, em dólar PPP (“purchasing power parity”, paridade de poder de compra), mas os países europeus mais ricos estão na casa dos 50 mil de PIB per capita, uns mais, outros menos. Nessa mesma estimativa, o PIB per capita dos Estados Unidos está em 58 mil dólares PPP e o da Irlanda em 88 mil. Claro que os números são diferentes quando a conversão se faz em dólar corrente, que dá o PIB afetado pela conjuntura cambial do momento em cada país.
Pelo visto, “clube dos ricos” não é. O objetivo mais amplo da OCDE, no entanto, é promover o bem-estar econômico de seus membros. Para isso pretende ser, por assim dizer, um “clube da boa governança”, até um “clube das melhores práticas” em democracia. “Better policies for better lives”, “Melhores políticas públicas por uma vida melhor”, é o lema. De maneira muito geral, ser membro da OCDE significa que o país está alinhado com as melhores práticas de governança, está disposto e tem capacidade de fazer reformas para cumprir os padrões da OCDE. Essa não é uma mera formalidade. Ela se inicia por pedido escrito pelo país que quer tornar-se membro. O Brasil fez este pedido em 2017, mas só no fim de janeiro de 2022 o Conselho da OCDE “decidiu abrir discussões de acesso com seis candidatos a serem membros da OCDE – Argentina, Brasil Bulgária, Croácia, Peru e România”, três latino-americanos, três do leste europeu.
Entre abrir discussões de acesso e o convite para ser membro há um longo caminho. Para que o Conselho da OCDE decida convidar um país a ser membro há um processo técnico detalhado levado a cabo por comitês da OCDE, em diferentes áreas de políticas públicas, como comércio e investimento, governança pública, integridade e esforços anticorrupção, bem como proteção do meio ambiente e ações relativas à mudança climática. Não há prazo para esse processo e a decisão final sobre o acesso tem que ser aprovada por unanimidade no Conselho. Os comitês técnicos especializados avaliam não só a disposição, mas a capacidade do país candidato de implementar os padrões da OCDE. As revisões técnicas nas várias áreas podem levar a recomendações para que o país candidato faça mudanças de legislação, políticas e práticas para que correspondam às melhores práticas e padrões da OCDE. (São muitas as áreas de atuação, como se vê em legalinstruments.oecd.org/en/instruments.)
As revisões técnicas abrangem o monitoramento do cumprimento de convenções internacionais sobre temas específicos, como acordos de comércio internacional, ou a Convenção Antissuborno da OCDE, da qual o Brasil é signatário desde a sua criação, em 1997.
Mesmo um exame superficial do que são os valores, padrões e prioridades da OCDE adverte o quanto ainda está longe o Brasil, neste momento, do alinhamento e dos padrões necessários para ser membro da OCDE, a despeito da resposta à carta do Secretário-Geral da OCDE sobre o início das discussões de acesso, em que o governo brasileiro afirma comungar dos valores da OCDE. E a despeito de o Brasil ter completado boa parte das negociações setoriais que abrangem centenas de questões específicas, inclusive na área da tributação, como o acordo de bitributação recentemente assinado com os Estados Unidos. Valerá uma adesão meramente retórica?
A nota do Conselho, sobre a decisão de abrir discussões de acesso, informa que o início do processo depende de o país confirmar “sua adesão aos valores, visão e prioridades refletidas na Declaração de Visão do 60º Aniversário da OCDE e na Declaração do Conselho Ministerial de 2021”. A adesão a esses dois documentos detalhados como pré-condição para preparar o mapa do processo de acesso aparece também na carta de 25 de janeiro de 2022 ao Presidente Jair Bolsonaro, assinada por Mathias Cormann, Secretário-Geral da OCDE. (www.oecd.org/newsroom/Letter-to-H-E-Mr-Jair-Bolsonaro-President-Brazil.pdf)
São reafirmados na carta da OCDE os valores comuns dos membros: de democracia; economia baseada em princípios de mercado; livre comércio e sistema multilateral de comércio com regras acordadas e tendo a OMC ao centro; transparência e assunção de responsabilidade por resultados (accountability) no governo e empresas; primado da lei (estado de direito); igualdade de gênero; proteção dos direitos humanos; e sustentabilidade ambiental. Mas a menção aos documentos mais recentes, de 5-6 de outubro de 2021, remete explicitamente a uma adaptação a novos desafios e a prioridades imediatas: “vencer a crise de saúde e socioeconômica causada pela pandemia da Covid–19 e construir uma recuperação verde, inclusiva e resiliente para todos”. Ênfase é colocada no esforço de vacinação e na igualdade de gênero, apoio à COVAX e ao Acordo de Paris, bem como às decisões da COP 26.
