O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Reviravoltas da História - Paulo Roberto de Almeida

Reviravoltas da História

Paulo Roberto de Almeida


A reforma da Lei das Estatais, para abrigar companheiros e seus associados em cargos de direção e nos conselhos de administração dos dinossauros públicos, constitui mais um passo no caminho para Sua Majestade Lula III virar uma espécie de Luís XVIII da República brasileira, um Bourbon tupiniquim, da mesma família daqueles que “não aprenderam nada e não esqueceram nada”.


A Restauração francesa, depois dos ciclos revolucionário e napoleônico, não durou dez anos: depois dos Bourbons, vieram os Orleans, aliás conhecidos por aqui também. Foram igualmente descartados na revolução seguinte, que criou uma efêmera terceira república, que rapidamente sucumbiu a um novo Império, por sua vez aniquilado mais adiante. A França conseguiu ter mais repúblicas do que o Brasil, e muito mais constituições (se não me engano 14, quase o dobro das nossas).


Existe algo próximo à promiscuidade autoprotetora nos círculos dirigentes e entre os membros de certas elites do poder, o que os faz defender a cooptação dos “mais iguais”, como Orwell, no Animal Farm, chamava aqueles que tinham ascendido ao pináculo do poder estatal e passavam a reproduzir as deformações do Antigo Regime. Essa “revolução dos bichos” também é muito conhecida entre nós, e não precisa ser nenhum Orwell para detectar os mesmos movimentos.


Lula III, por gosto ou necessidade, precisa premiar os companheiros não eleitos e mais alguns aliados de ocasião na festa do poder, mesmo que estes não sejam tão “iguais” quanto a companheirada do primeiro escalão.

Não tem problema: se não tiver estatais suficientes, criam-se mais algumas, como já feito sob Lula I e Lula II. 


Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, dois grandes intelectuais italianos, descreveram muito bem os fenômenos da rotação e da circulação das elites. Lula certamente não deve conhecer esses analistas, mas ele nem precisa se guiar pela teoria. Ele atua por instinto, um pouco como comentava outro italiano, Lampedusa, aquele que dizia que “é preciso que algo mude, para que tudo continue como sempre foi”.


Gatopardianamente, o Brasil de Lula III vai ficando mais ou menos parecido com o Brasil de Lula I e de Lula II. 

Espera-se apenas que não termine como Dilma 1,5…


Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 24/01/2023

quarta-feira, 31 de março de 2021

Ditadura militar: nota zero em democracia, e zero também em economia - Felippe Hermes

 Felippe Hermes

Não há pontos positivos na ditadura – nem mesmo a economia no período

Período marca o início de um intervencionismo sem fim, responsável por produzir a ilusão, que reina até hoje, de que gerou evolução ao país, ao menos no campo econômico

sábado, 30 de março de 2019

Problemas de um privatizador obstado pelas mentalidades estatizantes - Salim Mattar

Ricardo Bergamini sempre cáustico transcreve matéria da Veja sobre as tribulações de um privatizador sem apoio na burocracia pública.
Mas o privatizador, Salim Mattar, também exagera ao dizer que o "governo vai bem"...
Paulo Roberto de Almeida

Pelo histórico do presidente Bolsonaro, confesso que sempre tive muitas dúvidas de sua mudança radical de postura em relação ao pensamento Liberal, já que a sua prática legislativa de 28 anos foi na defesa do estado forte e controlador. 
Se for apenas uma armação para ser eleito, em breve a debandada do Ministério da Economia e do Banco Central será pública e notória.
Ricardo Bergamini

SALIM  M ATTAR:   “ESTOU FRUSTRADO”
https://www.institutomillenium.org.br/wp-content/uploads/userphoto/160.thumbnail.jpg

