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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O Brasil e os Estados Unidos: contraponto a Roberto Mangabeira Unger (2002)

Sempre que eu me confrontava a uma matéria sobre a política externa brasileira com a qual eu estivesse de acordo, eu buscava colocá-la à disposição de outros eventuais leitores. Mas sempre que eu me confrontava a uma matéria com a qual eu NÃO estava de acordo, também procedia da mesma forma, mas eventualmente precedida de meus comentários e observações críticas, por vezes um artigo inteiro como esse abaixo.
Caberia talvez ler antes o artigo de Roberto Mangabeira Unger, e depois o meu...
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 18 agosto 2018

O Brasil e os Estados Unidos:
Contraponto a Roberto Mangabeira Unger

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 18 maio 2002

            Em artigo na Folha de São Paulode 7 de maio de 2002, o Prof. Mangabeira Unger reincide no diagnóstico de que o Brasil estaria “sem política exterior”, ficando apenas com a “prática de negociações comerciais e com o medo dos Estados Unidos”. Ele recomenda, em lugar do medo, uma “estratégia de reposicionamento no mundo, que exprima e consolide projeto nacional de desenvolvimento”, propondo, então, uma série de ações que integre um “novo projeto brasileiro, (e que) comece a mudar as premissas da nossa relação com os Estados Unidos” De maneira a não deixar que suas idéias caiam no vazio, mas não concordando em que o Brasil esteja com medo ou diminuido frente aos EUA, vejamos quais são suas propostas e como poderiam elas ser colocadas a serviço da afirmação do Brasil no cenário mundial, em especial nas relações com os EUA. 
“Primeiro: buscar aliados dentro dos Estados Unidos que ajudem a reorientar a agenda americana com respeito à Alca e ao Brasil.” De acordo, mas seria importante identificar precisamente que forças são essas num país de mais de 250 milhões de  habitantes, atomizado em milhares de organizações de interesse específico, e que de toda forma não parecem ser capazes de se opor às forças muito mais poderosas que atuam junto ao Congresso americano, que acaba de aprovar uma série de ações – subsídios maciços aos produtores primários, mandato restritivo para negociações comerciais, apoio às salvaguardas para produtos siderúrgicos e várias outras mais – que vão todas contra nossos interesses concretos. O Prof. Mangabeira começaria bem por nos indicar quais são essas forças que ainda não lograram concretizar-se e como fazer, com a modéstia de meios que são os nossos no plano da ação externa, para mobilizá-las em nosso favor.
“Segundo: trazer à tona a empatia imensa e suprimida que os americanos nutrem pelo Brasil.” O que os americanos nutrem mesmo por nós é uma imensa e profunda ignorância, como aliás em relação a qualquer outro povo, com exceção daqueles estereótipos do mexicano de sombrero e coisas do gênero. Eles podem até gostar de nossa música e entreter imagens “exóticas” sobre nossa licenciosidade “relacional” e a exuberância de nossas florestas, mas não parecem ir muito além disso. Parece-me por outro lado ingenuidade acreditar que aUnião Européia insiste “em vincular mais comércio com maior igualdade”, o que não é de forma nenhuma confirmado pelas práticas absolutamente nefastas, para o Brasil e outros países em desenvolvimento, da “loucura agrícola comum” e toda sorte de obstáculos protecionistas ao acesso de nossos produtos aos mercados da UE.
“Terceiro: compreender que só seremos levados a sério pelos Estados Unidos quando começarmos a atuar seriamente no mundo.” De acordo, mas será que os “outros grandes países continentais periféricos, sobretudo a China, a Índia e a Rússia” podem prover-nos daquilo que mais necessitamos para “atuar seriamente no mundo”, ou seja: capitais, mercados, tecnologia, know-how, sem falar do necessário diálogo para influenciar efetivamente o processo de tomada de decisões em determinados organismos que se situam no coração de nossa inserção internacional (como OMC, FMI, BIRD, etc)?. De acordo, também, em criar “contrapesos ao unilateralismo americano”, mas o que significam, concretamente, “trajetórias alternativas de desenvolvimento”? Alguma nova receita não explicitada para a promoção de nosso progresso econômico e social? Seria preciso conhecer os componentes ativos dessa nova receita.
Mas, o professor também adverte que “Ao atuar como catalisadores de uma aproximação entre os países continentais em desenvolvimento, criando contrapeso ao poderio dos Estados Unidos, nós nos arriscamos a amedrontar o governo americano e a afastar a sociedade americana.” Trata-se aqui daquilo que os economistas chamam de “trade-off”, ou seja as consequências involuntárias, ou não desejadas, de determinadas ações, que sempre provocam impacto em outras áreas não necessariamente submetidas ao nosso controle ou influência. Este aliás me parece ser o perigo menos evidente, pois o Brasil tem mantido com os países indicados (China, Índia, Rússia) um diálogo que se tem desdobrado em alguns casos – como nos satélites com os chineses, por exemplo – em resultados concretos em termos de parcerias tecnológicas e comerciais. Não há portanto novidade na recomendação.
Finalmente, o professor termina por um afirmação que me parece pelo menos duvidosa do ponto de vista de sua legitimidade democrática ou simplesmente de sua viabilidade política prática. Ele diz, por exemplo, que essa “empreitada, inseparável de nossa afirmação nacional”, seria “digna, pela multiplicidade de seus elementos e pela vastidão do terreno em que se terá de desdobrar, de um Bismarck.” Ora, invocar um notório autocrata, conhecido representante histórico daquilo que os sociólogos – como um Barrington Moore, por exemplo – chamam de “modernização conservadora”, ou de “via prussiana para o desenvolvimento” (com todas as suas implicações em termos de processo político), invocar essa personagem desencarnada do século XIX como suposta inspiradora da ação de homens públicos no Brasil do século XXI representa, para os democratas sinceros, um curioso sintoma de involução democrática.
Em todo caso, aguardemos novas propostas concretas do conhecido professor, de maneira a podermos também prosseguir nosso diálogo à distância com o mentor intelectual de uma das candidaturas presidenciais no Brasil. 

Paulo Roberto de Almeida é sociólogo.

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O Brasil e os Estados Unidos


Roberto Mangabeira Unger
Folha de São Paulo(7 de maio de 2002)

Quando o Brasil deixou de ter política exterior, ficou, no lugar dela, com a prática das negociações comerciais e com o medo dos Estados Unidos. Combinação desastrosa. O que convém não é medo: é estratégia de reposicionamento no mundo, que exprima e consolide projeto nacional de desenvolvimento.
A situação dos entendimentos em torno da Alca revela o paradoxo. Enquanto continuarmos a conduzir nossa relação com os Estados Unidos dentro dos limites de um mercantilismo pontual e despolitizado, todas as soluções serão ruins. Ruim render-nos ao tipo de acordo prefigurado pelas restrições que o Congresso americano impôs às negociações. E ruim ficarmos sozinhos, abraçados a vizinhos que não nos acompanharão numa fuga ao isolamento sul-americano.
A insistência em negociar duramente não bastará para resolver o problema; Estados não são empresas. A solução está em ação política e diplomática que, fundada em novo projeto brasileiro, comece a mudar as premissas da nossa relação com os Estados Unidos.
Primeiro: buscar aliados dentro dos Estados Unidos que ajudem a reorientar a agenda americana com respeito à Alca e ao Brasil. Maior abertura às nossas exportações depende de acertos com as empresas numerosas e com os muitos Estados americanos que exportam ou querem exportar para nós. Ou que possam colaborar para nossa capacitação tecnológica. Sem tais alianças não derrubaremos barreiras a nossas exportações nem aproveitaremos o potencial do relacionamento com a economia americana.
Segundo: trazer à tona a empatia imensa e suprimida que os americanos nutrem pelo Brasil. Entre esses dois países tão diferentes e tão parecidos, em que a fé no possível esbarra na muralha da desigualdade, há base para parceria que ultrapasse a esfera dos governos e os interesses do dinheiro. Que engaje a sociedade americana em nosso trabalho de redenção social. E que insista, como na União Européia, em vincular mais comércio com maior igualdade. Não podemos calar a voz do egoísmo comercial. Não precisamos deixar que ela fale sozinha.
Terceiro: compreender que só seremos levados a sério pelos Estados Unidos quando começarmos a atuar seriamente no mundo. A lógica da nossa situação nos exige aproximação econômica, tecnológica e política com os outros grandes países continentais periféricos, sobretudo a China, a Índia e a Rússia. É o Brasil hoje o país com melhores condições para construir cadeia de entendimentos que una esses países. Que crie contrapeso ao unilateralismo americano. E que amplie oportunidades para trajetórias alternativas de desenvolvimento.
O êxito do pequeno comercialismo depende da sorte da grande política: não realizaremos o primeiro desses três conjuntos de objetivos sem avançar também nos outros dois. Entre o segundo e o terceiro, porém, há tensão. Ao atuar como catalisadores de uma aproximação entre os países continentais em desenvolvimento, criando contrapeso ao poderio dos Estados Unidos, nós nos arriscamos a amedrontar o governo americano e a afastar a sociedade americana.
Daí a delicadeza dessa empreitada, inseparável de nossa afirmação nacional. E digna, pela multiplicidade de seus elementos e pela vastidão do terreno em que se terá de desdobrar, de um Bismarck. Na relação com os Estados Unidos, somos, de longe, os mais fracos. Teremos de ser, de longe, os mais clarividentes.