Existe um detalhamento sobre as medidas a serem tomadas para melhor cumprir os objetivos prioritários. É significativo que o título da Declaração do Conselho Ministerial de 5 de outubro de 2021 seja “Valores Compartilhados: um Futuro Verde e Inclusivo”. Inclui um apelo por esforços para tornar esta a Década da Ação pelo clima. Inclusive alcançar a meta global de emissões zero de CO2 e outros gases de efeito estufa em 2050, e conter e reverter a perda de biodiversidade e o desflorestamento.
Vai na mesma linha o conteúdo do documento com que o Conselho da OCDE comemorou o aniversário de 60 anos da fundação da OCDE e apresentou seus propósitos para a próxima década “Trust in Global Cooperation: the vision for the OECD for the next decade (Confiança na Cooperação Global: a visão para a OCDE para a próxima década).
Esses documentos de 2021 não lidam com corrupção diretamente, em tese inexistente se há boa governança no Estado e nas empresas. Há somente uma referência à necessidade de combater comércio ilegal, entre as várias medidas para abertura ao comércio internacional. Mas é impossível ignorar a questão nas relações Brasil-OCDE, dadas as várias notas públicas de “preocupação” com o Brasil, emitidas em 2019 pelo Grupo de Trabalho da OCDE sobre Suborno, que monitora a Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais.
Existe um processo bem estabelecido de monitoramento de como cada país-membro cumpre e obriga o cumprimento da Convenção Antissuborno de 1997 e suas recomendações de 2009. Esse processo tem quatro fases, com relatórios que avaliam os esforços do país em implementar as recomendações específicas do Grupo de Trabalho. Ele inclui uma lista não fechada de 12 passos subsequentes e ações possíveis em caso de implementação inadequada da Convenção por um país. A avaliação da fase 3, no Brasil, foi publicado em outubro de 2014. Para que se tenha ideia do detalhamento e de quanta legislação é examinada, tem 99 páginas, das quais 27 são de recomendações. Tudo isso pode ser verificado em oecd.org, tudo isso é público. A próxima avaliação, a da fase 4, está prevista para dezembro de 2022.
Públicas também são as notas de julho, de outubro, e de novembro de 2019. A última, após o envio inédito de uma Missão do Grupo de Trabalho Antissuborno a Brasília em 12 e 13 de novembro, e disponível em inglês e português, é grave já no título: “O Brasil deve cessar imediatamente ameaças à independência e à capacidade das autoridades públicas de combater a corrupção”. O tema delas é principalmente a lei de abuso da autoridade e a lei que criou o COAF e sua ampliação, alertando para os riscos de uma definição vaga do que seja abuso de autoridade e para as limitações ao uso de relatórios da Unidade de Inteligência Financeira (ex COAF), da Receita Federal e outros órgãos em investigações criminais, o que prejudicaria a capacidade de detectar e combater corrupção. (oecd.org/corruption/anti-bribery/o-brasil-deve-cessar-imediatamente-as-ameacas-a-independencia-e-a-capacidade-das-autoridades-publicas-para-combater-a-corrupcao.htm)
Quando o Presidente brasileiro Jair Bolsonaro saudou o que ele chamou de “convite da OCDE” como “prova de sucesso da política externa [do Brasl] tão criticada pela mídia” apenas mostrou mais uma vez sua ignorância e mais uma vez, ao distorcer a repercussão de seus comportamentos na arena mundial, expôs o Brasil à chacota internacional. A fanfarronice do Presidente do Brasil deturpa o que foi a proposta da OCDE. Muitos analistas consideraram paradoxal a inclusão do Brasil entre os países que devem iniciar o processo de adesão, dada a má reputação internacional do governo Bolsonaro, sobretudo na agenda ambiental, e dada a advertência formal que a OCDE fez ao Brasil em outubro/novembro de 2019 sobre o risco de retrocesso no combate à corrupção. A explicação que circulou é que a maior parte dos membros da OCDE está convencida de que o Presidente Bolsonaro perderá as eleições de outubro e esperam lidar com um novo Presidente a partir do ano que vem. A ideia é oferecer uma espécie de antídoto contra populismo. Oxalá.