29/03/2019
O empresário Salim Mattar se orgulha de ter transformado uma empresa com seis Fuscas na maior locadora de automóveis da América Latina. Com um patrimônio superior a 1 bilhão de reais, ele foi escalado pelo presidente Jair Bolsonaro para conduzir o segundo pilar da política econômica do governo: o programa de desestatização. Em três meses de Brasília, o secretário conta que, na largada, já percebeu o tamanho da dificuldade que terá de enfrentar. Além dos poderosos interesses corporativos, Mattar enfrenta obstáculos no próprio governo. Para evitar intrigas, não apon­ta os setores dos quais vem a resistência à implementação do programa. Cita apenas um: o Ministério da Ciência e Tecnologia, comandado por Marcos Pontes, cujo secretário executivo já disse, segundo Mattar, que sua pasta não vai privatizar nenhuma de suas estatais. O secretário acredita que as rusgas internas são fruto da falta de informação, apenas isso. A orientação que continua valendo é a que recebeu do presidente: passar para a iniciativa privada o controle de mais de 100 estatais. “Ando com os discursos e com os tuítes do presidente dentro da minha pasta”, diz. A seguir, sua entrevista.
Por que o governo Bolsonaro anunciou um amplo processo de privatização mas não aconteceu nada até agora? 
Estou aqui há cerca de três meses. Ainda me encontro na fase de aquecimento, de entender o governo. Temos 134 empresas estatais, dos mais diversos setores. Existem casos como o de uma estatal que deveria produzir um chip para monitorar os rebanhos. O tal chip, que é instalado na orelha do boi, nem é produzido no Brasil. Hoje, há dezoito estatais que dão 15 bilhões de reais de prejuízo anual. Imagina esse dinheiro abrindo creche, ampliando salas do SUS, dando computador às crianças da periferia? Estamos aquecendo os motores.
O ministro Paulo Guedes já disse que, se dependesse dele, todas elas seriam privatizadas. Comecei a estudar todas as empresas do governo. Algumas podem ser fechadas, outras vendidas ou fundidas. Mas há uma dúzia de empresas que vão continuar existindo, além das três estatais mais valiosas que temos — Petrobras, Banco do Brasil e Caixa. Elas serão adaptadas aos novos tempos. Vão ser um pouco mais enxutas, mais profissionais e mais produtivas. Passarão por um processo de melhoria. As outras, sim, deveremos vender.
Então a privatização será menos ampla do que o anunciado?
Se a decisão fosse minha, eu privatizaria tudo. Não faz sentido o governo ter bancos. Mas a orientação que recebi é manter a Caixa, o Banco do Brasil e a Petrobras. Talvez eu esteja um pouquinho mais à direita do ministro Paulo Guedes, porque sou quase um libertário. Mesmo sem essas joias da coroa, será possível arrecadar quase 1 trilhão de reais com as privatizações.
Como se chega a esse montante?
Vamos vender a participação do BNDES em empresas privadas. Não há razão para existir o BNDESPar (refere-se à empresa de investimentos do BNDES). Vamos vender também a participação da Caixa, do Banco do Brasil e da Petrobras em empresas privadas. Vamos reduzir a dívida. Reduzindo a dívida, caem os juros e sobra mais dinheiro para investir em educação, saúde, segurança e infraestrutura.
Quais serão as primeiras empresas na lista da privatização?
O Serpro, a Dataprev e a Casa da Moeda (a primeira é uma empresa de processamento de dados; a segunda é a empresa de tecnologia da Previdência Social). Vender as duas primeiras imediatamente, no entanto, não é uma boa decisão. Estamos enxugando essas empresas, melhorando a administração. Vamos dar um choque de organização. Elas vão valer mais daqui a um tempo. Eu diria que vamos privatizar mais no terceiro ano que no segundo e mais no segundo que no primeiro ano de governo.
O governo desistiu definitivamente de privatizar a Eletrobras?
O governo se rendeu por não ter dinheiro. O governo está quebrado. Tem mais despesa do que receita. A melhor opção estratégica para o país, neste momento, é capitalizar a Eletrobras, com a iniciativa privada aportando dinheiro, vendendo parte do controle. Aí o governo, que hoje tem o controle da empresa, passará a ter 40%. Podemos vendê-la em outra etapa.
O programa de privatização é um ponto pacífico no governo?
Existem resistências à privatização dentro do governo. No Ministério da Ciência, Tecnologia, o ministro… Qual o nome do ministro-astronauta?
Marcos Pontes…
Sim, Marcos Pontes. Ele tem cinco estatais (Correios, Correiospar, Telebras, Finep e Ceitec) e não quer privatizar nenhuma delas. Pode anotar aí: Júlio Semeghini, secretário executivo do ministro, disse que não vai privatizar nenhuma das estatais do Ministério da Ciência e Tecnologia.
As resistências se limitam ao Ministério da Ciência e Tecnologia?
Nem todo ministro é privatista. Então, alguns acham que é importante, que é de interesse público que a empresa continue estatal. Eu diria que ainda não tentei convencê-los. Há uma coisa que temos de levar em consideração: o presidente Jair Bolsonaro disse que vai privatizar tudo o que for possível. Existe uma orientação clara do presidente nesse sentido.
Mas até o presidente Bolsonaro, ao que parece, já recuou em pelo menos dois casos Às vezes, prometemos algumas coisas que depois no mundo real se tornam um pouco difíceis. Existem dois discursos do presidente dizendo que fecharia a empresa do trem-bala, a EPL. O presidente também falou que iria fechar a EBC. O que é a EBC? Era um antro de petistas, com mais de 2 000 funcionários, que foi usado para tentar segurar a Dilma no processo de impeachment. Agora, o presidente disse que não vamos mais fechar a EBC. Para mim, como secretário de Desestatização e Desinvestimento, é uma decepção. Não faz sentido o Estado ter uma rede de TV.
Existem outros casos semelhantes?
Além da EBC e da EPL, tem os Correios. Setenta por cento da receita dos Correios vem da entrega de pacotes. O Estado é dono de uma transportadora. Isso é absurdo. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) tem 1 bilhão de reais em caixa e 826 funcionários. Só para efeito de comparação, a Finep de Israel, que faz um trabalho parecido, possui sessenta empregados. Há ainda a Conab e a Valec (estatais das áreas de abastecimento e ferrovias). Estamos estudando um pacote para fechá-las. O governo também tem uma empresa que se chama Telebras, que existe para competir com a Tim, a Oi e a Embratel. Aí vem alguém e argumenta que metade do satélite da Telebras é de uso militar — então não pode privatizar. O.k., continua-se utilizando metade do satélite e a outra metade passa para a iniciativa privada.
Deve-se entender então que a ampla privatização era apenas uma promessa de campanha?
Não me dou por rendido. Ainda tenho três anos e nove meses para convencer o presidente a vender essas empresas. Não perdi a guerra. Estou frustrado porque o presidente afirmou que acabaria com aquelas duas empresas, EPL e EBC, mas isso não aconteceu. Mas também é meu papel convencer os ministros. Pode ter certeza: a privatização vai começar lenta e gradual e depois vai pegar velocidade.
O senhor já se queixou ao presidente Jair Bolsonaro sobre essa situação?
Não.
Por quê?
Tem uma reforma da Previdência para acontecer. Vamos evitar contrariar qualquer grupo de interesse até que a reforma da Previdência possa estar concluída. A reforma é a prioridade número 1.
O senhor falou com o ministro da Economia, Paulo Guedes?
Já comentei com o ministro essas dificuldades em vender as estatais, mas, repito, vamos tratar do assunto com maior intensidade depois da reforma da Previdência. Já viu um avião decolando? Ele gasta entre vinte e 25 minutos para chegar a 900 quilômetros por hora. Ainda estamos taxiando.
É mais fácil gerir uma empresa privada ou administrar uma repartição pública?
Administrar uma empresa privada é muito mais fácil. No governo, a tomada de decisão é lenta, enquanto na iniciativa privada ela é mais rápida. Mesmo as estatais, que têm um bom quadro de pessoas, não conseguem ser muito ágeis.
Por quê?
Burocracia. Você tem de seguir uma série de regulações e legislações, todo um arcabouço jurídico. Uma empresa privada segue a lei das sociedades anônimas e a lei do mercado. São mais simples. Aqui no governo, além dessas leis em geral, seguimos uma lei específica que regula como devem funcionar as diretorias e os conselhos de empresas estatais. É tudo mais demorado e difícil.
Os militares ajudam ou atrapalham as privatizações?
Ainda não estive com os militares para formar uma opinião. Mas vai chegar a hora em que terei de procurá-los e dizer: “Por gentileza, eu já privatizei as minhas empresas. Agora venham cá privatizar as suas”.
Os militares alegam questões de segurança nacional para manter algumas empresas na esfera estatal. Ando com os discursos e os tuítes do presidente na minha pasta. Estão grifados em amarelo. Vou mostrá-­los aos que se pronunciam contra as privatizações neste primeiro momento. Acho que eles poderão mudar de ideia. Volto a dizer: existe uma orientação clara do presidente.
Há interferência política na escolha dos diretores e conselheiros das estatais?
Zero de interferência política. Nomeamos as diretorias do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa. Aqui na minha secretaria não houve nenhum pedido. A indicação política não é ruim, não. A deputada Bia Kicis indicou o Rogério Marinho (refere-se ao atual secretário de Previdência e Trabalho) para o ministro Paulo Guedes. Olhe que indicação espetacular! É uma pessoa técnica, profissional, conduzindo a reforma mais importante do governo. A indicação foi política, mas a escolha foi técnica. É assim que tem de ser.
Como o senhor avalia o governo Bolsonaro nestes três primeiros meses de gestão?
É um momento de aprendizado, de construir relacionamentos políticos. Esse stress que estamos vendo em relação ao Congresso é passageiro. O ex-governador Magalhães Pinto (mineiro, 1909-1996) dizia que a política é igual a nuvem: cada hora que você olha está de um jeito diferente. Hoje está de um jeito, amanhã de outro. O governo está indo bem.
Fonte: “Revista VEJA”

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Brasil: o estatismo ganhou - Mary Anastasia O'Grady (Instituto Mises)

O Brasil optou por mais estatismo - a visão dos estrangeiros
por , Instituto Mises Brasil, terça-feira, 28 de outubro de 2014