Mercosul, Alca e Argentina: opções do Brasil - exchange Samuel Pinheiro Guimaraes (2002)

Mais de um ano antes das eleições de 2002, o então diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, ou já depois de ingloriosamente defenestrado do IPRI, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, costumava me remeter seus artigos para Carta Maior, pedindo comentários. Como nunca fui de desprezar a produção intelectual de amigos, sempre me esforcei para apresentar minhas observações críticas aos seus textos. O que vai abaixo é um exemplo, entre vários outros, de exchange a propósito de questões relevantes de políticas econômicas e de política externa do Brasil.
Talvez ele seja um, entre vários outros, que me colocaram na mira do futuro SG-MRE do governo Lula, a partir de janeiro de 2003, quando fui vetado pela primeira vez para exercer um cargo na Secretaria de Estado (haveria outros vetos, aliás durante os 13,5 anos do regime lulopetista).
Transcrevo primeiro o artigo de Samuel Pinheiro Guimarães, depois os meus comentários.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 agosto 2018

A Argentina, o Brasil e o futuro do Mercosul 
Artigo para o site Carta Maior
www.agenciacartamaior.com.br <http://www.agenciacartamaior.com.br
Samuel Pinheiro Guimarães 
11 de janeiro de 2002.

1.         A violenta crise que ainda vive a Argentina não significa o fim do Mercosul e muito menos da Argentina. Esta crise já libertou a Argentina de um arcaico e engessante regime cambial e poderá ser a oportunidade para ela se desvencilhar da política de alinhamento político incondicional e do programa econômico concentrador e excludente patrocinado pelo FMI/EUA e assim reparar as ruínas sociais, econômicas e políticas, causadas por tal programa, executado por pró-cônsules nativos. É cada vez mais urgente repensar o Mercosul para além da reconstrução argentina, a partir de uma reflexão sobre as estratégias que possam retirá-lo do marasmo e do pântano de ressentimentos em que se tornou.

2.         A crise, que antes do acelerar da crise argentina, já atingia a Mercosul é apenas um reflexo das crises vividas nos países do Cone Sul. O lento crescimento da economia regional, a retração do comércio intrazonal, a profunda crise política e econômica na Argentina, a estagnação brasileira e os esforços frustrados de gerar superávits significativos, o desemprego e o deslocamento de setores industriais tendem a se agravar com a recessão sincrônica mundial e as consequências inibidoras dos atentados de setembro. 

3.         Mesmo antes da crise atual argentina, a situação econômica interna dos países do Mercosul levara à crise econômica do Mercosul que, por sua vez, fez ressuscitar e continua a estimular as rivalidades históricas de toda ordem. E coloca o projeto de integração regional sob grave risco, enfraquece o Cone Sul e sua capacidade de contribuir para organizar politicamente a periferia sul-americana diante da ação das estruturas hegemônicas de poder.

4.         Ao Brasil e à Argentina, todavia, continua a interessar a construção de um bloco econômico, político e militar que, fortalecendo sua estrutura econômica, permita a participação a médio prazo dos dois países no sistema internacional em grau de igualdade com Estados de semelhante potencial demográfico e territorial. Este objetivo somente será possível atingir abandonando a visão neoliberal do funcionamento da economia mundial e da economia nacional e restaurando a ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno, isto é, no pleno emprego dos fatores nacionais de produção e na geração e absorção de tecnologias adequadas à constelação de fatores dos dois países e do Cone Sul. 

5.         As estratégias que vêm sendo sugeridas para enfrentar a crise do Mercosul são de difícil execução em prazo adequado, algumas são inviáveis e outras podem até agravar a crise.

6.         A tentativa de organizar agências supranacionais e mecanismos efetivos de solução de controvérsias não resolve a crise do Mercosul e até a agrava. Apesar de a criação de agências supranacionais ou de mecanismos de solução de controvérsias serem, em teoria, aperfeiçoamentos institucionais, há uma insuperável dificuldade que as extraordinárias assimetrias territoriais, demográficas e econômicas entre os quatro Estados trazem para a definição democrática e equilibrada de sua representação nessas eventuais agências e mecanismos. E muito mais difícil se torna imaginar tais esquemas em situações de tão grave crise como esta que a Argentina ainda vive e continuará a viver durante algum tempo.

7.         A coordenação de políticas macroeconômicas através de consultas entre autoridades, ou de fixação de metas macroeconômicas comuns ou a criação de uma moeda única (que implica a organização de um Banco Central único) são medidas de longo prazo, inúteis até de imaginar quando até a coordenação interna, dentro de cada país, dessas políticas encontra sérias dificuldades. Na situação de grave crise externa e interna, imaginar que o abandono pela Argentina da paridade legal dólar/peso e a adoção de um sistema de câmbio duplo e até, eventualmente, flutuante, e como tal semelhante ao brasileiro viria a facilitar a adoção de uma moeda comum pelos países do Mercosul é simplesmente um profundo equívoco de avaliação e algo cujo grau de probabilidade é rigorosamente zero.

8.         As questões mais urgentes e decisivas no caso da Argentina, do Brasil e do Mercosul (a situação do Paraguai e do Uruguai são mera decorrência e incapazes de afetar o destino do bloco) são: o desequilíbrio estrutural das transações correntes; a dificuldade de expandir exportações para terceiros países; as tensões decorrentes dos deslocamentos econômicos de empresas e trabalhadores em um período de grave crise e a necessidade de promover o desenvolvimento industrial e abandonar a utopia retrógrada de criar uma sociedade moderna baseada em economias agroexportadoras.

9.         A situação argentina hoje leva a crer que a estratégia para sua superação exigirá uma profunda reestruturação do esquema do Mercosul. Portanto, surge a oportunidade para lançar as bases de um verdadeiro projeto de integração econômica e política que venha a ser o cerne da articulação de um polo sul-americano no sistema mundial de poder. É claro que a continuidade das negociações da ALCA faria malograr esta oportunidade. Com a ALCA, a América do Sul passará a fazer parte do território econômico norte americano e os Estados da região deixarão de poder fazer, de fato e de direito, políticas de aceleração do desenvolvimento, redução das disparidades internas e eliminação das vulnerabilidades externas.

