terça-feira, 19 de novembro de 2024

Novo livro preparado para publicação: Constituições brasileiras: ensaios de sociologia política (2024) - Paulo Roberto de Almeida

4791. Constituições brasileiras: ensaios de sociologia política, Brasília, 18 novembro 2024, 187 p. Livro completo com nove ensaios sobre as constituições e suas implicações para o Brasil, em especial no terreno econômico. ISBN: 978-65-01-23460-1. Em preparação para publicação.


O problema brasileiro nunca foi fabricar Constituições, e sim cumpri-las.


Roberto Campos, Lanterna na Popa (memórias), 1994. 


Constituições brasileiras

ensaios de sociologia política


Índice

 

 

Apresentação: Constituições e desenvolvimento político no Brasil   11

 

1. Representação política no Brasil até a Constituição de 1824   19

2. Formação do constitucionalismo luso-brasileiro no século XIX     30

3. Da Constituinte de 1823 à Constituição de 1824: aspectos econômicos   51

4. A economia nas constituições brasileiras, de 1824 a 1946    64

5. As relações internacionais na ordem constitucional de 1988   86

6. Brasil: um Prometeu acorrentado pela sua própria Constituição   112

7. Análise crítica do conteúdo econômico da Constituição de 1988   134

8. A Constituição e a integração regional   172

9. Dois séculos de constituições e regimes políticos no Brasil, 1824-2024  177

 

Apêndices

Livros de Paulo Roberto de Almeida     179

Nota sobre o autor    185

 

Apresentação

 

Constituições e desenvolvimento político no Brasil

 

O Brasil já está em sua sétima constituição, um número não exatamente reduzido, mas em todo caso menor do que outros Estados da região, bem menos, por exemplo, do que a França, um país extremamente prolífico na adoção de novas constituições. Não se trata de algo excepcional na história política da humanidade. Constituições são, de fato, contratos sociais e políticos que as mais diversas comunidades humanas, organizadas em forma de Estados, contraem entre seus membros, como regras elementares de convivência pacífica, e que precisam ser revistos, eventualmente refeitos, ao longo de suas respectivas histórias. Como não deveria impressionar ninguém, imperadores, estadistas, partidos políticos, movimentos sociais, pensadores individuais, tendem a reproduzir ideias, formações políticas e instituições que, em democracias ou em regimes autocráticos, prolongam conceitos e organizações de coexistência social que perpassam toda a história humana, das próprias civilizações. As condições materiais e humanas sempre mudam, as circunstâncias políticas, econômicas e até morais vão se alterando ao sabor dos tempos, e com elas devem mudar também as “relações contratuais” que regem as interações dos estratos sociais entre si. Constituições nascem, são mudadas ou perecem no seu curso; elas podem ser estabelecidas consensualmente, ou impostas por algum poder dominante.

Quando Tocqueville escreveu O Antigo Regime e a Revolução, aproximadamente em 1848, ele tinha sido, por breve tempo, chanceler da Segunda República francesa, e o país já estava em sua quinta constituição, das quinze que acumulou até chegar na atual Quinta República (já um tanto abalada). Ou seja, a França já teve o dobro de constituições do que número exibido pelo Brasil, que, por sua vez, já teve quase tantas moedas quanto teve de constituições, um campeão absoluto na história monetária mundial (pelo menos até aqui, esperando que a Venezuela chavista ou a Argentina, peronista ou liberal, nos ultrapassem). 

A prolificidade na feitura de novas constituições é uma característica da história política dos países modernos e contemporâneos, o que poderia indicar, na visão de Kant, que estaríamos nos aproximando da “paz universal”, a qual, segundo o filósofo de Konigsberg, só seria alcançável quando todos os Estados fossem regimes constitucionais. Por acaso, as cartas escritas do século XVIII para cá tendem a repetir dispositivos e instituições relativamente similares aos padrões estabelecidos por Montesquieu, com alguns toques de Benjamin Constant e, vez por outra, um liberalismo político à la Cádiz (Carta de 1812), com algumas peculiaridades da constituição americana em países presidencialistas, como os da América Latina, Brasil inclusive. Nessa visão, praticamente todos os países contemporâneos deveriam, com poucas exceções, consolidar a organização de seus Estados com base no conhecido esquema tripartite dos poderes, que seriam, pelo menos teoricamente, harmônicos e independentes entre si, com algumas instituições assessórias no plano judiciário ou no controle dos gastos públicos. Parafraseando George Orwell, se poderia dizer que “todos os animais constitucionais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. 

A organização política do Brasil precede a sua primeira constituição, a de 1824, pois que um “Estado”, ou algo equivalente, já existia, embrionariamente, desde que aqui chegou o primeiro governador-geral, Dom Tomé de Souza, em 1549, depois sucedido por vários vice-reis e, finalmente, pela Corte dos Braganças em sua inteireza, em 1808. Um dos Braganças fugidos da invasão napoleônica, o Príncipe Regente D. João, foi quem construiu os primeiros rudimentos de um Estado moderno no Brasil, entre 1808 e 1821, a partir de quando se assentam as bases de um futuro Estado independente, que toma forma, muito precariamente, já sob a regência do príncipe Dom Pedro, para depois se apresentar ao mundo como “Império do Brasil”, no final de 1822. O reconhecimento diplomático formal demorou um pouco mais, ainda que os Estados Unidos tenham dada a partida em 1824; mas as grandes potências europeias só começaram a reconhecer nossa existência depois que “acertamos as contas”, com Portugal e com Dom João VI, no tratado patrocinado pela Grã-Bretanha em 1825.

O ano de 2024 representa, portanto, o bicentenário de nossa primeira Carta, e cabe examinar como se organizou o novo Estado, a partir da Constituição de 1824 (outorgada, após o fechamento arbitrário, pelo jovem imperador, da primeira Assembleia Constituinte) e como se consolidou esse Estado, basicamente pela “parada institucional” oferecida pelo chamado Regresso, depois dos impulsos liberais dos primeiros tempos. Questões adicionais, que são tratadas pelos historiadores especializados, referem-se aos fundamentos conceituais, no plano econômico e político, da jovem nação americana, a segunda maior do hemisfério (mas muito atrasada em relação ao gigante anglo-saxão do Norte) e, também, quais foram, no início de nossa conturbada história política, os projetos para o Brasil, essencialmente o Estado unitário monárquico que Bonifácio estimava indispensável à preservação da própria existência da nação; ele se viu ameaçado, desde o ato da criação constitucional, por impulsos republicanos e progressistas avançados, por Frei Caneca por exemplo, um dos maiores intelectuais de nossa história, infelizmente ceifado pela prepotência da Corte do Rio de Janeiro, na breve experiência da Confederação do Equador, em 1824, proponente de um Estado federal, como finalmente a República se encarregou de instituir, 67 anos depois.