militontos.jpgRecessão econômica, inflação de preços acumulada em 6,7% nos últimos 12 meses, e um audacioso esquema de corrupção na estatal Petrobras não foram suficientes para negar à presidente Dilma Rousseff, do PT, a reeleição para um segundo mandato.  Ela derrotou seu desafiante Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira, por 51,63% a 48,36%. A campanha de Dilma baseou-se em uma plataforma anti-mercado e pró-assistencialismo, o que ajuda a explicar por que ela se saiu muito melhor nas regiões mais pobres e dependentes de auxílios do governo do que nas regiões prósperas voltadas para o agronegócio, como o sul e o centro-oeste, e na maior cidade brasileira, onde a economia se baseia majoritariamente no setor de serviços e em indústrias de alto valor agregado.
Assim como nos EUA, o Brasil também possui uma classe alta formada por eleitores urbanos de esquerda, que se sentem virtuosos em defender a intervenção estatal na vida de outras pessoas e em ajudar a ditadura cubana.  Porém, existe também um Brasil mais ambicioso, o qual é formado por empreendedores que se arriscam, por agropecuaristas competitivos globalmente e por uma ascendente classe média que anseia enormemente por uma maior integração com o resto do mundo.  Esses brasileiros queriam desesperadamente uma mudança para mais mercado e mais capitalismo, e viram no candidato Aécio Neves um representante mais próximo dessa mudança.  Foram esses brasileiros que fizeram com que as eleições presidenciais do último domingo fossem a mais apertada da história do Brasil.
Com esse resultado apertado, Dilma tem agora de descobrir o que fará com seus próximos quatro anos.  De um lado, ela pode imaginar ser possível consolidar o poder do PT — seu objetivo supremo — dando continuidade às políticas que utilizou até agora, não importa os custos para a economia.  Alternativamente, ela pode optar por fazer ajustes econômicos pragmáticos com o objetivo de restaurar a confiança e o crescimento.
Essa última opção é até possível, mas é bem improvável, pois os militantes do seu partido, que ganharam poderes e engordaram suas contas bancárias durante os governos do PT, querem ainda mais poder, e não menos.  Dilma pode até fazer algumas declarações aparentemente conciliatórias e, no curto prazo, implantar algumas medidas em prol de um pouco mais de liberdade econômica, como fez seu mentor Lula nos primeiros anos de seu governo, quando ele tinha o objetivo de acalmar os mercados que estavam em queda por temor de seu novo governo.  Uma vez alcançado esse objetivo, no entanto, Lula voltou para a esquerda.
As chances são de que Dilma fará o mesmo, assegurando por mais quatro anos a já tradicional reputação do Brasil para a mediocridade.  Somente se uma investigação criminal comprovar que Dilma e Lula sabiam sobre o esquema de corrupção na Petrobras é que as coisas podem se alterar substantivamente.
A grande ironia da campanha eleitoral é que, enquanto Dilma e Lula reivindicavam todo o crédito pelo crescimento econômico que o Brasil vivenciou na década de 2000, ambos se opuseram às reformas estruturais ocorridas na década de 1990.  A privatização de empresas estatais, a abertura (ainda que limitada) da economia brasileira à concorrência estrangeira, e a reforma monetária de 1994, que criou o real e acabou com a hiperinflação — todas essas medidas estimularam o desenvolvimento e, devido a essa geração de riqueza, possibilitaram a criação de programas assistencialistas mais generosos, os quais são a marca registrada do PT. 
Não fossem essas reformas da década de 1990 — às quais o PT se opôs —, não haveria chances de sucesso para os subsequentes governos do PT na década de 2000.
O problema é que o PT não quis aprofundar essas reformas, e a consequência é que o "milagre brasileiro" morreu no berço.  Na mais generosa das avaliações, o país é visto hoje como apenas mais um entre vários países em desenvolvimento; já na maioria das vezes, ele é visto lá no fim da fila.
Nem Lula e nem Dilma parecem se preocupar com desenvolvimento econômico.  De acordo com um relatório do Goldman Sachs, de 2004 a 2013, os gastos do governo cresceram a um ritmo de 8% ao ano, em termos reais, o que representou um crescimento mais de duas vezes maior do que o crescimento do PIB.  A inflação de preços está hoje em quase 7% ao ano para aqueles bens e serviços cujos preços não são controlados pelo governo.  E quando se considera apenas o setor de serviços, a inflação de preços está em 8,6% ao ano.  Para piorar, as expectativas quanto à inflação futura estão se deteriorando.
Dilma imaginou que poderia conter a carestia congelando o preço da gasolina, a qual é ofertada pela Petrobras, e o preço do etanol, o qual é ofertado por usineiros locais e utilizado por carros flexíveis em combustível.  No entanto, dado que os custos de produção continuaram aumentando (por causa da inflação crescente), a Petrobras e o setor sucroalcooleiro estão incorrendo em severos prejuízos.  Várias usinas de álcool já faliram e várias outras estão por falir.  Elas não sobreviverão caso essa política de congelamento de preços continue.
O PT se gaba de ajudar os pobres com políticas assistencialistas, mas a mesma mão que dá é aquela que tira — e a mão que tira é a mais pesada.  O aumento do protecionismo, os pesados encargos sociais e trabalhistas que oneram a folha de pagamento das empresas, os altos impostos sobre o consumo, uma infraestrutura em frangalhos, e as inflexíveis leis trabalhistas geram custos que impedem o aumento dos salários e que fazem com que o padrão de vida dos brasileiros esteja muito aquém do seu potencial.
Ainda mais preocupante é o estrago que o PT pode fazer com as instituições e com o estado de direito ao longo dos próximos 48 meses.  A sociedade civil brasileira é uma forte defensora das liberdades civis e do pluralismo.  No entanto, como um sagaz empresário me confidenciou, "Estamos vivenciando, passo a passo, uma tendência rumo à Argentina, à Bolívia e ao Equador".  Um exemplo é o decreto de maio, assinado por Dilma, que cria os "conselhos populares", os quais criariam um modelo semelhante ao que já existe na Venezuela.  Até o momento, o Congresso vem oferecendo resistência.  Porém, se o tradicional esquema de compra de votos ocorrer, ele pode capitular.
Trata-se de uma perspectiva pavorosa para qualquer pessoa que conheça um pouco de história.  Como já havia observado no século XVIII o filósofo David Hume: "A liberdade não é abolida de uma só vez; o processo ocorre em etapas." 
Hoje, Dilma é apenas uma política que ganhou uma eleição.  No futuro, os brasileiros podem aprender que o governo de um partido só e regras indefinidas são os verdadeiros projetos de longo prazo do PT.

Mary Anastasia O’Grady é editora do The Wall Street Journal e faz a cobertura de eventos da América Latina.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Arrogância fatal, ou sobre como os candidatos querem nos conduzir pelas maos do Estado - Joao Luiz Mauad

INSTITUTO LIBERAL-RJ

Arrogância Fatal
Por João Luiz Mauad em 15/10/2014

“A tarefa mais curiosa da economia é demonstrar aos homens quão pouco eles sabem sobre aquilo imaginam poder planejar’.  F V Hayek

Não tive como esconder um certo desânimo depois de assistir ao debate entre os presidenciáveis, ontem na TV.  Nenhum dos dois pretendentes, embora isso fosse muito mais claro na postura da atual presidente, conseguiam esconder aquela arrogância fatal, de que nos fala Hayek. Ambos são por demais crentes em suas respectivas habilidades e capacidades de planificar a sociedade, de modo que ela possa alcançar os mais elevados níveis de prosperidade e bem estar.  Penso que os dois estão absolutamente equivocados, malgrado, por motivos óbvios, eu tenha muito mais medo da prepotência desmedida da atual ocupante do cargo.

Segundo Adam Smith, os indivíduos não buscam conscientemente benefícios econômicos para a sociedade.  No entanto, conduzidos pela pressão da competição e pelos incentivos dos ganhos pessoais, esses benefícios surgiriam espontaneamente, através das interações efetuadas no mercado.  Os benefícios sociais seriam, portanto, derivados do funcionamento de um sistema e não de um propósito consciente.

Na perspectiva de Adam Smith, as limitações morais do homem em geral, e seu egoísmo em particular, não são lamentadas nem tampouco vistas como algo que se deva modificar.  Pelo contrário, são tratadas como fatos, vale dizer, como características intrínsecas e próprias da vida.  O objetivo fundamental de um bom sistema de organização social e econômico seria perseguir os melhores resultados possíveis (sociais e morais) a partir das limitações existentes, e não dissipar energias
tentando alterar a natureza humana, um intento que Smith considerava tão vão quanto sem sentido.

Já Hayek, em contraposição às pretensiosas e mirabolantes teses em favor da planificação econômica, tão comuns e festejadas no seu tempo, sustentava que o funcionamento da sociedade depende da ligação coordenada de milhões de fatos e ações individuais, cujo conjunto ninguém seria capaz de conhecer. Segundo ele, o conhecimento humano abrange toda a multiplicidade da experiência do homem através dos tempos, algo demasiado complexo para uma articulação explícita que se pudesse apreender.  Trata-se de uma “sabedoria sem reflexão, inculcada tão profundamente que se converte praticamente em reflexos inconscientes”.  Segundo o austríaco, este conhecimento esparso, não raro manifestado de forma não articulada, teria mais probabilidade de gerar frutos do que as arrogantes visões de uns poucos intelectuais.

Só a cooperação voluntária, através do mercado, permite-nos processar e transmitir as informações e os conhecimentos dispersos entre milhões de pessoas.  Isso jamais seria conseguido por qualquer “planejador”, por mais inteligente e gabaritado que fosse.

Por isso, na concepção de Hayek a sociedade é comparada a um organismo vivo, que não pode ser reconstruído sem conseqüências fatais, como, aliás, restou comprovado através das diversas experiências coletivistas malsucedidas do Século XX.

Essa visão do mundo não pretende, de forma nenhuma, negar a relativa superioridade dos chamados “especialistas” dentro de um determinado setor do conhecimento humano.  O que ela refuta, com certa veemência até, é que tal superioridade, principalmente em virtude do seu cunho limitado e restrito, possa estender-se  por sobre outros tipos de conhecimento amplamente fragmentados e difusos.  É dentro dessa perspectiva que a interação sistêmica de muitos deve ser sempre considerada superior à sabedoria específica de poucos.

Ortega y Gasset resumiu bem o perigo que representa a arrogância do conhecimento especializado quando asseverou que o especialista “não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é “um homem de ciência” e conhece muito bem a sua fração de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem, na sua questão especial, é um sábio.”

Sob todos os ângulos que se possa olhar, as vantagens da liberdade sobre a planificação econômica e social são marcantes.  Entretanto, o seu maior mérito, conforme dizia Roberto Campos, é ser este o processo mais democrático que existe.

