Usos e abusos do barão
MATIAS SPEKTOR
Folha de São Paulo, domingo, 22 de julho de 2012
O ufanismo vai cedendo nos cem anos de Rio Branco
RESUMO
Figura maior da diplomacia brasileira, José Maria Paranhos Jr., o barão do Rio Branco (1845-1912), morreu ungido por tal unanimidade que só começou a ser visto sem ufanismo nas últimas décadas. Ensaio esquadrinha criticamente a trajetória do chanceler e os mitos que há um século se forjam em torno dele.
Toda nação vive, em parte, de seus mitos. Poucos têm tanta força entre nós quanto o do Barão do Rio Branco, morto há cem anos.
Ele merece seu lugar no panteão porque expandiu o território nacional sem recurso às armas e sem grandes alianças. O país que representava estava enfraquecido, desarmado e isolado, e sua performance fez toda a diferença.
Mais, Rio Branco fez de si o elo entre o Império derrotado e a República vitoriosa. Com pai ministro, senador, diplomata e chanceler de d. Pedro 2o, ele assistiu à queda da monarquia, mas evitou o exílio típico de muitos de sua classe e serviu a quatro presidentes como ministro das Relações Exteriores sem compunção (1902-12).
Sua adesão à República foi total: pôs a política externa a serviço dos novos-ricos da burguesia agroexportadora e não hesitou em entrar para a vitrine da nova ordem, a Academia Brasileira. Mas, com estilo todo próprio, manteve o título de barão e fomentou a mitologia segundo a qual a diplomacia republicana bebia da fonte de um suposto passado imperial de glórias.
Habilidoso jogador para uns, inescrupuloso camaleão para outros, enfrentou desafetos e inimigos. Para os monarquistas, era um traidor. Para os republicanos, potencial líder da restauração monarquista. Sua política externa foi fustigada na Câmara, no Senado e na imprensa. Mais de uma vez a boataria previu sua queda. Só virou unanimidade depois de morto.
Sobreviveu a quatro trocas de governo em grande parte por seu talento de jornalista e sua rara capacidade de manipular a imprensa. Escreveu prolificamente sob pseudônimos. Leitor compulsivo de jornais, não hesitou em pautar editores, nem a eles queixar-se de coberturas desfavoráveis.
Alimentou calculadamente a imagem de excêntrico. Eram proverbiais a desordem de seu gabinete, a humilde cama instalada em seu despacho no Itamaraty, a caça aos mosquitos com uma vela, a mania de jogar água fria nos gatos que perambulavam pelo ministério e a fobia de elevadores.
O barão também teve sorte. Nos dez anos anteriores a sua posse, o Brasil afundou em hiperinflação e crise política. Revoltas pipocaram no sul, em Mato Grosso e no Nordeste. Na Revolta da Armada, o porto do Rio foi bloqueado e bombardeado. Em 1897, houve um atentado contra o presidente. Em três anos, Floriano Peixoto teve oito ministros do Exterior. Assumindo o Itamaraty em 1902, Rio Branco encontrou debeladas a inflação e as crises, num respiro para a política externa.
Ao morrer de complicações de saúde, ainda ministro, aos 67, em 1912, detinha mais capital político que os presidentes aos quais servira. Estima-se que tenham ido ao enterro 300 mil pessoas, um quarto da população carioca.
BIOGRAFIAS
Em muitos países, uma figura desse naipe seria objeto de ricas e divergentes biografias. Não aqui. A literatura sobre o barão é escassa, ignora a farta documentação disponível sobre ele em arquivos estrangeiros e mantém-se irritantemente laudatória.
Álvaro Lins, Jarbas Maranhão, Afonso de Carvalho e Renato Sêneca Fleury lançaram hagiografias no centenário de nascimento (1945). Quinze anos depois, Luis Viana Filho publicou trabalho um pouco mais rigoroso. O conjunto faz do barão um herói irretocável. Nos anos 2000 começou a aparecer algum questionamento, ainda que tímido. Rubens Ricupero, em seu "Rio Branco, o Brasil no Mundo" (2000), abre avenidas de investigação em brevíssimas 70 págs. Cristina Patriota faz o mesmo no também breve "Rio Branco, a Monarquia e a República" (2003).
Ler a respeito de Rio Branco ainda é frustrante. Do conjunto das obras existentes, aprende-se que ele era "coerente", "seguro", "inovador", "singelo", "lúcido", "despretensioso" e, curiosamente, conseguia ser "tímido" e "extrovertido" ao mesmo tempo. Como se tivesse poderes do além, "não falhou em nada que empreendeu".
Por isso é um sopro de lucidez o novo livro do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos, "O Evangelho do Barão" [Editora Unesp, 174 págs., R$ 36]. Corretivo necessário, põe em perspectiva o que houve de incoerente, inseguro e pretensioso na trajetória do barão, sem reduzir a genialidade do homem e de seu projeto político. Com "O Dia em que Adiaram o Carnaval" (2010), do mesmo autor, trata-se da melhor leitura, ainda que analítica, não propriamente biográfica.
Fica para o futuro a tarefa de desmontar dois mitos persistentes a respeito do barão: a suposta busca da liderança regional no entorno sul-americano e a suposta "aliança não escrita" com os EUA.