O foco central deste livro, uma compilação de ensaios de sociologia política, é essencialmente o Estado brasileiro, antes que a nação, pela simples razão – como já enfatizado anteriormente – de que o Estado precede a nação, e, de certa forma, ele a cria, a molda e a organiza (algumas vezes de forma brutal, como na escravidão do século XIX, ou nas ditaduras do século XX). O centralismo ibérico foi preservado na institucionalidade aqui implementada pelos Braganças e depois adaptado às peculiaridades da terra, como foi detectado desde cedo pelos liberais conservadores das Regências e do Regresso, ao início do Segundo Reinado. Foi quando o Estado brasileira deixa, finalmente, de ser “português”, como demonstrado em inúmeras inclinações políticas e diplomáticas do primeiro imperador. 

Alguns intérpretes, como Manoel Bomfim, ao início do século XX, afirmaram que o Estado só se tornou realmente “brasileiro” depois de 1831, embora Hipólito da Costa, que pode ser considerado o primeiro estadista brasileiro – a despeito de jamais ter vivido na terra que ele considerava sua, desde os estudos em Coimbra, na última década do século XVIII –, tinha plena convicção de que a nação começou a ser forjada desde a transferência da Corte, quando ele também dá início ao seu grande empreendimento intelectual, o Correio Braziliense, editado em Londres de 1808 a 1822. Essa é exatamente a postura de dois grandes intelectuais brasileiros, ambos “súditos portugueses”, admiradores de Adam Smith, Cairu e Hipólito, que figuram em primeiro lugar entre os “construtores da nação”, no meu livro sobre os “projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior”, publicado em 2022.

Não há por que esconder a origem europeia de nossas instituições de Estado, e não poderia ser de outro modo, dados os vínculos de toda a sorte que nos prendiam ao molde português e, em parte, ao espírito liberal da Carta de Cádiz, que foi brevemente adotada em Portugal depois da Revolução do Porto, em 1820, e que, portanto, influenciou, em certa medida, os constitucionalistas eleitos e os membros da comissão que redigiu a Carta no final de 1823. Estes são alguns dos temas históricos que perpassam os ensaios que aqui coletei sobre nossa formação constitucional, não de um ponto de vista jurídico, mas essencialmente sociológico. 

Desde o Brasil do Segundo Reinado, se não antes, o Estado brasileiro começou a se organizar, sob o domínio das oligarquias, como um pequeno Leviatã burocrático, chegando, na República, a se apresentar como um grande Leviatã que invade e controla a vida de todos os cidadãos. Já no século XIX, esse Estado havia criado múltiplas formas de “extorsão” fiscal, um comportamento bastante bem preservado em todas as épocas, até nossos tempos. A tributação já tinha estado presente, inclusive, nas questões do tráfico e da escravidão, provavelmente a maior tragédia nacional em mais de quatro séculos de história, pois que deixou marcas indeléveis na nacionalidade, mesmo depois de terem sido ambos abolidos. A ideia, falsa, de que Rui Barbosa “destruiu” os registros da escravidão, se refere, mais exatamente, ao apagamento dos comprovantes de tributos recolhidos sobre transações privadas envolvendo escravos, para evitar justamente que o Estado fosse acionado pelos proprietários não ressarcidos de qualquer demanda agressiva por parte dos frustrados senhores de escravos, que se consideravam esbulhados. O Brasil, por sinal, é o mais antigo e frequente “cliente” dos relatórios anuais da primeira ONG do mundo, a British Anti-Slavery Society, pois que nunca deixamos de figurar em seus registros, seja durante o tráfico, depois enquanto durou o regime escravo, seja ainda, contemporaneamente, na parte das “formas análogas à escravidão”, que são ainda abundantes no vasto heartland brasileiro, e até em algumas grandes cidades (e até capitais dos estados). Essa ONG se tornou internacional, também uma das primeiras, logo depois que o Reino Unido aboliu a escravidão. 

Os fundamentos doutrinais e jurídicos desse primeiro Estado – e dos que se seguiram, nos dois últimos séculos – foram formulados nas duas faculdades de Direito criadas ainda no Primeiro Reinado, reformadas ao final do Império e na República. O Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco são dois dos mais conhecidos representantes da nossa tradição bacharelesca, que continua dando um prestígio talvez exagerado aos bacharéis de Direito. Estes integram a quase totalidade da diplomacia profissional, à qual pertenci e na qual trabalhei durante quase meio século. Ela hoje está aberta aos mais diversos talentos – como queria o verdadeiro “pai” da política externa brasileira, Paulino Soares de Souza, o Visconde do Uruguai –, mas ela sempre essencialmente lotada de bacharéis em Direito. Talvez, não por outra razão, os privilégios associados ao nosso Leviatã florescem mais em favor daqueles que servem ao próprio Estado do que sobre aqueles que “florescem” na sociedade civil como meros produtores de bens tangíveis e intangíveis: o Brasil sempre “produziu” mais advogados do que engenheiros.

Centenários, ou datas redondas, nos oferecem uma oportunidade de refletir sobre o que fizemos em nosso passado, como anda o estado presente das coisas e o que ainda nos resta fazer para completar os projetos formulados pelos grandes estadistas da nação. Em 1922, as comemorações oficiais do primeiro centenário da independência se fizeram por meio de uma Exposição Internacional do Rio de Janeiro, uma iniciativa que procurava emular as exposições universais que estavam voga desde a Grande Exposição do Palácio de Cristal, em Londres, em 1851. Ela foi precedida, no começo do ano, pela Semana de Arte Moderna, em São Paulo, um empreendimento vagamente afiliado ao futurismo que então agitava os círculos intelectuais europeus; o seu organizador, Mário de Andrade, já era um dos grandes intelectuais brasileiros, justamente especialista em identificar algumas de nossas excentricidades, como mais tarde representado pela figura de Macunaíma. Do lado menos oficial, tivemos, logo depois, a fundação do Partido Comunista do Brasil (seção brasileira da III Internacional), nosso mais conhecido Partidão, ou PCB: ele foi o mais longevo partido clandestino de nossa história política, embora tenha conseguido influenciar, por alguma mística atraente, boa parte da chamada intelligentsia brasileira.