Sobre o autor - Administrador de Empresas e Diretor do Instituto Liberal
João Luiz Mauad é administrador de empresas formado pela FGV-RJ, profissional liberal (consultor de empresas) e diretor do Instituto Liberal. Escreve para vários periódicos como os jornais O Globo, Zero Hora e Gazeta do Povo.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Intervencionismo no Brasil do seculo XIX - Ricardo Velez-Rodriguez

Excelente resumo feito pelo Professor Vélez-Rodriguez de um colóquio organizado pelo Liberty Fund (para o qual eu tinha sido originalmente convidado pelo seu diretor no Brasil, Roberto Fendt), tal como postado no seu blog Rocinante.
Paulo Roberto de Almeida 
Blog Rocinante, 7/12/2013

Introdução.
Realizou-se em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, no Hotel Spa do Vinho, entre 28 de novembro e 1º de dezembro de 2013, o colóquio intitulado: “Interventionism in Nineteen-Century Brazil” . O evento foi promovido pelo Liberty Fund sob a direção de Roberto Fendt Jr., (Centro Brasileiro de Relações Internacionais-CEBRI) e tendo como “Discussion Leader” o professor José Luiz Carvalho (Instituto Liberal do Rio de Janeiro e ex-assessor do Banco Nacional de Angola). Participaram, também, os seguintes especialistas: Leonidas Zelmanovitz (Liberty Fund Fellow, Indianápolis - USA), Jorge Luís Nicolas Audy (Universidade Católica do Rio Grande do Sul) Gunter Axt (Universidade Lasalle, Porto Alegre), Adriano Gianturco (IBMEC, Belo Horizonte), embaixador José Botafogo Gonçalves (Centro Brasileiro de Relações Internacionais, CEBRI), Rodrigo Saraiva Marinho (Marinho e Associados, Advocacia Empresarial, Fortaleza), José M. Moreira (Universidade Católica Portuguesa, Porto), Antônio Carlos Pereira (jornal O Estado de S. Paulo), Alfredo Marcolin Peringer (Porto Alegre), Jairo Laser Procianoy (Porto Alegre), Ricardo Vélez Rodríguez (Centro de Pesquisas Estratégicas da UFJF), Sandra Axelrud Saffer (Axelrud Arquitetura & Assessoria, Porto Alegre), Margaret Tse (Instituto Liberdade, Porto Alegre) e Mauro Boianovsky (Universidade de Brasília). Atuou como assistente do Liberty Fund no evento Daniela Becker (Porto Alegre).
Nas seis sessões que se desenvolveram ao longo do colóquio foram discutidos textos selecionados dos seguintes autores: Visconde de Mauá, Exposição aos credores e ao público, 1878 (Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1996); Jorge Caldeira, Mauá: empresário do Império (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995); Maria Helena Paulos Leal, “Resenha da obra Mauá: empresário do Império” (Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 17, nº 33, pgs. 306-312, 1997), Ricardo Vélez Rodríguez, Patrimonialismo e a realidade latino-americana (Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2006); Walter Bagehot,  A Description of the Money Market(New York: John Wiley & Sons, 1999); Gustavo Franco, O papel e a baixa do cambio(Rio de Janeiro: Reler, 2005); Ronald I. McKinnon, Money & Capital in Economic Development (Washington: The Brookings Institute, 1973); José Júlio Sena, A mão invisível: problemas e controvérsias da política econômica brasileira(Rio de Janeiro: IBMEC, 1983), Gustavo Franco, “Por que juros tão altos e o caminho para a normalidade” (Rio de Janeiro: CLP – Centro de Liderança Pública e Casa do Saber, Junho de 2011); Luiz Gonzaga Belluzzo e Ricardo Carneiro, “O mito da conversibilidade” (Revista de Economia Política, vol. 24, nº 2, abril-junho 2004); Ricardo Carneiro, “Globalização e inconversibilidade monetária” (Campinas: IE/UNICAMP, Agosto de 2007); Fernando Ferrari Filho, Frederico G. Jayme Jr, Gilberto Tadeu Lima, José Luís Oreiro, Luiz Fernando de Paula, “Uma avaliação crítica da proposta de conversibilidade plena do real” (Revista de Economia Política, 25, nº 1, janeiro-março 2005, p. 133-151) e José Tavares de Araújo Jr. “Conversibilidade do real e inserção internacional da economia brasileira” (Fundação Alexandre de Gusmão e IPRI, Rio de Janeiro, Julho 23 de 2009, p. 1-18).
O intervencionismo estatal é velho na história brasileira. Acompanhou, desde os primórdios, a saga da nossa sociedade na busca pela sua identidade e na elaboração das instituições que lhe permitiriam se firmar como Nação organizada no mundo moderno. Decorre esse caráter exagerado da intervenção estatal da índole patrimonialista que teve, desde o começo, o Estado. Não vimos a luz do dia como sociedade que se organizava de baixo para cima, à maneira daquelas comunidades de imigrantes que, na visão de Alexis de Tocqueville (1805-1859), pareciam “saídas das mãos de Deus” nos Estados Unidos da América e que constituíram, em perfeita sintonia com a defesa dos interesses dos cidadãos, as instituições políticas desse grande país.[1]
A nossa história, pautada pela experiência ibérica, foi bem diferente. Ao invés de ser organizado o Estado como fruto de um contrato social emergente de uma sociedade com grupos bem diferenciados em classes sociais que lutavam pela posse do poder, o que se viu foi, como frisa Max Weber, em Economia e Sociedade,[2]o fortalecimento progressivo de uma autoridade patriarcal original, que alargou a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administra-lo tudo como propriedade familiar. É esse o nosso “pecado original”, a presidir de forma insidiosa a nossa caminhada ao longo dos séculos. Como Sísifos estivemos condenados, desde o início, a empurrarmos sine fine uma estrutura mais forte do que a sociedade, que não servia a esta, mas que se serviu sempre a si própria. Isso explica, na atual quadra das nossas desgraças, a dívida pública incontrolável, amassada por dedicados funcionários patrimonialistas para fazer crescer ainda mais o Leviatã orçamentívoro. Tudo foi devorado pela avalanche do gasto público descontrolado: qualidade de vida, expectativas, projetos e esperanças. Os juros, na história econômica do Brasil, são incomensuráveis, porque incomensurável é o apetite do Leviatã.
O mal não é apenas nosso. É comum aos povos latino-americanos. Deixei isso registrado em obra que dediquei a estudar a representação do Patrimonialismo na literatura[3]. Analisei detalhadamente o caso mexicano, do ângulo da crítica dos pensadores liberais desse país acerca do Patrimonialismo, tema que serviu de matéria para o colóquio sobre “Liberdade e Liberalismo no México” que o Liberty Fund realizou em Tepoztlán, Morelos, em outubro de 2012; a respeito escrevi ensaio publicado pelo Portal Defesa da Universidade Federal de Juiz de Fora com o título de: “Liberdade, liberalismo e revolução no pensamento mexicano” [4].   
Sem pretender abarcar todos os itens abordados no Colóquio de Bento Gonçalves, farei uma análise dos aspectos que achei mais marcantes nas leituras feitas para o evento. Desenvolverei três pontos: 1 – Desgraças de um empresário brasileiro, o barão de Mauá, num Império patrimonialista. 2 – O conceito de Patrimonialismo. 3 – Patrimonialismo e economia no século XIX e na atual quadra do populismo desenvolvimentista.