10.       A evolução da situação argentina permite prever as seguintes etapas: 

a) a Argentina, em situação de moratória, não conseguirá atrair capitais de empréstimo ou investimentos diretos que permitam saldar os seus compromissos internacionais a curto e médio prazo; 
b) a atual política dos EUA /FMI não favorecerá mega operações de salvamento de investidores estrangeiros que, no caso da Argentina, são em número muito significativo europeus;
c) o Governo argentino terá de promover políticas internas de poupança e de investimento capazes de reduzir de forma significativa e rápida o desemprego e a percentagem da população abaixo da linha de pobreza, pois, caso contrário, o descontentamento popular se reacenderá; 
d) o Governo argentino terá de, nesse processo, proteger o seu mercado interno, promover investimentos de empresas e capitalistas argentinos e para tal terá de aumentar o grau de proteção da economia, aumentando suas tarifas;
e) o Governo argentino terá de fazer uma política comercial voltada para a geração de forte superávit comercial tendo em vista a impossibilidade de obter superávits significativos em outras rubricas do balanço de transações correntes (fretes, juros, turismo etc.);
f) esta política comercial terá de incluir necessariamente esquemas de subsídio às exportações e a elevação de tarifas que hoje são comuns com as do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, na forma de Tarifa Externa Comum, do Mercosul;
g) o principal destino das exportações argentinas é o Brasil e, portanto, em condições de moratória internacional, difícil será para a Argentina fazer um amplo superávit comercial total, sem ter um superávit significativo com o Brasil;
h) a política comercial da Argentina procurará favorecer a transformação do Mercosul de união aduaneira (aliás, em extremo imperfeita) em uma zona de livre comércio, o que permitiria à Argentina alterar suas tarifas para terceiros países sem ter de atender às conveniências econômicas e comerciais do Brasil (e do Paraguai e do Uruguai).
i) como resultado oportuno e favorável ao Brasil, a política comercial argentina não poderá continuar a favorecer a constituição da ALCA, pois a ALCA destruiria qualquer possibilidade de construir um superávit significativo, além de impedir, de direito, as políticas comercial, industrial e tecnológica indispensáveis à reconstrução argentina e ao fim da instabilidade social e política que continua latente e passível de erupção.

11.       Para o Brasil, a estratégia adequada para contribuir para a superação da crise argentina está longe de se tornar elegante mediador entre o Governo argentino e o Fundo Monetário e os Estados Unidos, mas sim a de ser um defensor de políticas de desenvolvimento argentinas e de sua soberania. O Brasil não deveria insistir na manutenção do Mercosul como união aduaneira, mas aproveitar a oportunidade para transformar o Mercosul em verdadeiro projeto de integração econômica e política. Este projeto deve ter como base realista a atual zona de livre comércio aperfeiçoada, com mecanismos de equilíbrio e uma coordenação de políticas tarifárias naqueles setores de interesse vital de longo prazo para o Brasil, tais como bens de capital e informática. A possibilidade de estabelecer mecanismos de crédito recíproco amplos é indispensável para preservar o comércio bilateral. A possibilidade de operações de resgate da dívida no pulverizado mercado de títulos não deve ser descartada nem sua importância minimizada. A criação de mecanismos de compensação e de fundos setoriais de reestruturação, de programas comuns, em especial em áreas de tecnologia avançada e de exportações, e de programas comuns de investimentos estratégicos completariam o quadro econômico do projeto. Na esfera política, a oportunidade é única para estabelecer as bases de uma coordenação estreita, profunda e verdadeira entre o Brasil e a Argentina que fortaleça a atuação dos dois países nas negociações internacionais de toda ordem e na construção de um polo político sul-americano, não-hegemônico, em que o Brasil abra seu mercado sem reciprocidade a seus vizinhos, que possa preservar a possibilidade de desenvolvimento e de afirmação política do continente, evitando sua absorção em esquemas liderados pelas Grandes Potências, como é a ALCA. A atitude atual do Brasil será definitiva para que essas oportunidades possam se concretizar.

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Mercosul, Alca e Argentina: opções do Brasil
Comentários a texto de Samuel Pinheiro Guimarães

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 8 fevereiro 2002

-----Original Message-----
From: Paulo Roberto de Almeida 
Sent: Friday, February 08, 2002 16:30
To: 'samuelpgn@uol.com.br'
Cc: 'palmeida@unb.br'
Subject: Argentina, Brasil e futuro do Mercosul

            Meu caro Samuel,

            Tenho por você a maior admiração e apreço, intelectualmente, moralmente, como cidadão, como diplomata, como pessoa humana. O que não quer dizer que devamos concordar em tudo. Mercosul é um terreno de minha predileção, no qual coincidimos talvez em 90 p/c das recomendações, mas persistem algumas divergências que talvez sejam mais táticas do que estratégicas. Vamos portanto ao seu texto que requereu toda a minha atenção.
            Comento topicamente, parágrafo por paragrafo, que já estão numerados, e depois venho ao geral.
1. Concordo em que a crise permitira a Argentina se desvencilhar da camisa de forca da lei de conversibilidade, mas não acredito ser realista esse preconizado distanciamento dos EUA e do FMI: eles simplesmente não podem se permitir tal independência, pois não têm os meios e são e continuarão totalmente dependentes dos aportes financeiros de Washington nos próximos meses e anos. Sua linguagem é aqui muito dura, mas creio que você tem atualmente a liberdade para empregar palavras fortes (pró-cônsules). Não creio que haverá alinhamento incondicional, mas a dependência, isso sim, continuará. Portanto, minha única observação seria essa. Não seria o caso de agregar uma frase do tipo?: "ainda que tal independência fosse recomendável, não seria realista esperar o distanciamento da Argentina dos Estados Unidos nos próximos meses e mesmo anos, em virtude da situação de extrema fragilidade financeira e de dependência efetiva em relação ao dinheiro de Washington."
            
2. Eu diria que a crise  antes de Cavallo não era propriamente do Mercosul, mas dos países membros: Brasil, Argentina tinham suas próprias crises. Ela so se tornou do Mercosul quando Cavallo começou a adotar medidas frontalmente contrarias ao espirito da UA. Concordo que havia muita fricção anteriormente, e mesmo desrespeito as normas, mas nada de muito grave. Cavallo representou uma contestação conceitual, filosófica aos fundamentos essenciais do Mercosul. Fiz esse tipo de analise num artiguinho inédito que não publiquei, pois não deixaram (quando o Lampreia aderiu às teses “cavallinas” em setembro passado). Depois incorporei num texto maior que mando em anexo.

3. Eu não acredito que a crise, dos países membros ou do Mercosul, tenha ressuscitado as rivalidades históricas de toda ordem como você diz. Isso simplesmente não existe. Não podemos tomar declarações esparsas de homens políticos como demonstrativo de um revivalde eras passadas. Por outro lado, falar em "organizar politicamente a periferia sul-americana" me revela uma atitude semi-imperial que condenamos no Big Brother e não acredito que ela beneficie o Brasil no subcontinente. Podemos até ser líderes, mas não deveríamos proclamar isso. Organizar periferia soa como arrogância imperial...

4. Abandonar a visão neoliberal pode até ser (ainda que eu ache que o neoliberalismo é mais proclamado do que praticado; eu fiz um texto sobre isso que mando agora), mas achar que a "ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno" vai resolver os problemas econômicos imediatos, isso para mim é muito otimismo. Um projeto de longo prazo ou pelo menos de efeitos delongados não pode servir de paliativo para os problemas do presente.

5. Concordo e se trata de simples constatação, mas o parágrafo não traz propostas concretas, ou seja não é substantivo, meramente indicativo de algo que não sabemos o que é.

6. Concordo totalmente, mas creio que a supranacionalidade nem está em causa no momento, entre os países membros, sendo um punhado de juristas acadêmicos que a defendem. O Uruguai e Paraguai defendem o tribunal permanente e eu concordaria com a ideia de uma corte arbitral "permanente" (com árbitros à disposição, por períodos rotativos de 3 a 4 anos) para julgar rapidamente os casos. Seria um pequeno grão de "supranacionalidade" numa estrutura que para mim deve permanecer intergovernamental pelo futuro previsível.

7. Concordo também, e nenhum dirigente realista está advogando a moeda única agora, mas creio que os similares de critérios de Maastricht (que já existem parcialmente, desde Florianópolis) podem começar a ser monitorados em escala nacional para a futura coordenação quadrilateral. Mas não morro pela União Monetária do Mercosul...