Dois anos depois da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade, constatando que o Brasil ainda não tinha deslanchado para o futuro, confessou, de forma talvez decepcionante num poema-revelação, bizarramente chamado “O poeta come amendoim”, que as melhorias demorariam ainda para chegar: “Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. Os bacharéis da diplomacia aproveitaram o centenário da independência para organizar e publicar, entre 1922 e 1926, os Arquivos Diplomáticos da Independência. O Itamaraty ainda se encarregou de republicar uma nova edição facsimilar dos Arquivos no sesquicentenário da Independência, em 1972, quando os militares no poder preferiram organizar um bizarro “passeio” dos ossos do primeiro imperador por várias “províncias” brasileiras, como uma espécie de resgate histórico da nossa “lusitanidade”. Esses Arquivos foram novamente republicados no bicentenário, em 2022, também pelo Itamaraty, e na exata forma em que tinham sido pela primeira vez editados nos anos 1920.

O primeiro centenário da nossa primeira Carta Constitucional, em 1924, não foi devidamente comemorado, provavelmente porque se queria esquecer a monarquia e, também, porque já tínhamos entrado no ciclo das revoltas tenentistas que desembocariam na Revolução “Liberal” de 1930. Paradoxalmente, ela abriu caminho a um dos períodos autoritários mais tenebrosos de nossa história, junto com o segundo, poucas décadas depois, ambas fortalecendo o poder Estado, acima e à margem das constituições surgidas, mudadas e desaparecidas à sombra de cada um deles. Elas foram as de 1934 (derivada de uma Constituinte corporativa), a imposta em 1937, inaugurando a ditadura do Estado Novo, e a de 1946, votada democraticamente por uma Constituinte, reformada em 1961, para a introdução do parlamentarismo e revertida ao presidencialismo por um plebiscito em 1963; o golpe de 1964 a desfigurou mediante atos institucionais, até ser substituída pela de 1967, ela própria emporcalhada por um ato adicional autoritário em 1969. A Carta democrática de 1988 segue sendo acrescida de inúmeras emendas, e é a mais prolixa de todas elas, o que é justamente a razão de tantos acréscimos puramente circunstanciais, quando não oportunistas.

 

Este livro deveria estar centrado unicamente nas constituições brasileiras, mas ele trata, em grande medida, do peso crucial do Estado sobre nossas vidas. Este, há muito, já deixou de ser aquele agente do crescimento e dos grandes empreendimentos nacionais para se converter num freio, talvez até um obstáculo, a um processo de crescimento sustentado, e bem menos um promotor do desenvolvimento social e cultural. Da “altura” destes 200 anos da primeira Constituição, e baseando-nos nas seis outras, podemos traçar um modesto balanço, e talvez até um diagnóstico mais preciso, de nossas insuficiências acumuladas até aqui, como reveladas nas instituições e experiências formuladas e implementadas quando do “primeiro Estado brasileiro”, para concebermos novos projetos no decorrer do terceiro centenário da Independência, que já se iniciou, à sombra de algumas nuvens estatizantes sempre presentes em nossa história.

Ainda não conseguimos superar os entraves burocráticos, jurídicos e políticos, do atual Leviatã inzoneiro, o Estado que, aparentemente moderno, preservou os traços essenciais do patrimonialismo que, segundo Raymundo Faoro, deita raízes na era medieval portuguesa. Depois de duas décadas de tecnocracia autoritária, chegamos a uma “Nova República” prometedora no itinerário dos direitos e das liberdades, mas que já parece estar ameaçada em seus fundamentos doutrinais pela divisão política da nação em dois projetos populistas que nos remetem ao lugar comum dos populismos latino-americanos. À luz dos “Estados” incompletos que tivemos nos últimos dois séculos, um exame circunstanciado das antigas e da atual Carta constitucional talvez nos ajude a rever nossos acertos e desacertos nos duzentos anos passados, assim como a prevenir desenvolvimentos indesejáveis para o futuro do atual Estado brasileiro ao longo do seu terceiro centenário. 

Este livro pretende oferecer uma modesta contribuição ao conhecimento de algumas das edificações constitucionais que balizaram a organização da nação, desde aquela que esteve presente no nascimento do Estado brasileiro, até a atual Carta, que fez promessas de novos avanços democrático nas próximas etapas de nosso desenvolvimento histórico. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 18 de novembro de 2024


segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Brasil - Projeto de Indicadores da OCDE: resultados divulgados pelo IPEA

Brasil - Projeto de Indicadores da OCDE: resultados divulgados pelo IPEA

 Projeto de Indicadores da OCDE

IPEA disponibilizou na sua página web, na semana passada, a versão final, editada, de coletânea (5 volumes) com os resultados de projeto que coordenei, sobre indicadores quantitativos usados pela OCDE (analisamos 3700 deles) e a realidade brasileira. Uma versão preliminar foi divulgada no final do ano passado. Quem quiser acessar, os links são:

https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/12346

https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/16173

https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/16174eee

https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/16175

Um abraço

Renato Baumann

Cátedra Oswaldo Aranha no IRI-USP: segurança, defesa e crimes transnacionais - Michael Miklaucic (Estadão)

 Comunicação recebida do professor Leandro Piquet, da USP:

Foi inaugurada, na Universidade de São Paulo, a Cátedra Oswaldo Aranha que estará sediada no Instituto de Relações Internacionais da USP.  A Cátedra dedica-se aos temas de segurança e defesa internacional, mercados ilícitos transnacionais e crime organizado.

No primeiro ciclo da Cátedra em março de 2025, ela receberá o Prof. Michael Miklaucic, como Catedrático. Michael é também professor da National Defense University em Washington e é Lecture da Universidade de  Chicago e do Marshall Center na Alemanha. 

Acaba de Publicar artigo no Estadão sobre o alinhamento do Brasil no contexto da disputa entre EUA e China.