1 – Desgraças de um empresário brasileiro, o barão de Mauá, num Império patrimonialista.
As leituras sugeridas pelo Liberty Fund para o colóquio de Bento Gonçalves tinham como objetivo ilustrar o funcionamento do Estado patrimonial brasileiro no século XIX, do ângulo do intervencionismo em matéria econômica. As desgraças sofridas pelo barão de Mauá, Irineu Evangelista de Sousa (1813-1889) decorreram justamente do fato, apontado por Max Weber (1846-1920), de que o soberano patrimonial não aceita sentimentos de honra da parte da sociedade, que ameacem empanar ou por em risco a sua autoridade inquestionável. Embora o Império brasileiro parecesse, para espíritos liberais como François Guizot (1787-1874), como muito civilizado, isso não tirava, contudo, o caráter centralizador e cooptativo do regime. O Poder Moderador certamente definia os rumos da política. Lembremos que parte essencial do arcabouço constitucionalista do Império consistia na teoria da dupla representação elaborada por Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Cabia ao Parlamento representar os interesses mutáveis da Nação, aqueles que correspondiam à defesa dos interesses materiais dos cidadãos. Mas cabia ao Imperador representar os interesses permanentes da Nação (entre os quais se situava a soberania do território, bem como a manutenção da instituição do governo representativo no Império). Assim, o poder régio era algo muito grande. Não se revestiu no Brasil de ares caudilhistas, em decorrência da índole humanística de Dom Pedro II (1825-1891). Esse mesmo poder nas mãos de um general platino como Juan Manuel Rosas (1793-1877), certamente ensejaria um regime de opressão. O Imperador contava, para garantir o sucesso dos pleitos eleitorais, com o auxílio da Guarda Nacional, a maior organização preburocrática de homens livres do Hemisfério Ocidental, segundo o pesquisador Fernando Uricoechea. [5]
A triste aventura de Mauá faz-me lembrar conhecido romance de Julio Verne (1828-1905): As tribulações de um chinês na China.[6]Mauá pagou o preço não por ter procurado a ajuda do Império para os seus empreendimentos, mas pelo fato de ter dado provas de que conhecia o jogo da máquina econômica, sendo que, para os “amigos do rei”, esse conhecimento poria em risco a supremacia dos “homens de mil” do Império, aqueles devotados burocratas fiéis ao Imperador e inimigos de qualquer coisa que significasse mudança nas regras do jogo consolidadas verticalmente sem ouvir a sociedade. Ora, em matéria de jogo econômico era mais seguro se ater à visão conservadora que desaconselhava a inovação financeira e a industrialização, que fariam balançar uma economia ainda atrelada ao escravagismo.  Embora Mauá tivesse no establishment liberal alguns amigos, prevalecia a visão retardatária do Ministro da Fazenda, José Maurício Wanderley, barão de Cotegipe (1815-1889).
As dificuldades encontradas não desanimavam Mauá, que pretendia atingir um conhecimento aprofundado das potencialidades econômicas do Brasil. A dinâmica da população ocupando o vasto território era, para o empresário, uma variável a ser levada em consideração, como transparece neste texto: “Com efeito, um país novo, porém de uma extensão territorial que se reconhece ser igual à da Europa, país que ao separar-se da Mãe Pátria, contendo uma população que não excedia 3 milhões de pessoas, diz logo ao ouro e à prata: Desconheço vosso poder; para mim nada representais; posso viver tranquilamente sem vossa intervenção, e no fim quadruplica sua população e tendo convertido em riqueza uma parte insignificante dos seus recursos naturais, elevou todavia sua posição financeira ao mais alto grau de crédito, e conserva a sua independência monetária, sem a quebra de suas relações econômicas, dispensando aqueles régulos das transações do resto do mundo. Não será esse um fenômeno digno de ser estudado?”[7].