EQUILÍBRIO
Rio Branco era devoto da teoria do equilíbrio de poder. Entendia que todo protagonismo brasileiro levaria os vizinhos do Prata e do Amazonas a formar uma coalizão antibrasileira. Chegou a confidenciar a um interlocutor que "nenhum país de língua espanhola é bom e nenhuma pessoa de sangue espanhol é confiável".
Não era à toa. A Argentina, antiga rival, encontrava-se em franca ascensão. O Brasil de Rio Branco era relativamente fraco. Em 1906, por exemplo, nossa dívida pública era o dobro da argentina, o comércio exterior, metade, assim como a rede de linhas telegráficas. A Argentina tinha 21.600 km de trilhos; o Brasil, para um território muito maior, apenas 16.800 km. A força naval argentina era bem superior.
Em 1908, o barão estava seriamente preocupado com um ataque militar argentino. O governo de lá era, disse ele, "tresloucado". Ainda jovem, escrevera: "Não temos esquadra, não temos torpedos, não temos Exército, e os argentinos têm tudo isso". Pediu recursos para armar o Brasil, sem sucesso.
Assim, em posição de fraqueza relativa, Rio Branco fez três movimentos. Primeiro, acelerou a negociação das fronteiras, para evitar que possíveis conflitos militares ganhassem vulto -o Brasil não tinha condições de vencer.
Segundo, construiu um edifício conceitual calcado nos princípios de não intervenção, satisfação territorial e negociação de diferenças sem recurso à força. Fez isso porque o país não tinha alternativa.
Terceiro, Rio Branco propôs um acordo de "cordial inteligência" entre Argentina, Brasil e Chile, o ABC. Tratava-se de um modelo para mitigar a competição e criar canais de comunicação entre seu rival (Argentina) e o rival de seu rival (Chile). Esse "condomínio" para manter a região estável -o Brasil não podia se dar ao luxo da guerra- permitiria limitar efeitos negativos da ascensão argentina.
Buenos Aires descartou o ABC. Os dois países logo entrariam em uma corrida por poder, prestígio e influência que só se resolveria, em favor do Brasil, 60 anos mais tarde.
EUA
Todo manual de história diplomática -e todo livro sobre Rio Branco- repete a mesma tese: o chanceler teria feito dos Estados Unidos o principal aliado do Brasil republicano. Foi o historiador americano E. Bradford Burns que desenvolveu o conceito em seu "A Aliança Não Escrita: Rio Branco e as Relações do Brasil com os EUA", de 1966 (EMC, 2003).
A tese está equivocada: nem Rio Branco aliou-se aos EUA, nem os americanos fizeram do Brasil um aliado. A aproximação foi intensa, mas não menos parcial, conflituosa e frustrante para os dois países.
O barão não tinha ilusões. "Prefiro que o Brasil estreite as suas relações com a Europa a vê-lo lançar-se nos braços dos EUA", escreveu antes de assumir. Quem pedia uma "aliança tácita, subentendida", era Joaquim Nabuco, seu embaixador em Washington.
Rio Branco não evitou rotas de colisão. Em 1906, frustrado com a falta de cooperação dos EUA na 3a Conferência Pan-Americana, no Rio, provocou seu chanceler Elihu Root: "[A Europa] nos criou, ela nos ensinou". Tensão maior ocorreria em 1907, em Haia.
Uma consulta aos arquivos diplomáticos de Washington revela desconfiança em relação ao Brasil, preocupação em não hostilizar ou isolar a Argentina e sobretudo boa dose de indiferença. Do ponto de vista americano, não havia aliança, nem nada parecido.
Rio Branco usou o vínculo instrumentalmente e com vistas a tirar vantagens para o Brasil e para si mesmo. Mostrar-se como um aliado de Washington rendia frutos políticos internos, pois a República brasileira se identificava com o federalismo americano ("Somos da América e queremos ser americanos", diz o manifesto de 1870). De quebra, na Revolta da Armada os EUA apoiaram Floriano Peixoto contra os monarquistas.
O chanceler também usou os EUA como escudo. Ele temia que a expansão neocolonial europeia se espraiasse em áreas de fronteira malcuidadas como Amapá, Roraima e o rio Amazonas.
Quem poderia nos ajudar? "As definições da política externa norte-americana são feitas", explicava ele em 1905, "sem ambiguidades, com arrogante franqueza, sobretudo quando visam os mais poderosos governos da Europa, e o que acontece é que estes não protestam nem reagem, antes acolhem bem as intervenções americanas."
USOS E ABUSOS
Há cem anos, o nome do Barão é usado e abusado. Nas palavras de Villafañe, trata-se de uma verdadeira "santificação de Rio Branco na religião laica do nacionalismo".
Seus sucessores, por exemplo, justificaram políticas controversas apelando para o patrono. Nos anos 1940, Oswaldo Aranha o usou para convencer o público a aceitar lutar junto aos EUA na Segunda Guerra Mundial. Na década de 1960, Mario Gibson Barboza invocou-o para explicar a expansão do mar territorial brasileiro em 200 milhas.
Nos anos 1990, Celso Lafer ancorou nele a decisão de fazer concessões à Argentina. Nos 2000, Celso Amorim viu nele as sementes da Unasul. Agora, Antonio Patriota afirma que a aproximação do Barão aos EUA -naquele momento uma potência periférica- inspira a proximidade atual aos Brics (China, Índia, Rússia e África do Sul).
Nada disso surpreende. O barão, quando chanceler, também forjou mitos para justificar-se. Seus sucessores, ainda que sem o seu estilo, não fizeram mais do que segui-lo.