8. A constatação econômica é realista, mas não concordo em que uma forte economia agroexportadora seja uma utopia retrograda. A agricultura hoje é uma grande indústria, mais, ela combina serviços, software, biotecnologia, marketing, financiamento, tudo, e muito mais que fazem dela uma atividade essencialmente moderna e avançada. Concordo em que a elasticidade-renda (menor de um) não recomenda uma estratégia exportadora baseada em agro como NORMA GERAL, mas o Brasil tem chances únicas de aumentar rapidamente exportações nessa área substituindo outros fornecedores e deslocando competidores. Isso podemos fazer. Sou consciente do protecionismo, mas isso não pode demover-nos de explorar nossas vantagens comparativas que neste caso são totalmente dinâmicas....

9. A superação da crise argentina depende quase que inteiramente deles, não do Mercosul. Podemos ajudar, e eu seria favorável a que o Brasil estendesse uma linha de credito de 1 bi para mover os negócios novamente. Mas o essencial tem de ser feito por eles. Será duro, muito duro, mas o papel do Mercosul tem de ser outro, situado mais no terreno politico-diplomático (e estratégico-hemisférico) do que no campo econômico financeiro.

10. Concordo com algumas ideias, mas sou cético em relação à recomendação f), de subsidio as exportações e de elevação de tarifas (de quem, dos países membros, como hoje, ou da TEC?). Não sei se eles insistirão, como fazia Cavallo, com h), isto é, transformar o Mercosul de UA em ZLC. Eles precisam do Brasil e farão o que nós queremos e portanto não posso concordar também com o que vem em 11.

11. Discordo radicalmente, fundamentalmente da ideia de abandonar a UA, e isso não por motivos estritamente econômicos, mas por razoes de processo diplomático/negociatório nos próximos anos. Sou favorável a manter a UA pelo menos ate 2005. Sou favorável a iniciar desde já uma reflexão com os argentinos para mudar o Mercosul, quem sabe até permitindo a saída da UA e a volta a uma ZLC, a partir de uma conferencia diplomática no final de 2004 (que nós coordenaríamos), como está indicado (mas ainda não desenvolvido) no meu trabalho 811 que segue anexo. Nos simplesmente não podemos ficar sem a UA agora, pois isto significaria uma ordem dispersa no Mercosul e a fraqueza frente ao Império (além de impossibilitar negociações com a UE). CONCORDO TOTALMENTE em que a gente abra o nosso mercado sem reciprocidade (o que a UA do Mercosul atrapalha um pouco reconheço), pois esta é a garantia da Alcsa, que precisaríamos ter (mas sou cético porque a CAN e' uma bagunça monumental, e vão ceder ao Império no primeiro aceno).
            Formalmente esse paragrafo esta muito longo e deveria ser dividido nas questões financeiras, comerciais, de politicas setoriais, diplomacia etc.

            Meu caro Samuel, tenho algumas ideias a respeito do Mercosul, mas seria difícil expô-las agora. Ainda não coloquei no papel essas ideias, inclusive porque não me deixariam publicar. Mas gostaria de debater com você. 
            Estou indo ao Brasil em março, segundo o roteiro anexo. Podemos sentar e conversar?
            Eu até coloquei, tentativamente, uma palestra na FGV, Palestra:
"Alca, OMC e negociações comerciais: desafios para o Brasil" ??, mas estava justamente querendo falar contigo. 
            Abração,
Paulo Roberto de Almeida
Minister Counselor
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O FMI como bode expiatorio de politicas equivocadas - Paulo Roberto de Almeida (2002)

O FMI como bode expiatório de políticas equivocadas

Paulo Roberto de Almeida (2002)

A proposito do comentário do prof. Walter Antonio Bazzo ao artigo semanal do secretario geral da Unctad (Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento), Rubens Ricupero, eu teria a corrigir um equívoco comum em muitos observadores brasileiros, que tendem a considerar o problema argentino como decorrente de politicas “impostas pelo FMI”.
O prof. Bazzo fala igualmente das “algemas impostas pelo FMI”, quando o que causou o problema argentino foram algemas auto-impostas pelos próprios argentinos, como foi o regime de conversibilidade e de paridade fixa, adotado em 1991.
Como ele não deveria desconhecer, o sistema de cambio estável, criado em Bretton Woods, veio a termo entre 1971 e 1973, quando o FMI sancionou o regime de flutuação. Desde então o regime “normal” de câmbio é a flutuação, sendo este o sistema adotado por provavelmente 95 por cento dos 190 membros do FMI. 
Vários países membros adotam, é verdade, um sistema de flutuação suja, isto é, com intervenções pontuais das autoridades monetárias em caso de desajustes cambiais percebidos como erráticos, mas não resta duvida que a flutuação cambial é percebida como o regime “normal” pelo FMI. 
O professor não deveria desconhecer, tampouco, que uma das primeiras recomendações do FMI, quando se negocia um programa de ajuste e um acordo stand-by, é justamente a desvalorização cambial, supostamente necessária para corrigir desequilíbrios externos e adequar a economia do país em questão a novos patamares de competitividade. 
Noventa e nove por cento dos economistas recomendam a mesma solução, como não deixaram de reclamar dezenas de economistas durante a fase de desvalorização do real.
A Argentina adotou o câmbio fixo por sua própria conta e risco, e não sob recomendação ou imposição do FMI, e teimou em manter esse regime a despeito de pressões do FMI pela desvalorização, algo que também ocorreu na negociação do pacote brasileiro de 1998.
Como então acusar o FMI de impor uma tal política? Só pode ser a necessidade de um bode expiatório, pois é mais fácil acusar alguma entidade externa por nossas próprias mazelas (sobretudo em se tratando do FMI), do que reconhecer as deficiências de política econômica das autoridades nacionais.

Publicada na edição de 11 de janeiro de 2002, do Jornal da Ciência, JC E-Mail, nº 1951, “17. Diplomata brasileiro comenta observações de leitor sobre o artigo de Rubens Ricupero” 

“Mensagem de Paulo Roberto de Almeida, diplomata e professor, ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Washington, EUA (site: www.pralmeida.org)”

Existem diferenças entre esquerda e direita em materia econômica? - Antonio Delfim Netto e Paulo Roberto de Almeida (2002)

Um debate indireto, com base nas seguintes afirmações do economista Antonio Delfim Netto, que respondi numa lista de esquerda, em 2002, mas que não tinha jamais sido publicada em qualquer veículo digital ou impresso.
Primeiro, as afirmações selecionadas do economista paulista, o czar econômico durante a ditadura militar, depois aliado do lulopetismo no período posterior.
Depois os meus comentários tópicos.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 16/08/2018

-----Mensagem original-----
De: jubileu brasil 
Enviada em: quarta-feira, 28 de agosto de 2002 14:19
Assunto: ACREDITE SE QUIZER, já que não há mais oposiçao de esquerda !!

SITUAÇAO DA POLITICA EOONOMICA BRASILEIRA.

Leia com atenção as afirmações abaixo..

1. "Graças a politica economica perversa desses oito anos, entre 1995 e 2001, o Brasil teve um deficit nas transações correntes externas de 200 bilhões.  Ou seja enviamos pro exterior a mais do que recebemos, nada menos do 200 bilhões de dólares.  O Brasil se transformou em exportador de capital"

2. "No setor privado, um grande número de empresas, antes brasileiras, passou para o controle de estrangeiros"

3. "Em setembro de 1998, o Brasil quebrou.  No entanto o Presidente Clinton se interessou pelas eleições brasileiras. Pressionou os governos ingles, alemão e Japones, e aí o Brasil fez um acordo com o FMI e recebeu um adicional de 41 bilhões de dólares..."

4. "Em troca, o FMI exigiu o controle fiscal, que não existia, e foi então aprovada a lei de responsabilidade fiscal."