A escolha do Brasil d o legado de Oswaldo Aranha”, 

O Estado de S. Paulo, 16/11/2024

https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/a-escolha-do-brasil-e-o-legado-de-oswaldo-aranha/?srsltid=AfmBOop-brlcy-6E77RlSMznZRqcPLqZXOAE7l505Hy2E5En33WLHNv1

Opinião 

A escolha do Brasil e o legado de Oswaldo Aranha

O que acontece na Ucrânia, no Mar do Sul da China e no Oriente Médio é tão importante para o País hoje quanto as guerras europeias do século 20

Michael Miklaucic

O Estado de S. Paulo, 16/11/2024

 

Em 1942, enquanto a 2.ª Guerra Mundial assolava a Europa, o estadista brasileiro Oswaldo Aranha tomou uma decisão corajosa e fatídica. Ele decidiu que a responsabilidade moral e o interesse nacional do Brasil seriam mais bem atendidos se ele se alinhasse com os aliados democráticos contra as forças do autoritarismo e da tirania. Foi a decisão certa e colocou o Brasil do lado certo da História.

A 2.ª Guerra Mundial foi um ponto de inflexão histórica. Hoje, estamos diante de outro. A tecnologia e as mudanças tectônicas no poder geoeconômico e geoestratégico representam uma ameaça existencial à ordem liberal e baseada em regras, que prevaleceu desde a 2.ª Guerra Mundial. Como no século 20, dois campos distintos estão surgindo, com visões drasticamente diferentes e, em última análise, incompatíveis. Cada um deles está centrado em um super atrator global; de um lado a República Popular da China, do outro os Estados Unidos.

Alinhados com a China estão a Rússia, o Irã, a Coreia do Norte, a Venezuela, Cuba e alguns outros: formam a coalizão autoritária. Os Estados Unidos são acompanhados por seus aliados formais, incluindo a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliados asiáticos e da Anzus – tratado de segurança entre Austrália, Nova Zelândia e EUA –, e alguns parceiros não aliados. Eu me refiro a esse grupo como o núcleo liberal. Os cerca de 150 países restantes são países com estratégia de cobertura (hedging); Estados que apostam em relação a qual campo aderir, na esperança de aderir àquele que, em última análise, prevalecerá na competição pelo poder e influência globais. Alguns podem tentar a dinâmica de jogar um campo contra o outro, enquanto outros podem buscar um caminho próprio e independentemente dos superatratores (alguns membros do Brics podem ter isso em mente).

O Brasil é um membro proeminente do grupo de hedging, mas com potencial para superpotência por si só. Sua influência na América Latina já é substancial e, se tiver vontade, poderá se tornar uma influência global. Entre os maiores países do mundo, tanto em população quanto em território, com uma economia entre as dez maiores do mundo e enormes recursos humanos e naturais, o Brasil tem muito a oferecer a ambos os lados, caso opte por se alinhar ao núcleo liberal ou à coalizão autoritária.

O futuro do Brasil não deve ser planejado sem uma estratégia, e a estratégia exige decisões. Para tomá-las, o Brasil deve primeiro decidir que tipo de país ele é e quer ser. As opções oferecem alternativas claras. Os brasileiros devem informar a seus líderes quais valores adotam e de quem desejam manter a companhia. Será que eles valorizam a liberdade individual, a liberdade de expressão e de religião, os mercados livres e os líderes de sua própria escolha? Esses valores são fundamentais para os países do núcleo liberal. Eles não existem nos países da coalizão autoritária que, em vez disso, valorizam a obediência comunitária, a vigilância generalizada, a política estritamente controlada e orientada por uma elite “esclarecida” e a economia oligárquica ou centralizada.

É certo que os Estados Unidos não são um aliado fácil. Eles podem ser exigentes, surdos, hipócritas, inconsistentes e egoístas. No entanto, historicamente, os países que se alinharam com os EUA prosperaram muito mais do que aqueles que se posicionaram contra eles. Como todas as grandes potências, seu histórico internacional não é imaculado, com sua parcela de erros e lapsos. Além disso, nas últimas décadas, os Estados Unidos negligenciaram lamentavelmente seus vizinhos do sul. Essa negligência é claramente sentida em toda a América Latina, onde muitos se sentem desvalorizados. Cabe aos EUA remediar essa situação e reconhecer o privilégio exorbitante de viver no hemisfério ocidental, e seu enorme potencial. Em resumo, os Estados Unidos precisam se esforçar mais.

Alguns podem argumentar que não há necessidade de os brasileiros escolherem entre campos rivais liderados por superpotências globais. Afinal, o Brasil está muito distante da feroz luta pelo poder entre os Estados Unidos e a China, mais ainda do caldeirão do Oriente Médio, das águas agitadas do Mar do Sul da China ou dos campos de batalha da Ucrânia e da Rússia. “Seus problemas não são nossos problemas”, podem dizer. Mas em um mundo intensamente interconectado e globalmente integrado, essa é uma visão plausível? O Brasil importa 40% de seu fertilizante e 40% de seu óleo diesel da Rússia, enquanto a China é seu maior parceiro comercial. A influência que isso traz não deve ser subestimada. O que acontece na Ucrânia, no Mar do Sul da China e no Oriente Médio certamente é tão importante para o Brasil hoje quanto as guerras europeias do século 20 eram na época de Oswaldo Aranha. As escolhas que os brasileiros enfrentam são importantes e urgentes; os riscos são altos. A decisão de Aranha, há 82 anos, de se alinhar com as democracias contra os nazistas e fascistas, foi a mais correta; uma decisão semelhante seria a mais acertada hoje.

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Opinião por Michael Miklaucic

É professor titular de Estudos de Segurança da Cátedra Oswaldo Aranha, na Universidade de São Paulo, e da Universidade de Chicago

Copyright © 1995 - 2024 Grupo Estado

 

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Permito-me indicar os dois livros que organizei sobre o estadista Oswaldo Aranha, focando suas atividades diplomáticas e internacionais:
Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro
(Brasília: Funag, 2017, 2 vols.)
Obra disponível na Biblioteca Digital da Funag:
Sérgio Eduardo Moreira Lima; Paulo Roberto de Almeida; Rogério de Souza Farias (organizadores); Brasília: Funag, 2017;
volume 1, 568 p.; ISBN: 978-85-7631-696-1; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=913
volume 2, 356 p.; ISBN: 978-85-7631-697-8; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=914

domingo, 17 de novembro de 2024

China: da abertura para um mundo de "desordem sob os céus" para "sinergias" - Paulo Pinto (Linkedin)

O maior especialista na China e em assuntos asiáticos em geral, refaz o caminho chinês para a modernização.