2 – O conceito de patrimonialismo.
As páginas sugeridas pelo Liberty Fund como ponto de partida para as discussões em torno ao conceito de patrimonialismo foram tiradas da minha obra intitulada: Patrimonialismo e a realidade latino-americana.[8]Nesse texto destaco três coisas: em primeiro lugar, o que Weber entende por patrimonialismo; em segundo lugar, de que forma o conceito de patrimonialismo foi aproximado por Karl Wittfogel (1896-1988) da categoria de despotismo hidráulico ou despotismo oriental; em terceiro lugar, como esses conceitos passaram a integrar as tipologias sociológicas de alguns autores brasileiros que as aplicaram à nossa realidade.
A – O que Weber entende por Patrimonialismo. O sociólogo alemão considerava que há três tipos ideais de legitimação da autoridade política: o tradicional, o racional e o carismático. No primeiro, a autoridade se legitima mediante a crença da comunidade em determinadas tradições. No segundo, a legitimação da autoridade decorre de uma decisão da comunidade tomada nas urnas. No terceiro, a legitimação fica por conta do valor especial que uma pessoa tem para a comunidade, expresso no seu carisma.
Os Estados modernos, para o sociólogo alemão, surgiram no contexto de processos de legitimação efetivados a partir de determinadas tradições. Duas modalidades consagraram-se historicamente: a feudal e a patrimonial ou patrimonialista. Na primeira, os Estados surgiram a partir de um processo de diferenciação da sociedade em classes sociais que passaram a lutar pela posse do poder. Dessa luta teria emergido um consenso, dando ensejo ao pacto social, origem do Estado.[9]É a modalidade que Max Weber chama decontratualistae que vingou na Europa Ocidental, justamente ali onde houve, na Idade Média, a prática do feudalismo de vassalagem.
Já a modalidade que Weber caracteriza como patrimonialismo decorre de outra tradição em que o poder não se dissemina pela sociedade, mas fica concentrado numa única mão, como se fosse propriedade familiar de quem o exerce. Tal modelo vingou fora da Europa Ocidental e das Ilhas Britânicas, no Oriente notadamente, tendo dado ensejo a modelos hipertrofiados de poder que passaram a ser denominados, genericamente, de “despotismo oriental”, “despotismo hidráulico” ou “asiático”, embora se encontrasse também na Península Ibérica, na  América pré-colombiana entre incas, maias e astecas. Pode-se caracterizar tal modelo como “aquela forma de dominação tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu poder doméstico. Ao lado da organização do poder político, segundo o modelo doméstico, é igualmente essencial ao patrimonialismo a estruturação do quadro administrativo, por intermédio do qual se exerce a dominação. Quando esse quadro recebe do soberano, ou conserva, com o consentimento dele, determinados poderes de mando e as suas correspondentes vantagens econômicas, temos o que Weber chama de dominação estamental[10].
Weber encontrava no Antigo Egito, no Império chinês e na Rússia czarista três casos típicos de dominação patrimonial. “O Antigo Egito foi o primeiro regime burocrático-patrimonial. Desenvolveu-se originariamente a base da clientela real. A necessidade de uma política unitária, em decorrência das condições físicas, levou a um aprimoramento burocrático mediante a ascensão da casta dos escribas e a institucionalização do trabalho compulsório da população livre nas obras públicas” [11].
Além dos trabalhos hidráulicos, feitos na China mediante esse sistema de serviço compulsório dos habitantes livres, Weber salienta a presença de um fator que reforçou o Estado patrimonial: a religião oficial. “Esse papel foi desempenhado pelo confucionismo, que dava base à virtude cardeal da piedade filial, não só no meio doméstico, mas também no âmbito das relações de subordinação dos funcionários em relação ao soberano, dos funcionários inferiores em relação aos superiores e, principalmente, dos súditos perante o estamento burocrático e o monarca” [12]. Já em relação ao outro tipo de dominação patrimonial, o Estado russo, Weber destaca a supremacia do czar mediante a atomização da nobreza, graças ao sistema de sinecuras criadas pelo soberano ao redor dos cargos tschin, que estavam à frente do estamento burocrático e do exército.
O patrimonialismo é definitivamente centrípeto, ao contrário do que acontece com o feudalismo; no primeiro se dá a tendência a pôr em prática medidas tendentes à concentração e à perpetuação do poder unipessoal do monarca. Isso conduz à valorização, no contexto patrimonialista, das funções administrativas apropriadas ou controladas pelo soberano, como instrumentos que garantem seu poder. Por isso, sob este viés, o patrimonialismo colide com o feudalismo, que promove a redução das funções burocráticas. “A fim de controlar qualquer surto de dignidade (de autoridade baseada nos sentimentos de independência e honra das camadas nobres), a dominação patrimonial manipula as massas desprotegidas mediante o paternalismo de Estado, ensejando assim o ideal do pai do povo,tão comum em contextos patrimoniais, como o russo. Essa ideia associou-se à permanência do patrimonialismo na época moderna, pelo menos no Ocidente”. [13]
B – Aproximação, por Wittfogel, da categoria de patrimonialismo do conceito de despotismo hidráulico. Este teórico foi um dos fundadores da Escola de Frankfurt e pertenceu aos altos quadros intelectuais do Partido Comunista, tendo sido secretário de Leon Trotsky (1879-1940), antes de ser preso por Joseph Stalin (1879-1953) e logo pelos nazistas, tendo-se refugiado, depois da II Guerra Mundial, nos Estados Unidos, onde lecionou História da China na Universidade de Seattle (Estado de Washington). Wittfogel, na sua obra mais importante intitulada: O Despotismo Oriental[14]considerava que a Revolução Russa terminou sendo deformada, em decorrência da presença, na tradição cultural desse país, da influência do despotismo oriental, de que era portador Gengis Khan (1162-1227) e os remanescentes do canato da Horda Dourada (1240-1502) que ocuparam o Principado de Moscou.
Para Wittfogel, a modalidade mais antiga do “despotismo hidráulico” deu-se ali onde havia grandes quantidades de água de curso irregular e escassez de chuvas, o que obrigou as comunidades a organizarem uma modalidade de governo agro diretorial que garantisse a irrigação. Tal modelo vingou no Antigo Egito e na Mesopotâmia, bem como na China pós-mongol, nos Califados árabes e nos impérios indígenas pré-colombianos: inca, olmeca, maia e asteca. O autor considera que nessas áreas deu-se o surgimento de uma economia rigorosamente hidráulica. Mas as práticas administrativas centralizadoras e despóticas ensejadas por esses impérios estenderam-se para outras áreas marginais, onde não havia propriamente uma economia hidráulica, tendo contaminado a gestão política com procedimentos despóticos e centralizadores. Foi isso o que ocorreu, por exemplo, no Império Romano após a conquista do Egito por César (100 a. C.- 44 a. C) e Otávio Augusto (63 a. C. – 14 d. C), bem como o que aconteceu na Rússia e na Península Ibérica, ao ensejo da presença mongol, na primeira, e da ocupação árabe de Espanha e Portugal pelos capitães Tárique (670-720) e Mussa bin Nusayr (640-716), súditos do sultanato de Damasco presidido por Al-Walid I (668-715). Tal ocupação, como se sabe, durou oito longos séculos, entre 710 e 1490.
Wittfogel retoma os conceitos weberianos a respeito do patrimonialismo, mas aprofunda nos aspectos diretoriais e despóticos que se tornaram característicos do “despotismo hidráulico”. Levando em consideração que estes regimes buscavam eficiência notadamente no que diz relação ao controle da água, Wittfogel ilustra a capacidade administrativa deles na China, por exemplo, ou dos que foram organizados no Antigo Egito, na Mesopotâmia ou na América pré-colombiana. Em todos eles aparece uma administração centralizada, dotada de uma logística impressionante capaz de mobilizar, alimentar e manter organizadas turmas de 100000 trabalhadores ou mais, mediante a modalidade de trabalho de graça dos homens livres para o Estado ou corveia, com a ajuda de arquivos detalhados acerca das riquezas e dos povos submetidos. O controle militar acompanhava esse esforço administrativo. O resultado dessa empreitada foram obras de grande volume, tanto no que respeita à engenharia hidráulica (como o canal que uniu, na China, as cidades de Beijing e Hangzhou, com 1794 quilômetros de extensão, tendo sido construído entre 604 e 1283), como no que diz relação à construção de grandes estruturas defensivas (a Grande Muralha chinesa, por exemplo, construída entre 220 a. C. e 1600 da nossa era e que se estende por mais de 4000 quilômetros, separando a China da Mongólia). Também são destacadas por Wittfogel, como pertencentes a estas grandes obras, as enormes estruturas rituais ou funerárias, como as pirâmides do Antigo Egito ou as dos Maias e Olmecas, no México pré-colombiano.
Um traço administrativo importante dos regimes hidráulicos é destacado por Wittfogel: a sua capacidade tributária e de cooptação da população livre para trabalhar nas grandes obras do Estado. Os esforços policiais e fiscais não mantém um parâmetro constante, mas estão ligados ao efetivo controle do poder central sobre todos os núcleos secundários de poder no território. A respeito deste ponto, escreve Wittfogel: “Os esforços que faz o regime hidráulico para conservar um controle militar e policial inconteste sobre a população revelam-se mais ou menos rentáveis, até que todos os centros de poder independentes sejam destruídos. As iniciativas levadas a termo para conseguir um conjunto de comunicações e de recenseamentos rápidos seguem um processo análogo, e a extensão da ação fiscal e judiciária aparece como razoável, enquanto satisfaça a vontade de hegemonia política e social do soberano” [15].
A resultante de todo esse processo estudado por Wittfogel é a organização de um Estado mais forte do que a sociedade, que é capaz de grandes obras e que, por outro lado, mantém sobre a população o poder total, sem pejo para utilização da violência no grau que for necessário. A respeito deste ponto escreve Wittfogel: “Os déspotas agro institucionais podem apresentar seu regime como providencial; mas, de fato, e mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, eles trabalham pelo seu próprio optimumde racionalidade e não por aquele do povo. Empreendem trabalhos hidráulicos que devem servir ao seu poder e à sua riqueza. Eles tomam sua parte como donos fiscais do excedente nacional e consumidores conspícuos. (...) Uma das variantes do poder total, o despotismo hidráulico, não tolera nenhuma força política que não seja a sua. Nesse sentido, ele vinga no plano institucional freando o desenvolvimento de tais forças; e vinga no plano psicológico desencorajando a aspiração do homem a uma ação política independente. Em última análise, o governo hidráulico é um governo pela intimidação” [16]. Os tanques passando por cima dos estudantes na Praça Tiannamen estão a mostrar que, em pleno final do século XX (1989), permaneciam vivas essas forças despóticas do poder total na China contemporânea, em que pese a abertura ao capitalismo ocidental.
C - Como os conceitos de patrimonialismo e de despotismo hidráulico passaram a integrar as tipologias sociológicas de alguns autores brasileiros que as aplicaram à nossa realidade. A sociologia brasileira, no ciclo de trinta anos que se estende de 1858 a 1988, apropriou-se das tipologias do patrimonialismo e do despotismo oriental e as projetou sobre a análise da realidade do país, constituindo, assim, uma alternativa para os conceitos da sociologia marxista que tinham se apropriado do ambiente acadêmico. Menciono, em primeiro lugar, a obra pioneira de Raimundo Faoro (1925-2003), que introduziu no nosso meio as categorias weberianas com a sua obra intitulada: Os donos do poder [17].
A seguir, refiro-me às obras de Antônio Paim (1927-) [18]e Simon Schwartzman (1939-) [19], que alargaram a análise iniciada por Faoro com o conceito-tipo de neopatrimonialismo ou patrimonialismo modernizador. A partir das reformas pombalinas houve, na cultura política brasileira, um surto de modernidade caracterizado pela adoção da ciência moderna como base para a gestão do Estado e dos negócios públicos, sem que isso implicasse numa democratização da sociedade. O pombalismo efetivou uma modalidade de “despotismo esclarecido”, tão comum no ambiente ibérico e ibero-americano dos séculos XVIII e XIX. O Brasil viu ser modernizada, sem democratização, a sua estrutura colonial, na segunda metade do século XVIII. É claro que esse processo começou em terras brasileiras na primeira metade desse século, quando foi criado, em 1734, “Distrito Diamantino”, em Minas Gerais, que permitiria uma racionalização da exploração das minas de ouro e diamante recém-descobertas. Não se entenderia a história brasileira ulterior sem levar em consideração esse surto de modernidade, como ficou patente na obra intitulada: Pombal na cultura brasileira, coordenada por Antônio Paim e na qual participou a primeira geração de pós-graduandos em “Pensamento Brasileiro” na PUC do Rio de Janeiro. [20]
O que fica patente da leitura das obras de outros autores brasileiros que aprofundaram nos conceitos de patrimonialismo e neopatrimonialismo é que se consolidou, nas nossas terras, um modelo de Estado mais forte do que a sociedade, que assumiu ares de empresário, de um lado, mas que, de outro, vestiu a camisa de “pai dos pobres” ou de “pai do povo”, sem abrir mão, evidentemente, da utilização do porrete quando necessário, a fim de evitar avanços não controlados do processo de modernização. Algo muito semelhante ao que foi caracterizado pelo Prêmio Nobel de Literatura, Octavio Paz (1914-1998), no México, como “Ogro filantrópico” [21]. A sociedade passou a receber, de cima para baixo, as benesses do desenvolvimento econômico, sem que fosse chamada a participar de forma a assumir o controle do Estado. A cultura e a organização do emprego passaram a orbitar ao redor dessa visão tutorial, que se prolongou nos ciclos modernizadores ao longo do século XX. Tais são as conclusões que podem ser tiradas da leitura das obras de autores que se debruçaram sobre o patrimonialismo brasileiro no período apontado, como Meira Penna (1917-) [22], Wanderley-Guilherme dos Santos (1935-) [23], Ricardo Vélez Rodríguez (1943-) [24], etc.