5. "O resultado dessa política desastrosa é que a dívida interna publica passou de  150 bilhões de reais para 750 bilhões de reais.  Representava 30% do PIB, hoje representa 60% do PIB.  E para servir a esta dívida o governo gasta mais de 100 bilhões de reais por ano! ""

6. "Nós acumulamos um passivo externo imenso. Ou seja os estrangerios vem aqui e compram nossas empresas.  Nesses oito anos, perdemos 400 bilhões de dolares em patrimonio de nossas empresas compradas pelo capital estrangeiro."

7. "O serviço da divida externa exige o envio de 30 bilhões de dolares por ano, ao exterior.  E somados a outras remessas de lucros, royalties e taxas de serviços, são mais 20 bilhões.  Ou seja o Brasil está enviando pro exterior 50 bilhões de dolares por ano ou  um bilhão por semana"

8" Não há pois  'conspiração internacional ' contra o Brasil, ou preocupações com eleições.  Infelizmente os dados objetivos indicam a extrema vulnerabilidade externa da economia brasileira. 

9. "A ONU divulgou recentemente os ultimos dados de indicadores sociais dos países.  Muitos países melhoraram de situaçao.  A posição do Brasil, apesar de ser a nona economia do mundo, continua na modesta posição de 73 colocado".

10. "O Mercado sabe de que a situação pouco tem a ver com as eleições. O fato concreto é de que seja qual for o candidato que vença as eleições, nosso espaço de manobras diante dessa enrascada é minimo."

11. " Apesar do tamanho da crise, os pronunciamentos dos candidatos a Presidente, se baseiam apenas a ajustar-se às aspirações captadas por pesquisas qualitativas de opinião da classe média, organizadas por seus marqueteiros." 

Quem voce pode imaginar que escreveu essas análises?

Nao foi nenhum economista de esquerda.

Está registrado num amplo e completo artigo, da revista Carta capital, de 7 de agosto, das paginas 36-39 e assinada por  ANTONIO DELFIM NETO. Confira.

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Questões sobre a situação econômica brasileira
Teremos de chegar à conclusão da irrelevância das posições da esquerda e da direita para analisar a situação ecônomica brasileira?

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 11 setembro. 2002. 

A circulação de um texto do Deputado e ex-ministro econômico Antonio Delfim Neto sobre a situação da política econômica brasileira traz a questão de saber se não há mais oposição de esquerda às políticas governamentais no Brasil, na medida em que o PT parece aproximar-se, perigosamente para alguns, de um certo consenso “liberal” no que se refere às orientações macroeconômicas que pretenderia imprimir à política econômica caso fosse conduzido ao governo nas eleições de outubro.
Não creio que não haja mais oposição de esquerda, mas a questão que parece se colocar é a da competência técnica da crítica que se pode fazer às orientações econômicas do governo atual. Se a esquerda não ocupa esse terreno com críticas fundamentdas, será inevitável que críticos de direita o farão, como é o caso do Deputado Delfim Neto, crítico contumaz das orientações do governo desde o início, praticamente, do plano Real, sobretudo no campo das transações externas e da política cambial.
Podemos, entretanto, considerar suas críticas competentes ou fundamentadas? E o principal elemento a destacar seria o fato de saber se elas são de esquerda ou de direita ou se elas apresentam, em seus méritos próprios, consistência intrínseca e racionalidade instrumental? Com base no critério da adequação dessas críticas à realidade da situação econômica brasileira atual, permito-me fazer o seguintes comentários aos pontos destacados na transcrição abaixo.


SITUAÇAO DA POLITICA ECONOMICA BRASILEIRA
Antonio Delfim Deto (ADN)
Comentários de Paulo Roberto de Almeida (PRA)

ADN: 1. "Graças a politica econômica perversa desses oito anos, entre 1995 e 2001, o Brasil teve um deficit nas transaçoes correntes externas de 200 bilhões. Ou seja enviamos pro exterior a mais do que recebemos, nada menos do 200 bilhões de dólares.  O Brasil se transformou em exportador de capital"

PRA: Importação ou exportação de capitais não são determinados apenas por uma política econômica deliberada, pois a inversão dos fluxos pode se dar em função da própria situação econômica externa. O ex-ministro Delfim Neto sabe muito bem disso, pois que presidiu a umdos mais intensos processos de elevação da dívida pública externa do Brasil, nas fases ascendente e declinante dos governos militares, quando a dívida externa deixou o patamer de 4 bilhões de dólares para 12 bilhões (no primeiro choque do petróleo) e para 65 bilhões, ao final do governo militar. Nessa fase, quando ele era precisamente ministro do planejamento (encarregado das relações econômicas externas) do gov. Figueiredo, o Brasil se tornou um “exportador de capitais”, logo depois da moratória mexicana e da inadimplência da maior parte dos países da América Latina, por motivo da elevação brutal da taxa de juros determinada pelo Federal Reserve ao início da administração Reagan. Delfim Neto sabe do que está falando, pois foi ele quem presidiu a um dos mais intensos processos de endividamento público, aceitando dinheiro nos euromercados a taxas de juros flutuantes.
O que ele não diz é que o déficit de 200 bilhões foi quase que inteiramente financiado por investimentos diretos, por receitas de privatização e por novos contratos de empréstimos, desta vez sob responsabilidade do setor privado, pois que o setor público agora detém menos de 40 % da dívida total. Pode-se lamentar a “exportação de capitais”, mas como na época dele, também ocorreu nos anos recentes um retração dos mercados internacionais de capitais, daí o apelo às emissões ou ao financiamento do FMI.


ADN:2. "No setor privado, um grande número de empresas, antes brasileiras, passou para o controle de estrangeiros"

PRA: Desde os anos 50, praticamente, que se reclama da “desnacionalização” da economia brasileira, com instalação de empresas estrangeiras via novos investimentos ou compra de companhias nacionais. Naquele momento se dava um salto industrializador, com a participação (e a dominação) do capital estrangeiro em vários setores industriais. Depois tivemos um processo de fechamento da economia, de protecionismo e de acúmulo de várias ineficiências econômicas. Nos anos 90 voltamos a ter uma nova fase de abertura econômica, com instalação de novas empresas estrangeiras, pelas duas formas acima citadas. Isso não deve impedir que o capital nacional também se fortaleça, como ocorre de fato, com grandes empresas brasileiras intensificando suas operações no exterior, inclusive via aquisição de companhias nacionais em vários países da América Latina. Estaria assim o Brasil convertendo-se naquilo que Hobson, Lênin, Rosa Luxemburgo e o próprio Hilferding chamaram de “país imperialista”, isto é, exportador de capitais? É possível, mas isso vai demorar um pouco mais ainda. O fato é que  a venda de empresas nacionais não constitui obstáculo intransponível ao fortalecimento da economia brasileira e à disseminação de “empresas multinacionais” brasileiras, muito pelo contrário, ambos os processos de reforçam e se complementam, no que economistas chamam de “interdependência econômica”. 
A afirmação do Delfim Neto é um pouco impressionista, pois não vem apoiada em dados exatos sobre o que ele considera “desnacionalização” da economia brasileira.

ADN: 3. "Em setembro de 1998, o Brasil quebrou. No entanto o Presidente Clinton se interessou pelas eleições brasileiras. Pressionou os governos ingles, alemão e Japones, e aí o Brasil fez um acordo com o FMI e recebeu um adicional de 41 bilhões de dólares..."