 

CHINA - DA ABERTURA PARA UM MUNDO DE “DESORDEM SOB OS CÉUS”, PARA “SINERGIAS” QUE PRESCREVAM FORMAS DE GOVERNANÇA CHINESAS AO LONGO DE SEU “CINTURÃO”

Paulo Pinto

Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

Linkedin, November 15, 2024

https://www.linkedin.com/pulse/china-da-abertura-para-um-mundo-de-desordem-sob-os-c%C3%A9us-paulo-pinto-cqq5f/ 

 

O início da década de 1980 é reconhecido como um marco, na história recente da China, quando se deu o processo de abertura do país ao exterior, após a fase turbulenta da Revolução Cultural.

Procuro, a seguir, resgatar ensinamentos da experiência pessoal de ter servido em Pequim, entre 1982 e 1985, no Sudeste Asiático, entre 1986 e 1995 e em Taipé, entre 1998 e 2006. O exercício de reflexão a seguir é resultado, portanto, mais de conclusões de vivência do autor, do que de trabalho acadêmico.

Parto da premissa de que cabe procurar na origem do pensamento chinês sobre a organização do “Império do Centro”, explicações sobre o atual sucesso econômico da RPC. Haveria, também, possíveis riscos da tentativa de imposição de sua forma de governança através de “rota” em diferentes países da África e América Latina (vide meu texto publicado em 21 de outubro).

O artigo reflete a convicção de que, tanto no plano interno, quanto no externo identificam-se, na década de 1980, alterações resultantes de condicionantes históricas de forma de pensar chinesa, capazes de influenciar o cenário atual da RPC.

Acredito ser importante o resgate da lógica de que aquela nova cena de partida, em direção ao cenário atual, ajuda no esforço de reflexão sobre o que se passa, hoje, na República Popular da China. Por um lado, para o entendimento do presente naquele país, cabe abandonar raciocínios e equações, a partir de modelos fora do contexto cultural chinês. Por outro, conforme se exporá na conclusão, o modelo atual de governança em Pequim começa a ser considerado como exemplo a ser seguido, em outras nações.

 

O Início da Modernização

No início da década de 1980, quando cheguei a Pequim, não era possível deixar de sentir uma certa tristeza, pelo fato de que havia sido encerrada, na China, uma Era de convicção poética maoista. A partir de 1949, acreditara-se que, em benefício do interesse comum da sociedade, centenas de milhões de pessoas poderiam ser levadas a patamar mais elevado do que o egoísmo individual.

A experiência chinesa de busca de uma sociedade igualitária encantara a muitos. Os países do Terceiro Mundo admiravam sua combatividade e autossuficiência. Os economistas ocidentais registravam o pleno emprego atingido, no campo, e invejavam sua força de trabalho disciplinada, na indústria.

O exercício de observação diário e o aprendizado da realidade do país, no entanto, indicavam que não se vivera na China, nas três décadas anteriores, tantos motivos de encantamento.

Na verdade, perdurara o elitismo e a corrupção entre os dirigentes do partido e do governo. O lento progresso obtido na economia demonstrara não ser tão fácil, desenvolver-se com os próprios recursos, sem a infusão de investimento, tecnologia ou ajuda externa.

Em suas relações internacionais, sabe-se, a República Popular, desde sua fundação, em 1949, havia mantido um vasto exército e milícias armadas e desenvolvido a bomba atômica. A China tivera conflitos com a União Soviética e Índia e fricções com o Japão, com respeito às Ilhas de Senkaku, e com o Vietnã, quanto às Spratlays. Não se tratava, portanto, de país totalmente “amante da paz”, conforme se divulgava em Pequim aos visitantes estrangeiros.

No plano interno, na medida em que se conhecia melhor a real situação chinesa, ficavam diminuídos, inclusive, os ganhos considerados, por exemplo, no controle familiar. Havia sido enorme, verificava-se, o custo, em termos de direitos humanos, na proibição de casamentos antes dos 20 anos e obrigatoriedade de apenas um filho por casal.

Não se quer negar, no entanto, as grandes conquistas do período maoista, nem os feitos do povo chinês. Um país que, na primeira metade do século XX, fora devastado por guerras internas, encontrava-se, no início da década de 1980, unificado, apesar das crises de liderança resultantes da Revolução Cultural.

Como era possível verificar, a China alimentava e vestia seu povo. Um esforço descomunal fora feito para construir represas, diques e sistemas de irrigação, bem como no sentido da autossuficiência alimentar.

Mas seria isso suficiente? Tais conquistas teriam que ser vistas em perspectiva.

Mao Zedong tornara a “necessidade” em “virtude”, como base de sustentação para política de autossuficiência. Em grande parte, tratava-se de reação ao fato de que os soviéticos terem cessado todo e qualquer auxílio, a partir de 1960, levando consigo, inclusive as matrizes de fábricas cuja instalação já havia sido iniciada.

O Grande Timoneiro, então, colocou toda sua crença na “genialidade do povo chinês”. Doravante, tudo seria resolvido com a mobilização permanente das “massas”. Como consequência, surgiriam energias e talentos até então escondidos por sistema social opressivo. Na década de 1960, por exemplo, ampla campanha nacional encorajava simples operários a fazerem sugestões sobre inovações tecnológicas. Exageros evidentes eram noticiados a respeito do aumento de produtividade como resultado de soluções práticas obtidas nos canteiros de obras, campos agrícolas e operadores de máquinas nas fábricas.

O caráter “anticientífico” das práticas maoistas chegou ao apogeu durante a chamada Revolução Cultural, quando professores e alunos foram obrigados a curvar-se diante da “sabedoria” das massas.

Postura semelhante fora adotada nas forças armadas chinesas, onde o conceito maoista de “guerra popular” baseava-se na premissa de que “homens contavam mais do que máquinas”. Nessa perspectiva, centenas de milhares de soldados de infantaria, com armamento obsoleto, seriam capazes de derrotar um Exército soviético equipado com armas modernas. Mantinha-se, no entanto, a dissuasão nuclear, na medida em que a China não renunciava a sua própria bomba atômica.