3 – Patrimonialismo e economia no século XIX e na atual quadra do populismo desenvolvimentista.
As leituras sugeridas pelos organizadores do Colóquio debruçaram-se, na última fase, sobre algumas variáveis econômicas, confrontando-as com o momento vivido por Mauá, no século XIX, de um lado e, de outro, com a atual conjuntura de populismo desenvolvimentista que atravessa o Brasil.
A leitura do texto de Walter Bagehot (1826-1877) intitulado: Lombard Street(publicado em 1873) traz, para os não especialistas em história econômica, como é meu caso, uma ideia importante: uma economia nacional amadurecida, fundada na livre iniciativa e no respeito à propriedade privada, com regras claras e sedimentada no jogo do comércio internacional, dá ensejo a instituições monetárias fortes. A moeda forte, no mundo moderno, não é efeito de atos voluntaristas de pessoas ou de governos, mas é a decorrência de uma economia com fundamentos sólidos. As moedas fracas revelam economias com pouco fundamento. Bagehot, ao tratar da moeda, retoma a tradição econômica liberal inglesa, que já desde a época de John Locke (1632-1704) tinha consolidado os aspectos essenciais. [25]
Os autores lidos para o Colóquio, no que tange às sessões quarta (“Comparing the Efficiency of Different Structures of Finantial Markets”), quinta (The Aftermath: Current Public Debt Policy”) e sexta (“The Aftermath: Current Foreign Exchange Regime”) deixam isso bem claro, em que pese a diversidade de posições assumidas no tocante à teoria econômica.
No caso da realidade brasileira das últimas décadas, um fator crescente de instabilidade reside na intervenção excessiva do governo na economia. As distorções causadas por essa prática, no que tange à fixação das taxas de juros, foram destacadas no texto escolhido de José Julio Sena, A mão invisível: problemas e controvérsias da política econômica brasileira.[26]Em obra posterior intitulada: Os parceiros do rei[27]este autor mostrou que, no contexto do Estado patrimonial brasileiro, as intervenções dos governos para estimular “campeões nacionais” entre o empresariado, mais do que robustecer a concorrência sadia e o desenvolvimento sustentado da economia, terminam gerando gargalhos burocráticos e fortalecendo o papel do Estado-empresário.
Essa tradição do Estado empresário, como sabemos, é antiga na cultura luso-brasileira, se remontando à denominada “Aritmética Política” do marquês de Pombal (1699-1782). Os seguintes princípios formavam parte da mencionada “Aritmética”: em primeiro lugar, compete ao Estado empresário garantir a riqueza da nação; em segundo lugar, o Estado deve garantir, também, a moral dos indivíduos e a ordem social e política; em terceiro lugar, o Estado, de posse da ciência aplicada, está apto para resolver todos esses problemas e presidir ao ordenamento racional das instituições políticas. A reforma educacional visava a dotar o Estado dos técnicos de que carecia para cumprir com as suas funções. [28]
Gustavo Franco, no texto que foi objeto de estudo no Colóquio e em recente artigo publicado em jornal de circulação nacional, deixou claro que a dívida pública descontrolada constitui, hoje, o grande lastro para o desenvolvimento do país, chegando a comprometer o futuro das próximas gerações, tal o volume de recursos de que o Estado deverá se apropriar ao longo das próximas décadas, na rolagem da mesma. Segundo o ex-presidente do Banco Central, a dívida pública brasileira anda já pela casa dos 68% do PIB, logicamente sem cair na armadilha da cosmética oficial, mas levando em consideração as normas internacionalmente aceitas de contabilidade.
A respeito, afirma Gustavo Franco: “68% do PIB é um número muito elevado para um país emergente, mas seria ótimo se fosse só isso. Existem muitos problemas ainda não contabilizados. Um exemplo: numa empresa mista como a Petrobrás, se o acionista controlador pratica populismo tarifário, não deveria indenizar a empresa, como era feito no passado através da chamadaconta petróleo? A Moody's reduziu a classificação de risco da Petrobrás em razão de seu elevado endividamento, que cresceu US$ 16,6 bilhões apenas no primeiro semestre. Qual seria o saldo da conta petróleo hoje, caso ainda existisse? Coisa parecida se passa no setor elétrico, onde parte significativa dos custos da redução na conta de luzficou para o Tesouro. E também nos bancos públicos, toda vez que o crédito não é concedido de acordo com as melhores práticas bancárias ou os bancos são instruídos a apoiar campeões. Não há dúvida que os custos de muitas políticas públicas, cujo mérito sempre se pode discutir, ainda não foram contabilizados na dívida pública. É inafastável a reflexão: são anos para consertar, bastam meses para estragar. Mas ainda não acabou: a previdência do servidor, e algumas outras despesas de caráter continuado, como as da saúde, são obrigações que não reconhecemos como dívidas, contrariamente ao que fazem muitos países que capitalizam esses gastos e a eles associam reservas e ativos, às vezes dentro de fundos de pensão. Que tamanho teria a dívida pública se essas contas fossem capitalizadas? Há países à beira de um ataque de nervos com os efeitos do envelhecimento sobre os gastos de seguridade social. Não é o nosso caso, pois uma bomba a uma década de distância é como se não existisse. A conclusão escapista habitual diante de uma dívida impagável é que o problema não é nosso, mas do credor. Porém, nesse caso, o assunto é mais complexo: credor e devedor são a mesma pessoa” [29].
A questão da conversibilidade plena do real, que foi colocada sobre o tapete das políticas econômicas em 2003 por Pérsio Arida[30]parece que fica comprometida com a desordem introduzida pelo governo na má gestão da dívida pública. Após 10 anos de populismo econômico, a casa certamente não está mais arrumada como tinha ficado no final dos anos 90. O futuro é sombrio. A inflação está de volta. Os fantasmas do passado, com a insegurança jurídica como carro-chefe, voltam a assombrar as esperanças dos brasileiros num futuro melhor.

Conclusão
Há algo em comum entre as circunstâncias vividas pelo barão de Mauá e as atuais agruras ensejadas pelo populismo econômico no Brasil: em ambas está presente a figura tutelar do Estado intervencionista, que, com as suas iniciativas, prejudica mais do que favorece o desenvolvimento econômico. Os créditos fáceis concedidos pelo banco oficial no momento de Mauá favoreceram quem se posicionou incondicionalmente do lado do Imperador. A irrigação do crédito “camarada” favorece, atualmente, aqueles empresários que foram escolhidos pelo governo como “campeões de bilheteria” e que, em consequência, receberam créditos brandos dos bancos oficiais, notadamente do BNDES. Os empresários cooptados, poupados do risco e com as suas aventuras malsucedidas, terminam comprometendo os recursos de todos os brasileiros. É o que está acontecendo com a Petrobrás. Como escreve conhecido especialista, Max Calabria: “Quando o estado é dono de bancos, as decisões de concessão de empréstimos ficam cada vez mais determinadas pela política, em vez de serem baseadas em critérios econômicos. Os recursos chegam àqueles que têm influência. Os bancos estatais também costumam subestimar o preço do risco para comprar votos. Se há uma lição que deveríamos aprender com a crise recente, é que, quando intencionalmente se subestima o risco, coisas más acontecem” [31].
A saga do Estado patrimonial, com a sua sequela de intervenções políticas no mercado, atrapalhou, definitivamente, o desenvolvimento do Brasil ao longo dos duzentos anos de sua história. Não se trata de uma questão de pessoas. É uma realidade estrutural: onde há Estado patrimonial há pobreza, embora, em alguns momentos, surjam momentos modernizadores. Mas estes, como frisava o economista americano John Maurice Clark (1884-1963), estão submetidos às incertezas da dinâmica personalista que termina prevalecendo nos contextos regidos por Estados patrimoniais, ensejando o conhecido “voo de galinha” do desenvolvimento. O Patrimonialismo deu lugar não uma racionalidade diuturna, de cunho weberiano. Deu lugar, pelo contrário, ao que Clark denominava de “racionalidade administrativa variável” [32], que é posta em prática quando o senhor patrimonial vê que a sua autoridade pode sofrer abalos e os esforços de racionalização administrativa são envidados única e exclusivamente para superar o perigo. Uma vez vencida a dificuldade do momento, “tudo volta ao que era antes no quartel de Abrantes” como reza o dito popular.