PRA: O Brasil NÃO quebrou, justamente. De todas as crises financeiras ocorridas nos anos 90 e no início do presente século, o Brasil escapou incólume, porque justamente conseguiu fechar pacotes de sustentação financeira com entidades multilaterais e governos estrangeiros, que permitiram prevenir crises (default efetivo, moratória eventual, hipotética cessação dos pagamentos externos, que teriam conduzido a novo fechamento dos mercados externos por vários anos), antes que essas crises efetivamente ocorressem. Todos os demais pacotes, inclusive o do México em 94-95, o da Coréia e vários outros, foram post-factum, para remediar crises já abertas, enquanto o Brasil teve a chance de atuar ex-ante, impedindo que elas ocorressem.
O Delfim Neto deve saber disso, pois em sua primeira época como “czar” econômico, concluiu vários acordos com o FMI apenas para dar aval à situação econômica brasileira, mas nunca retirou os montantes que o Fundo colocava à disposição do governo brasileiro, que servia assim de aval para a contratação de empréstimos privados (comerciais) no mercado de eurodólares (para construir Itaipu, por exemplo, lembram-se?), pagando juros muito maiores (e flutuantes) do que aqueles previstos nos acordos normais, stand-by, com o FMI. Já na sua segunda época, também fez vários acordos com o FMI, apenas para ver renovadas linhas de crédito do setor privado (os banqueiros de Wall Stret), mas nunca cumpriu nenhuma das cartas compromisso que assumiu de maneira algo irresponsável com o FMI.
Quanto aos números, não é correto que o Brasil obteve 41,5 bilhões com o FMI em 1998. Esse foi o montante total do pacote concluído com vários parceiros, envolvendo dinheiro do BIRD, do BID e de países membros do BIS, montante do qual o Brasil chegou a retirar primeiro a metade (repagou 10,5 bi em abril de 2000), e depois voltou a tirar mais 10 bi, com o agravamento da crise argentina. Do FMI mesmo, foram apenas 18 bilhões, inteiramente pagos atualmente.
Um segundo pacote preventivo foi feito em meados de 2001, por 15 bilhões, desta vez apenas FMI, já quando se prenunciava a deterioração da situação argentina. Um novo pacote, de valor inédito (na história do FMI) de 30 bilhões acaba de ser concluído, com validade até o final de 2003 (se o novo governo desejar, é claro; também pode denunciar e não usar o dinheiro à disposição). Por todos esses empréstimos e operações, o Brasil paga uma taxa de juros muito inferior (2,5 a 3,5% para os créditos stand-by, e 4% para a Suplemental Reserve Facility) à que o então ministro Delfim Neto pagava por escolher fazer operações com a banca privada internacional.
Uma característica das operações com o FMI é que, na verdade, não existe dinheiro algum sendo transferido, pois tudo é contabilizado em DES (Direitos Especiais de Saque), através de contas oficiais abertas em nome do governo brasileiro, que liquida suas obrigações por meios puramente contábeis. No caso dos empréstimos comerciais, no entanto, preferidos pelo ex-ministro Delfim Neto, havia efetiva disponibilização de dólares sonantes… 

ADN: 4. "Em troca, o FMI exigiu o controle fiscal, que não existia, e foi então aprovada a lei de responsabilidade fiscal."

PRA: Na verdade, quando a crise financeira asiática agravou-se, o Brasil fez um simulacro de “ajuste fiscal”, mal recebido pelo chamado mercado. Foi apenas depois, no primeiro pacote de sustentação financeira, que o Brasil decidiu-se por fazer um ajuste consequente, aliás pela primeira vez no Plano Real, que foi um plano de estabilização excepcionalmente bem sucedido, sem recessão e sem cortes drásticos nas despesas do Estado (à custa de aumento de impostos, entretanto, pois que a carga fiscal passou de 24 a 33% do PIB). 
A Lei de Responsabilidade Fiscal corresponde muito mais ao interesse brasileiro do que a uma exigência do FMI, embora este estabeleça indicadores de superavit primário para a conclusão dos pacotes de assistência financeira. Na época do Delfim ministro, quando não existia uma tal lei, ele saia pelo mundo alegremente contratando empréstimos bancários de forma irresponsável, a taxas de juros flutuantes, para continuar financiando os projetos grandiosos do “Brasil grande potência” dos militares, o que nos levou às dificuldades que se conhece. Delfim preferia “crescer” do que se ajustar às dificuldades naturais da economia internacional (dois choques do petróleo) e aos limites da economia brasileira. Diga-se também que ele mandava contrair empréstimos em grandes montantes no BID e no BIRD, sem quaisquer projetos reais e sem qualquer correspondência orçamentária nacional, apenas para sustentar a mania de crescimento a todo custo dos militares. Deu no que deu, e voces conhecem a história dos anos 80 e início dos anos 90, quando o Brasil teve estancadas as possibilidades de financiamento internacional: essa foi a herança de Delfim dos anos 67-74 e novamente 79-85…


ADN: 5. "O resultado dessa política desastrosa é que a dívida interna publica passou de  150 bilhões de reais para 750 bilhões de reais.  Representava 30% do PIB, hoje representa 60% do PIB.  E para servir a esta dívida o governo gasta mais de 100 bilhões de reais por ano! ""

PRA: A dívida pública interna não cresceu por causa dessas crises externas; ela cresceu devido ao tremendo descontrole orçamentário e aos esqueletos deixados pelos governos militares e pelos diversos planos de estabilização das fases Sarney e Collor. O que o governo fez foi retirar esses esqueletos do armário: houve o PROER (Delfim preferiria talvez uma crise bancária, que em outros países consumiu 10 a 15% do PIB?), houve a correção do financiamento habitacional, houve os bancos estaduais utilizados criminosamente pelos governadores, e houve sobretudo o crescimento extraordinário das dívidas dos estados e municípios, todas renegociadas a condições excepcionais (6% de juros) pela União. Esta assumiu os encargos de todos os desastres herdados nos anos 90. A “política desastrosa” representa o resgate de políticas desastrosas deixadas pendentes pelos governos anteriores, e o Delfim sabe do que está falando, pois que deixou vários problemas, primeiro para o Simonsen, nos anos 70, depois para os seus sucessores nos anos 85-90s, pois sua receita era: vamos continuar crescendo, a futura geração que pague as contas. Está aí: a conta chegou, e estamos pagando hoje, pois não seria mais possível continuar ignorando os problemas existentes.

ADN: 6. "Nós acumulamos um passivo externo imenso. Ou seja os estrangeiros vem aqui e compram nossas empresas. Nesses oito anos, perdemos 400 bilhões de dolares em patrimonio de nossas empresas compradas pelo capital estrangeiro."

PRA: Compra de empresas nacionais por estrangeiros serve justamente para aumentar, não para diminuir, o patrimônio à disposição de residentes nacionais e o passivo total diminui, pois aumentam as reservas. Se a chamada “burguesia nacional” é criminosa a ponto de exportar ilegalmente suas rendas de operações, isso é outra questão, aliás tradicional, pois que a fuga de capitais (foi assim no México em 94) é sempre feita pelos nacionais, e os estrangeiros sempre o fazem de forma atrasada. Esse patrimônio que ele diz “perdido”, na verdade poderia estar sendo utilizado para outros negócios no Brasil, mas se os detentores preferem comprar apartamentos em Miami, isso é outra questão, que está ligada ao grau de confiança que a gestão econômica brasileira inspira nos nacionais (e nos estrangeiros), que podem assim escolher entre fazer negócios aqui ou exportar seus capitais. Controles de capitais são sempre ineficientes, como Delfim deve saber, pois é justamente a ameaça de controles que incita (primeiro os nacionais, depois os estrangeiros) a retirar preventivamente e clandestinamente seus capitais. 


ADN: 7. "O serviço da divida externa exige o envio de 30 bilhões de dolares por ano, ao exterior. E somados a outras remessas de lucros, royalties e taxas de serviços, são mais 20 bilhões. Ou seja o Brasil está enviando pro exterior 50 bilhões de dolares por ano ou  um bilhão por semana"

PRA: Todos concordamos em que o Brasil precisa reduzir sua fragilidade financeira externa, tradicional desde o Império, pois que preferimos viver de poupança estrangeira, em lugar de seguir a recomendação do saudoso Barbosa Lima Sobrinho, que dizia que “capital se faz em casa” (começando pela educação das crianças, não por usinas nucleares, como na época militar). Quem mais aumentou a dívida PÚBLICA do Brasil foi justamente o Delfim Neto. No período recente, ela aumentou também (não de forma extraordinária em relação ao PIB real), mas sua maior parte é detida pelas empresas, que preferem se abastecer no mercado externo em virtude do diferencial na taxa de juros, ela mesma uma consequência da despoupança estatal, que o Delfim, nas duas vezes em que foi ministro, estimulou tremendamente. 