Com a derrota do “bando dos quatro”, a China desencadeou outra campanha, desta feita para condenar a viúva de Mao, visando a acusá-la e a seus três cúmplices de Xangai, pela maioria dos fracassos e fraquezas dos anos anteriores. Este novo processo implicou, novamente, em notáveis exageros nas acusações. A mensagem, no entanto, era clara: os dirigentes chineses haviam tomado consciência de que suas políticas de autossuficiência, recusa em aceitar ajuda externa e a negativa à aquisição de tecnologia estrangeira haviam reduzido as taxas de crescimento e o progresso em quase todos os setores da economia.

A rejeição da ideologia passada foi feita na forma de pronunciamentos que, gradativamente, desautorizassem o autoritarismo vigente sob Mao Zedong, cuja memória continuava a ser reverenciada, com todas as honras devidas ao fundador da República Popular da China. Tratava-se, no entanto, de trazê-lo a proporções humanas.

Começava o processo de estabelecer seu lugar na história, como um grande líder revolucionário, mas como um homem com menor sucesso, quando se tratou de administrar um país. Suas principais preocupações diziam respeito à eliminação dos dogmas socialistas, agora vistos como impedimento à nova marcha da China, em direção à modernização. O principal responsável pelas alterações na condução das políticas, econômica e social da China, a partir de 1978, e “Novo Timoneiro”, passou a ser o então Vice-Primeiro-Ministro Deng Xiao-Ping.

O julgamento público de Mao, no entanto, tinha dimensões restritas. Todos os erros cometidos no período de radicalização maoista eram atribuídos a Lin Piao e ao “bando dos quatro”. Para o cidadão chinês, contudo, havia implicações óbvias: não era possível aceitar que toda a culpa fosse atribuída a um traidor e a quatro radicais – na prática, os novos dirigentes em Pequim estavam admitindo que a “Grande Revolução Proletária Cultural” havia sido um fracasso enorme e custoso.

O próprio retorno de Deng Xiao-Ping ao poder, como Vice-Primeiro-Ministro já significava uma rejeição eloquente a julgamentos emitidos por Mao, que havia dado seu apoio pessoal às duas quedas anteriores de Deng.

Não era possível ignorar, contudo, que Mao tinha razão quanto ao diagnóstico sobre os males que atingiam a China. Assim, de acordo com sua visão, o maior perigo para o país seria o retorno à estagnação imposta pela burocracia do partido e do estado.  Suas soluções eram poéticas e imaginativas: uma série de campanhas para mobilizar os intelectuais – “O Movimento de Cem Flores” – a busca de um caminho mais curto para o Socialismo – “O Grande Salto Adiante” – e a provocação de uma “discórdia criativa” entre a juventude do país e a burocracia estatal – “A Revolução Cultural”.

Mas, como se sabe, Mao não obteve sucesso na criação do “homem socialista”.  Ele pediu demais, tanto dos chineses, quanto da natureza humana.

No final da década de 1970, no entanto, todo este processo havia sido esquecido. Ficara provado que, em tese era uma boa ideia encorajar os trabalhadores a pensarem o aumento da produção com seus próprios meios.  Na prática, a premissa ideológica, sobre a qual se baseava – a de que a sabedoria está consagrada nos trabalhadores – conduziu a medidas impraticáveis, como por exemplo, a utilização de máquinas antiquadas sendo empregadas em velocidade inapropriada, provocando acidentes ou resultados negativos.

Verificava-se, por exemplo, que a produção de cereais ficara estagnada. Não houve progresso em projetos de irrigação, nem de novos fertilizantes agrícolas, enquanto a população chinesa continuava a aumentar. O país continuou a importar alimentos. Houve sérios casos de fome generalizada, por falta de alimentação.

A mesma ausência de melhoria foi notada no setor industrial, onde prevaleceu a política maoista de autossuficiência e oposição a aprender da experiência de outros países. Tal postura levou, por exemplo, à estagnação da produção anual de aço, ao lento progresso tecnológico, a preservação de fábricas antiquadas, com equipamentos, tecnologia e formas de administração superados e emprego excessivo de mão de obra.

Com a morte de Mao Zedong e a derrubada do “Bando dos Quatro”, a China podia, finalmente, enfrentar com clareza e determinação seus inúmeros problemas e tomar as decisões cabíveis, para superá-los. O corpo do “Grande Timoneiro” fora colocado em mausoléu, construído na Praça da Paz Celestial, quebrando, a propósito, a harmonia do local, no centro de Pequim (na sequência do processo chinês de abertura ao exterior, para suprema heresia, uma lanchonete de “fast food” americana foi estabelecida nas vizinhanças do túmulo).

Não se tratava, no entanto, de abrir mão, completamente, do pensamento maoista que, então, permeava de forma abrangente a “maneira de fazer as coisas”, no país. Assim, continuava a ser citada, por exemplo, a obra “Sobre as Dez Grandes Relações”, publicada em 1956. Nela, Mao oferecia exercício de reflexão que poderia, no momento da abertura externa do país, na década de 1980, conter explicações ainda úteis para justificar qualquer que fosse a orientação a ser adotada pelos novos dirigentes de Pequim.

Havia sido abandonado, contudo, o fundamento da filosofia maoista: o “conceito hegeliano” de que a unidade deve ser dividida em duas partes e que cada situação contém em si contradições saudáveis que são necessárias para a luta e o progresso, levando, assim, à noção de luta de classes contínua e revolução permanente[1].

Segundo Mao, a China não deveria jamais permitir-se cair na complacência da “unidade” e, de acordo com esta filosofia, o “Grande Timoneiro” teve a audácia poética de desencadear uma revolução contra seu próprio governo e partido. O veredito da história será provavelmente o de que, enquanto Mao foi um dos maiores líderes revolucionários, demonstrou ser um governante menos habilidoso, uma vez que sua revolução se tornou vencedora. Provocou, assim, severas perdas a seu país e a morte de milhões de pessoas, enquanto perseguia suas visões utópicas.

Os novos líderes em Pequim pareciam retomar abordagem mais tradicional de forma de governança. 

 

A Busca do “Caminho Real”

No início da década de 1980, portanto, o sentimento dominante era o de que a morte havia “humanizado” Mao Zedong e “desmitificado” a China, que, então, admitia suas limitações no trato com os grandes problemas do país.