Bibliografia citada
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Notas:
[1] Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracy in America / De la démocratie en Amérique(Edited by Eduardo Nolla; translated by James T. Schleifer). Indianapolis: Liberty Fund, vol. I, p. 50-61.
[2]Cf. WEBER, Max. Economía y sociedad. 1ª edição em espanhol. (Tradução de José Medina Echavarría et alii). México: Fondo de Cultura Económica, 1944, 4 volumes. As referências ao Patrimonialismo encontram-se nos volumes I e IV.
[3]VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. A análise do Patrimonialismo através da literatura latino-americana: O Estado gerido como bem familiar. (Prefácio de Arno Wehling), Rio de Janeiro: Documenta Histórica / Instituto Liberal, 2008, 263 pg.
[4]VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. “Liberdade, liberalismo e revolução no pensamento mexicano”, in: Portal Defesa da UFJF:http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/LLRPM.pdf.
[5]Cf. URICOECHEA, Fernando. O Minotauro imperial: a burocratização do Estado Patrimonial brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro / São Paulo: DIFEL, 1978. Segundo este autor, ao passo que, por volta de 1850, o Exército contava apenas com 13000 homens, a Guarda Nacional era um contingente que abarcava 250000 homens livres.
[6]VERNE, Julio. As atribulações de um chinês na China. Lisboa: Editora 11X17, 2013. A primeira edição francesa da obra, intitulada: Les tribulations d´un Chinois en Chineé de 1879, do editor Pierre-Jules Hertzel. O livro conta as desgraças que tem de sofrer um homem rico de Xangai, Kin-Fo, para fugir de uma organização criminosa em que, sem sabê-lo, tinha a sua família mergulhado. A perseguição diuturna de que se viu vítima o barão de Mauá pelos “intendentes” do rei, no caso os Ministros da Fazenda, notadamente Cotegipe, tem elementos em comum com essa trama de suspense e insegurança jurídica (que é o clima que, infelizmente, ainda azucrina a vida dos empreendedores no Brasil).
[7]SOUSA, Irineu Evangelista de, barão de Mauá. Citado por CALDEIRA, Jorge, in: Mauá, empresário do Império. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995, p. 344.
[8]VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2006, p. 11-61.
[9]É neste contexto que emerge a teoria do “contrato social” adotada por filósofos políticos como Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), etc.
[10]VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana.  Ob. cit., p. 13.
[11]VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Ob. cit. p. 14.
[12]VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Ob. cit., ibid.
[13]VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Ob. cit., p. 15.
[14]WITTFOGEL, Karl. Le despotisme oriental: étude comparative du pouvoir total. (Versão francesa de Micheline Pouteau). Paris: Minuit, 1977. A primeira edição da pesquisa de Wittfogel foi publicada em inglês com o título: Oriental Despotism: a Comparative Study of Total Power, Chicago: Chicago University Press, 1957. Existe uma segunda edição desta mesma editora, de 1959.
[15]WITTFOGEL, Karl. Le despotisme oriental, ob. cit., p. 139-140.
[16]WITTFOGEL, Karl. Le despotisme oriental, ob. cit., p. 169-170.
[17]FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 1ª edição. Porto Alegre: Globo, 1958, 2 volumes.
[18]PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
[19]SCHWARTZMAN, Simon. São Paulo e o Estado nacional. São Paulo: DIFEL, 1975. Do mesmo autor, Bases do autoritarismo brasileiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Campus, 1982.
[20]PAIM, Antônio (organizador). Pombal na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro / Fundação Cultural Brasil-Portugal, 1982.
[21] PAZ, Octavio. El ogro filantrópicoBarcelona: Seix Barral, 1983.
[22]PENNA, José Osvaldo de Meira. Em berço esplêndido – Ensaios de psicologia coletiva brasileira. 1ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio / INL, 1974. 2ª edição revista e aumentada, Rio de Janeiro: Topbooks / Instituto Liberal, 1999. Do mesmo autor, O dinossauro – Uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. São Paulo: Queiroz, 1988.
[23]SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. Cidadania e justiça – A política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979. Do mesmo autor,Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
[24]VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Castilhismo, uma filosofia da República. 1ª edição. Porto Alegre / Caxias do Sul: EST / Universidade de Caxias do Sul, 1980. A segunda edição, corrigida e acrescida, (com apresentação de Antônio Paim), foi publicada pelo Senado Federal em 2000. Do mesmo autor, Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro. Londrina: UEL, 1997.
[25]Locke destacava (especialmente nos seus Dois tratados sobre o governo civil) que a sociedade é governada por leis que ancoram num conjunto de leis naturais, da mesma forma como o universo é dirigido por leis da Natureza. Essa convicção levou o autor à conclusão de que a lei natural – e não as leis positivas emanadas da vontade dos legisladores – deveria determinar as taxas de juros e o valor das moedas. Os juros, na concepção lockeana, deveriam estar sujeitos à lei da oferta e da procura, que era expressão direta da lei natural da propriedade. Por esse motivo, o filósofo inglês achava ser inapropriado que os mesmos fossem fixados pela autoridade política. A primeira missão do governo consistiria em zelar para que os direitos de propriedade fossem respeitados e garantidos. As posições de Locke sobre as taxas de juros foram uma resposta aos que, na sua época, pretendiam que fossem fixadas pelo governo com o intuito de incrementar o comércio. Lembremos que Locke ajudou o seu colega sir Isaac Newton (1643-1727), diretor da Casa da Moeda de Londres, a superar as dificuldades postas pelos que queriam emissões sem freio. Para Locke, disposições econômicas que se contrapusessem à lei natural de defesa da propriedade e da liberdade dos indivíduos (expressas na prática da oferta e da procura nas transações comerciais) teriam pés de barro, em decorrência do fato de que as pessoas poderiam violar, com facilidade, simples controles legais impostos pela autoridade, dando ensejo ao mercado negro. Locke considerava os juros como o preço pago pelo dinheiro. Qualquer mudança no volume deste teria efeitos sobre o processo monetário de um país. A teoria lockeana consolidou os alicerces da moderna teoria monetária. Cf. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. (Tradução de Júlio Fischer. Introdução de Peter Laslett). São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 148-149; 470; 517-518.
[26]SENNA, José Júlio. A mão invisível: problemas e controvérsias da política econômica brasileira. Rio de Janeiro: IBMEC, 1983, cap. 5, “O choque das taxas de juros” e cap. 6, “O controle quantitativo do crédito”, p. 95-114. .
[27]SENNA, José Júlio. Os parceiros do rei. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.
[28]Uma análise completa da “Aritmética Política” pombalina pode ser encontrada na obra já citada de Antônio PAIM, A querela do estatismo, capítulo I. A presença dessa tradição nos momentos modernizadores da história brasileira foi documentada por mim no ensaio intitulado: “Persistência do Patrimonialismo Modernizador na Cultura brasileira”, que integra a obra, já citada, coordenada por Antônio PAIM, Pombal na cultura brasileira.
[29]FRANCO, Gustavo. “O tamanho do problema”. O Estado de São Paulo, Seção Economia e Negócios, 24/11/2014.
[30]A questão foi abordada na VI sessão do Colóquio de Bento Gonçalves com a leitura dos textos de Luiz Gonzaga Belluzzo, Ricardo Carneiro, Fernando Ferrari Filho, Frederico G. Jayme Jr., Gilberto Tadeu Lima, José Luiz Oureiro, Luiz Fernando de Paula e José Tavares de Araújo Jr (segundo o listado enunciado na parte inicial deste trabalho). Pérsio Arida é citado no trabalho de Fernando Ferrari Filho e outros, intitulado: “Uma avaliação crítica da proposta de conversibilidade plena do real”, Revista de Economia Política, vol. 25, nº 1 (97), p. 133-151, janeiro/março 2005.
[31]CALABRIA, Mark. “Os bancos estatais atrapalham o crescimento econômico”. América Economia, 06/12/2013.
[32]As análises sobre a crise de desenvolvimento observada por Wittfogel nas sociedades regidas por Estados patrimoniais alicerçaram-se no pensamento de John Maurice Clark, como o próprio Wittfogel destaca ao longo da sua obraLe despotisme oriental.