ADN: 8. "Não há pois 'conspiração internacional' contra o Brasil, ou preocupações com eleições. Infelizmente os dados objetivos indicam a extrema vulnerabilidade externa da economia brasileira. 

PRA: Efetivamente: não há conspiração internacional contra o Brasil: o que há é fragilidade financeira (criada pela despoupança geral e pelo ambiente internacional) com agitação eleitoral, quer ou não queira o Delfim Neto. As indefinições de política econômica dos dois principais candidatos de oposição aumentaram essa sensação de vulnerabilidade, mas o governo também fez “terrorismo econômico”, agitando o espectro da Argentina, e recebeu o preço logo depois. Essa vulnerabilidade é entretanto menor do que parece, pois que, como se disse, a dívida externa é sobretudo privada, e as empresas precisam renegociar seus créditos ou encontrar reais/dólares para pagá-los. O governo fez a sua parte garantindo os pacotes de assistência financeira e reduzindo o piso das reservas, para sinalizar que, justamente, não faltariam dólares para esse tipo de encargo.

ADN: 9. "A ONU divulgou recentemente os ultimos dados de indicadores sociais dos países.  Muitos países melhoraram de situaçao.  A posição do Brasil, apesar de ser a nona economia do mundo, continua na modesta posição de 73 colocado".

PRA: O Brasil recolhe hoje os resultados dos fraquíssimos investimos sociais feitos durante toda a era militar e início da democratização. O Delfim deveria reconhecer que a maior parte da população brasileira apresenta baixíssimos níveis de capacitação técnica e educacional em parte como resultado das escolhas de projetos grandiosos de sua época. Se torraram bilhões de dólares em investimentos do “Brasil grande potência”, com escasso retorno social. Como diria o Nelson Rodrigues: “subdesenvolvimento não se improvisa; é uma obra de séculos”. Pois é, ele também tem responsabilidade pelo que afirma.

ADN: 10. "O Mercado sabe de que a situação pouco tem a ver com as eleições. O fato concreto é de que seja qual for o candidato que vença as eleições, nosso espaço de manobras diante dessa enrascada é minimo."

PRA: Totalmente correto. Nosso espaço de manobras é muito reduzido porque simplesmente nunca fizemos o dever de casa direito. Quando se iniciou o Plano Real, saindo de uma inflação de 4 dígitos, qual é o ajuste fiscal que se fez? Nenhum! Aumentamos impostos, para continuar financiando a máquina pública. Depois o governo precisou reconhecer os esqueletos do armário como disse, sobretudo sob a forma das dívidas estaduais e municipais (alguém botou o Maluf, o Quércia, o Fleury, na cadeia, pelo que eles construiram como endividamento?).
Se o próximo governo, qualquer que seja ele, quiser sair desse aperto: só tem uma solução: aumentar ainda mais o superavit primário, para deixar de produzir despoupança estatal e assim pagar juros menores e poder diminuir o peso da dívida pública no orçamento do Estado. 

ADN: 11. " Apesar do tamanho da crise, os pronunciamentos dos candidatos a Presidente, se baseiam apenas a ajustar-se às aspirações captadas por pesquisas qualitativas de opinião da classe média, organizadas por seus marqueteiros." 

PRA: Isso é normal em qualquer processo eleitoral: todo mundo promete muito para ganhar apoio, aliás de forma irresponsável, pois sabem (ou deveriam saber) que o orçamento público não comporta nem a metade do que estão prometendo. Mas, isso faz parte do jogo eleitoral. 
Dia 1º de janeiro, quando sentar na cadeira presidencial, o atual candidato vencedor, tem duas escolhas: produzir mais inflação para pagar a dívida pública (com isso prejudicando a vida dos mais pobres, e eventualmente produzindo mais fuga de capitais, e o fim dos pacotes de assistência financeira com o FMI); ou então tentar equacionar o problema, diminuindo a despoupança estatal, e portanto aumentando ainda mais os comprometimentos de superavit primário, o que seria uma escolha, digamos assim, mais responsável.
Ele pode também dar calote na dívida interna, o que é sempre possível, mas todos sabemos as conseqüências desse tipo de atitude: até hoje estamos pagandos pelos calotes dos anos 80 e início dos 90. 
Resumindo: não há receitas mágicas em economia, e tudo o que eu comentei não tem a menor cor ideológica ou preferência política. Limitei-me a expor os números e os problemas, cabendo aos dirigentes políticos fazerem as escolhas difíceis. O orçamento e as receitas não são de esquerda ou de direita, eles estão aí para serem administrados de maneira responsável. A esqueda ostenta, como é sabido preocupações “sociais”, mas por uma curiosa compulsão social neste país, ela partilha com a direita uma preferência por “políticas ativas”, nos campos industrial, agrícola, comercial, tecnológico. Como sempre, essas políticas setoriais acabam dando mais dinheiro (via créditos ou isenções fiscais) a quem já tem dinheiro. Que tal se a esquerda agora parasse de privilegiar a burguesia nacional e fizesse uma opção preferncial pelos pobres, os eternos esquecidos nas políticas públicas?
As escolhas estão abertas…

Paulo Roberto de Almeida
11 de setembro de 2002

Alca e Alcantara: questoes mal postas - Jose Monserrat e Paulo Roberto de Almeida (2002)

Alca e Alcântara

José Monserrat Filho
JC e-mail 2112, de 04 de Setembro de 2002.
Quarta-Feira, 04 de setembro de 2002
          