A nova política pragmática representava praticamente a recusa total das doutrinas que haviam dominado as políticas agrícola e industrial dos últimos 20 anos. Todas as empresas públicas, por exemplo, foram instruídas a gerar lucros – proposta impensável, até recentemente. Incentivos materiais passaram a substituir a pureza ideológica. A China conscientizou-se de que necessitava da tecnologia do Ocidente e, enquanto abandonava sua política restritiva de “autossuficiência”, começava a buscar fontes de financiamento de longo prazo – ajuda, em outras palavras – para financiar suas compras de “know-how”, instalações industriais, navios, equipamento de transporte e material de emprego militar.

Nessa perspectiva, no período de vivência do autor naquele país, entre 1982 e 1985, autoridades chinesas persistiam no esforço de implementação de políticas pragmáticas, com vistas a dissociar-se dos fins marxistas de construção de uma sociedade que se limitasse a fornecer “a cada um, de acordo com suas necessidades”. Buscar-se-ia, doravante, recompensar as pessoas de acordo com seu bom desempenho, produtividade, antiguidade e qualificações.

Este novo pragmatismo viria a ser colocado em prática com a mecanização da agricultura, modernização da indústria pesada e reequipamento das forças armadas. Sempre que necessário e no contexto das disponibilidades orçamentárias, seriam comprados equipamentos e tecnologias do exterior, na forma de “turn-key”, com a aquisição de fábricas japonesas, aviões militares Harrier britânicos ou “offshore oil expertise” dos EUA e Europa.

Não se abandonava, contudo, o discurso adotado, desde a fundação da República Popular, no sentido de atribuir a influências burguesas externas crimes financeiros, corrupção e fenômenos sociais indesejáveis. Assim, enquanto programava novas políticas econômicas liberais, Pequim efetuava sucessivos expurgos de elementos prejudiciais ao partido e governo, promovendo o combate a infrações prontamente puníveis com julgamentos sumários e execuções públicas. Entendia-se que era necessário, naquela fase, atender a “sentimentos puritanos” de conservadores do PCC, eliminando-se, desta forma, os aspectos mais desagradáveis do processo de modernização.

Para os moradores em Pequim, naquele período, era comum testemunhar – como tive a infelicidade de compartilhar - na avenida principal, a passagem de caminhões militares, com condenados à morte, em direção ao estádio, onde seriam executados em grupos, com um tiro na nuca. É sabido que, em seguida, a família do “justiçado” recebia a conta pelo gasto governamental com a bala da arma utilizada.

Observadores mais prevenidos, no entanto, sentiam que a “correção ideológica” não era, naquele momento, a real prioridade dos dirigentes chineses. Tratava-se, sobretudo, de conter eventuais expectativas irrealistas de grande parte da população, que, como decorrência da abertura do país para o exterior, poderia imaginar que seria possível obter, rapidamente, o mesmo padrão de consumerismo já então vigente no Ocidente. A manutenção da disciplina, portanto, era essencial para preservar o ritmo lento de crescimento que o Partido Comunista ainda decidia impor.

Havia, de qualquer forma, pouca dúvida quanto ao fato de que, em longo prazo, a motivação pelo lucro viria a prevalecer sobre a burocracia lenta, ineficiente e quase sempre corrupta. Tal previsão, como se sabe, prevaleceu, com a adoção, ainda na década de 1990, do discurso sobre economia socialista de mercado.

Tal processo de transição causava incertezas. Havia condicionantes culturais milenares para tais expectativas. Segundo a concepção chinesa, para ser estável, a sociedade necessitava do comando de um “timoneiro” confiável, capaz de traçar um projeto nacional viável e coerente com a longa e rica história chinesa.

A este líder caberia garantir à população segurança, paz, governança eficiente – em suma uma moldura de governabilidade favorável ao progresso e prosperidade. Como reciprocidade, os governados lhe deveriam obediência, “como o bambu que se curva diante do vento” – isto é, ao governante justo é devida a total aceitação de sua autoridade.

Uma vez que o objetivo final da governabilidade era o contentamento e elevação moral do povo, Mencius[2] argumentava que, no caso de o líder falhar em seus deveres e obrigações, haveria justificativa para uma “revolução”.

Implícito neste sistema, encontrava-se o conceito de que, se o líder não cumprisse a missão de fornecer a esperada moldura de governabilidade e o tratamento benevolente de seu povo, teria prejudicado seu direito à lealdade dos governados. Segundo Mencius, sempre que pessoas chegam à posição de autoridade, existe a tendência de se tornarem corruptas, seja pelo anseio de glória ou busca de ganhos pessoais.

Fazia, então, a clara distinção entre o exercício do poder, em função da virtude do governante, e o emprego da força, como forma de obter obediência.

Lembra-se que, desde o início da civilização chinesa, há cerca de 4000 anos, nas margens do Rio Amarelo, seus pensadores procuraram estabelecer sistema de educação e ética dedicado a atingir o “Tao” [3] ou “Caminho do Meio”. Este seria uma estrutura social que refletiria o equilíbrio da natureza, onde se equivalem o “Yin” e o “Yang” [4]·.

Mais tarde, Confúcio e seus seguidores tentaram construir um ordenamento social que estabeleceria normas de conduta aos monarcas, no sentido de corresponderem a suas responsabilidades, perante seus súditos, enquanto imporiam aos governados o sentido da ordem das coisas, seus deveres e obrigações.

Confúcio escreveu: “Quando um governante exerce o poder de forma correta, ele terá influência sobre as pessoas, sem a necessidade de dar ordens. Quando o governante não age de forma correta, suas ordens não terão valor”.

O Confucionismo tem sido chamado de “a religião do li”. “Li” representa o conjunto de condutas apropriadas e a ordem social. Entre as qualidades essenciais no “Homem Superior”, a mais importante seria a “Ren” – benevolência e bondade.

Assim, uma sociedade confucionista visaria, seja a aceitação total de um dirigente, ou sua rejeição completa. Não haveria espaço, por exemplo, para o conceito ocidental de “loyal opposition”.

Qualquer membro da oposição, que reagisse por motivos honestos às políticas da autoridade no poder teria poucas opções: manifestar suas críticas, sendo imediatamente punido – por não corresponder ao tal preceito de obediência incondicional; registrar seu protesto e, em seguida, autopunir-se pelo “delito da discórdia”, talvez cometendo suicídio; ou retirar-se do convívio social e isolar-se como eremita, na floresta, com a esperança de tornar-se referência para outros descontentes, criando clima favorável para a derrubada da dinastia vigente e sua substituição por novos governantes.

Implícito em tal sistema encontrava-se o pressuposto de que o interesse pela estabilidade político-social deveria prevalecer sobre direitos individuais, tais como a liberdade de opinião ou o de expressá-las.

Em suma, era sob a égide do mesmo “mandato celestial” de sempre que Deng conduzia o processo de abertura da China ao exterior, enquanto, no plano interno, quebrava dogmas socialistas, em processo de instalação no país, a partir de 1949.

O autor teve a experiência pessoal de visitar, entre 1982 e 1985, algumas cidades costeiras que vinham adotando o novo sistema de “responsabilidade coletiva”. Isto é, até então os meios de produção e, principalmente, a terra eram de “propriedade coletiva”, e tudo o que fosse produzido seria entregue ao mercado público. Em troca, os indivíduos receberiam os bens, alimentos e serviços básicos para sua sobrevivência. Havia escassez, mas não se sofria miséria.

Foi possível ouvir narrativas, por exemplo, de que, durante o período da “Revolução Cultural”, cada pessoa receberia uma vestimenta – no estilo “traje de Mao”. Esta deveria durar nove anos. Durante os três primeiros, consideraria a roupa nova. Nos seguintes, como boa. Nos finais, adequada. Decorrido este prazo, novo conjunto de calça, jaqueta e chapéu lhe seria distribuído.

Com a nova prática – segundo o ensinado por membro de comunidade agrícola, durante um almoço ao qual o autor compareceu, em “fazenda modelo”, de cidade costeira da China – tudo continuaria a pertencer à coletividade e entregue ao mercado público. Pequena faixa de terra, no entanto, poderia ser cultivada individualmente e a produção vendida particularmente. Tal ganho poderia permitir ao camponês comprar sua própria ferramenta. Caso sua produtividade continuasse a aumentar, assim como sua renda, seria possível adquirir, por exemplo, uma segunda enxada. Em seguida, era necessário contratar alguém para operar o outro meio de produção.

 Introduz-se, assim, uma forma de relação de produção capitalista, com a exploração do trabalho de um indivíduo pelo outro. E, se este novo empresário vier a comprar grande número de ferramentas, veículos de transporte, lojas – não haveria, perguntei, uma organização de mercado monopolista?

Nesse ponto da conversa com o camponês, o representante da polícia ideológica, que vinha acompanhando o encontro intervém e declara que o governo da República Popular da China garantiria a manutenção de relações de produção e organização de mercado socialistas. Fim de caso. Cabia, então, cessar as perguntas e retornar à degustação do peixe – talvez o mais saboroso que digeri naquele país – com outras iguarias simples, mas bem-preparadas.

Era um processo de reformas, assim cuidadoso, sempre sob o controle de um sistema ainda centralmente planificado, que vinha sendo introduzido na China, na década de 1980. Sua implantação ocorria na agricultura e em versões industriais, nas áreas urbanas. Criavam-se empréstimos bancários e ações de empresas, com lucros sendo distribuídos aos operários.

Pensava-se, então, na gradativa descentralização do planejamento econômico. A planificação continuaria a vigorar nas áreas de infraestrutura e indústria pesada. Nos demais setores, haveria metas e linhas gerais. Fábricas se tornariam empresas independentes, com operários ganhando dividendos e gerentes decidindo, localmente, sobre onde obter matérias primas e a respeito de como e onde os produtos seriam vendidos e a qual preço.

A China, assim, buscava superar o ponto de equilíbrio estabelecido pelo princípio socialista, segundo o qual “de cada um de acordo com suas habilidades e a cada um de acordo com suas necessidades”, para novo paradigma – que, segundo a tradição confucionista deveria visar a estabilidade social. Este, contudo, deveria explorar a ganância e desejo por consumo de sua população.

Segundo especialistas no assunto, Mao não teria sido um líder na tradição de Confúcio. Pois – conforme descrito acima – não abraçou as normas ditadas pela “li”, que estabelecem a conduta adequada à ordem social. Teria agido no estilo de um “Macaco Rei”, liberando forças de “luan” (desordem e rebelião) para mobilizar a população e manter-se no poder. Assim, na essência do pensamento maoista se encontrava a rejeição à concepção confucionista de estabilidade. O progresso, para Mao, só poderia ser obtido pela luta contínua e permanente.

Deng Xiaoping, no entanto, personificou o retorno da China à tradição confucionista. No sentido de que caberia ao líder benevolente buscar o caminho certo para a estabilidade, segurança e o estabelecimento de forma de governança que favorecesse o progresso.

Uma das maiores conquistas de Confúcio foi a criação de um sistema educacional e de seleção por exames, aberto a todos, que veio a celebrar, na China, a figura do “acadêmico” e a classe dos “mandarins”.

Durante o período maoista, os “acadêmicos” foram considerados “parasitas”. Com a subida de Deng ao poder, o conhecimento voltou a ser valorizado. Tratava-se, agora, de encorajar a educação, incentivando especialistas, tecnocratas e gerentes com recompensas materiais, enquanto se retornava a valores tradicionais confucionistas.

Resta desejar que, com sua ascensão crescente, a RPC não busque exportar também, por seus “cinturões e rotas”, as atuais formas de governança. Em artigos próximos procurarei analisar as relações históricas do “Império do Centro” com seu entorno mais próximo, no Sudeste Asiático.

 

[1] Lew, Roland. “Mao prend le Pouvoir”. Éditions Complexe 1981.

[2] Mencius. 372-289 AC. Foi o segundo maior filósofo chinês, após Confúcio. Teve reconhecida sua teoria sobre a natureza humana, segundo a qual todos os homens possuem bondade inata, que pode ser desenvolvida pela educação e a autodisciplina, ou desperdiçada por negligência ou influências negativas, mas nunca totalmente perdida.

[3] Tao é um conceito elaborado na filosofia chinesa antiga. Significa “caminho”, ou, em certos contextos “doutrina” ou “princípios”. Pode também significar a verdadeira natureza do mundo.

[4] Na filosofia chinesa, Yin e Yang são utilizados para descrever como forças, aparentemente opostas, podem estar interconectadas e serem interdependentes em diferentes aspectos da natureza, enquanto se revezam, de forma cíclica.

 

 

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