A propósito do plebiscito nacional informal promovido por várias entidades da sociedade civil, creio estar havendo enorme confusão. Alca é uma coisa. Alcântara é outra
Alca é, de fato, uma questão de soberania. Alcântara é uma questão de mercado. Se aceitarmos entrar na Alca pela receita dos EUA, seguramente vamos ampliar a um grau quase incalculável nossa dependência e comprometer nosso direito soberano à autodeterminacão.
Alcântara é excelente campo de lançamentos espaciais. Tão boa ou até melhor que a base de Kourou, a 'Porta da Europa para o Espaço', que fica na Guiana Francesa, ao norte do Brasil. Alcântara está a menos de 3 graus ao sul da Linha do Equador. De lá, os lançamentos, ajudados pela própria rotação da Terra, são sempre mais econômicos.
É um recurso natural precioso que temos para explorar em plena era espacial, quando um monte de coisas vitais - telecomunicações, observação da Terra, meteorologia, sistemas de localização, alerta contra desastres naturais etc - se faz através de satélites que precisam ser lançados a preços cada vez menores.
Já gastamos mais de US$ 400 milhões para transformar Alcântara num centro de lançamentos competivivos. Mas, apesar de local privilegiado para essa atividade hoje milionária, ainda não faturamos um único centavo.
Para fazer Alcântara faturar, o Brasil saiu em busca de sócios e clientes. O primeiro consórcio pensado, com a empresa FiatAvio, da Itália, e duas empresas ucranianas, parecia ótimo. O primeiro cliente à vista foi a Motorola, dos EUA. Mas os EUA disseram não. Com o Brasil, não - comunicaram ao governo italiano. Então, o Brasil sentiu na pele que sem um acordo com os EUA não teria como explorar Alcântara.
Decidiu fazer este acordo. Os EUA de novo disseram não. E mais de uma vez. O Brasil resolveu tentar diretamente a Casa Branca. O presidente FHC falou com o presidente Clinton. Abriu-se uma brecha. Os dois países negociariam um acordo de salvaguardas tecnológicas.
Primeiro obstáculo: os EUA queriam que o Brasil abrisse mão do foguete VLS, nosso projetado lançador de satélites. Foi a vez do Brasil dizer não.
Os EUA, então, responderam: certo, mas o dinheiro das nossas empresas não pode ir para o VLS, pois temos uma política de não-proliferação de tecnologia de mísseis e o VLS, afinal de contas, pode virar um míssil.
O Brasil achou que valia a pena aceitar essa condição, pois a possibilidade de ter acesso às empresas norte-americanas, que representam mais de 80% do mercado de lançamentos, era muito vantajosa. E o acordo foi feito.
Acordo duro, pois os EUA estavam em posição negociadora mais favorável - nós precisávamos do acordo muito mais do que eles. Mas, quem ler o acordo com todo o cuidado, verá que, apesar das concessões que tivemos que fazer, o Brasil mantém o controle de todas as operações em Alcântara.
Para cada lançamento terá que ser feito um contrato entre a empresa norte-americana interessada e a empresa brasileira representante de Alcântara. A Agência Espacial Brasileira (AEB), a seguir, emitirá uma licença de lançamento, se todos os requisitos exigidos pela lei brasileira forem cumpridos. E haverá ainda um documento da AEB autorizando, por fim, o lançamento.
O Brasil estará vendendo os serviços e benefícios de Alcântara para empresas privadas. Não há cessão de território ou ocupação de área por estrangeiros. Alcântara nunca será um enclave, deixará de ser do Brasil e operada por brasileiros.
O acordo de salvaguardas tecnológicas com os EUA prevê, sim, áreas restritas, onde brasileiro só entra se convidado. As áreas restritas existem em todo o lugar do mundo onde se lida com tecnologias estrangeiras em torno das quais se estabelece vigilância rigorosa para que não sejam copiadas ilegalmente.
Mas as áreas restritas duram apenas enquanto se efetua a operação contratada e, em Alcântara, quem demarca as áreas restritas são as autoridades brasileiras.
A tecnologia estrangeira também não pode ser examinada quando chega, na Alfândega. Os franceses não examinam a alma dos satélites enviados à Kourou para serem lançados. Isso ocorre em qualquer base do mundo.
O cliente faz uma declaração sobre o conteúdo de sua carga, e se ele estiver mentindo, ele e seu país terão que arcar com as responsabilidades decorrentes. É assim que esse negócio funciona em toda parte.
Desse modo, a duras penas, o Brasil logrou concluir um acordo que não é a sétima maravilha do mundo, mas pode nos abrir uma porta no mercado mundial de lançamentos comerciais, onde não é qualquer um que entra e ao qual nós temos um ótimo serviço a oferecer.
Essa chance está em nossas mãos. Se recuarmos, Alcântara seguirá dando despesas, sem ganhar nada, entregue às moscas. É isso que queremos? E agora me digam: o que isso tem a ver com a Alca, um acordo que como se articula hoje visa apenas a nossa subordinação?
Alcântara é exatamente o oposto: é um meio para ingressarmos, com um serviço nosso, numa área de grandes negócios internacionais. 

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 Alca e Alcântara : questões mal postas

Comentários de Paulo Roberto de Almeida
a artigo de José Monserrat
Publicado no Jornal da Ciência e-mail
(nº 2114, 6.09.02).
Relação de Publicados nº 350.

Meus cumprimentos ao editor José Monserrat por seu brilhante artigo em torno da confusão que resolveram montar em torno do pretenso plebiscito sobre a Alca, na qual se inseriu uma questão, aparentemente extemporânea e totalmente estranha, sobre o uso da base de Alcântara. Digo aparentemente porque a intenção dos organizadores do plebiscito não é consultar a população, mas tão simplesmente obter uma condenação tanto da Alca quanto do acordo de salvaguardas tecnologicas para o uso de Alcântara, o que é demonstrado pela forma preconcebida como foram formuladas as questões. O que me leva a apostar com qualquer representante da CNBB o que desejar se, a exemplo do plebiscito de cartas marcadas de dois anos atrás sobre as dívidas externa e interna, este também não recolher uma adesão maciça ao NÃO, provavelmente na faixa de 95 a 99% (unanimidade ao velho estilo albanês de fazer votações).
Monserrat demonstra como o Brasil está perdendo com a não aprovação desse acordo de Alcântara, o que nos deixa duvidando sobre a adequação ao interesse nacional das intenções dos organizadores do plebiscito, do qual resolveu dissociar-se em boa hora o PT. Não precem se dar eles conta de que a base de Alcântara deve servir para fins de abertura de uma noa área de exploração das possibilidades industriais, de serviços e sobretudo de progressiva capacitação tecnológica do País em domínio até aqui restrito a uns poucos países habilitados nesse jogo restrito que constitui o uso de vetores e o domínio das técnicas de lançamento. Como se pode esperar que o País se capacite nessa area?: criando uma “Lançobras”para capacitá-lo unicamente com o apoio do dinheiro público, que sabemos inexistente ou irrisório? Qual a ameaça à soberania do país na preservação da confidencialidade tecnológica de lançamentos operados por empresas americanas quando, numa comparação, não de todo inusitada, a Coca-Cola produz até hoje sua famosa gororoba com base num segredo comercial, nunca revelado e nunca patenteado e devidamente respeitado pelo Brasil (como por qualquer outro país)?
Confundir soberania com interesse comercial não revela apenas raciocícnio tortuoso por parte dos organizadores do plebiscito; revela também quão pouco identificados com os interesses nacionais eles estão.
Um único reparo ao artigo do Monserrat: considerar que a Alca é uma questão de soberania revela um outro desvio curioso do debate nacional em torno desse projeto de acordo comercial (que não sabemos hoje se existirá, mas que os organizadores do plebiscito já consideram como líquido e certo, num curioso exercício de profetismo histórico).  Por certo não se trata de um “mero” acordo de livre-comércio, pois que, se ele existir (o que duvido, não por causa do punhado de opositores que se manifestam de forma estridente, mas por causa do protecionismo do Congresso americano, tão avesso a ele quanto nossos mais furiosos manifestantes anti-Alca, o que nos deixa pensando sobre as razões dessa curiosa coincidencia), ele deveria supostamente englobar aspectos não totalmente comerciais, como propriedade intelectual, investimento, concorrência ou compras governamentais.
Mas, esse acordo – que finalmente se reduz a rebaixar tarifas e eliminar umas outras tantas barreiras não tarifárias ao exercício de negócios nos países americanos, introduzindo o conceito de tratamento nacional nas áreas assim abertas à concorrência estrangeira – apresenta muito menos desafios à soberania nacional do que, por exemplo, os acordos que o Brasil já assinou, e que todos os progressistas apoiam, nos terrenos da luta contra a corrupção internacional nos negócios (um acordo hemisférico, outro multilateral) e no do tratamento aos mais bárbaros atentados aos direitos humanos, como consubstanciado no TPI, saudado como marco de avanço no direito internacional e que, sim, comporta renúncia de soberania no que toca os próprios nacionais brasileiros.
Em face desses acordos, eles sim comprometedores da “soberania” nacional, o futuro e até aqui hipotético acordo da Alca seria muito menos intrusivo e nocivo à soberania nacional, pois que se limita a estender ao âmbito hemisférico preferências tarifárias, compromissos de acesso a mercados e um certo conjunto de nomas comerciais, o que o Brasil já pratica hoje no plano do Mercosul e também no quadro da Aladi.
Nunca vi nenhum congressista brasileiro denunciar essa “renúncia de soberania” que representa o Mercosul e que vários observadores brasileiros querem ver aprofundado no sentido da adoção de cláusulas supranacionais (portanto, mais renúncia de soberania). Frente a isso, a Alca é o menor dos males e a oposição a ela deve ser apenas porque a proposta partiu do Império, o mal absoluto no julgamento desses opositores. Mais uma vez se demonstra o baixo grau de confiança que muitos brasileiros entretêm sobre nossa própria capacidade de negociar com pleno conhecimento de causa oportunidades comerciais – pois que a Alca trata precisamente disso, como Alcântara – por um suposto temor de dependência dos interesses externos. Creio que se trata simplesmente de manifestação de baixa-estima sobre nossas condições negociadoras.
Paulo Roberto de Almeida (sociólogo; pralmeida@mac.com)