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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

A demolição da política externa brasileira - Sergio Amaral (OESP)

Opinião 

Meu livro publicado mais recente se chama, justamente Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira (Curitiba: Appris, 2021)

Opinião 

A demolição da política externa brasileira

Sergio Amaral

O Estado de S.Paulo, 15 de setembro de 2022

O Itamaraty é uma das instituições mais respeitadas do serviço público brasileiro. Seus funcionários são, via de regra, competentes. O concurso de ingresso é rigoroso, a formação e o aperfeiçoamento dos diplomatas estendem-se ao longo de toda uma carreira. Seu compromisso com o País é inquestionável.

Não obstante, a política externa foi um dos desastres do governo de Jair Bolsonaro. De início, o presidente seguiu, em suas linhas básicas, a política externa de Donald Trump, que isolou os Estados Unidos do mundo e fez adversários em todas as partes, inclusive na Europa, onde os Estados Unidos sempre mantiveram alianças estreitas e amigos fiéis. Combateu a ordem mundial concebida e implantada por iniciativa dos Estados Unidos nas conferências de São Francisco e de Bretton Woods, logo após o término da Segunda Guerra Mundial.

As confusas e obscuras visões de mundo de Ernesto Araújo, o primeiro chanceler de Bolsonaro, inspiraram-se nas exóticas teses de Steve Bannon, o influente guru e “estrategista” de Trump, que chegou a criar um “movimento” nacional populista na Europa, com sede no mosteiro medieval de Trisulti, na Itália. Seu objetivo era o de abrigar uma escola para a formação dos cruzados do século 21. Ali eles seriam adestrados para defender os valores da cultura judaico-cristã contra as ameaças dos infiéis e do materialismo ateu. Os alunos do Instituto Rio Branco foram convocados para assistir a palestras nas quais ouviram, perplexos, uma doutrinação em defesa dos valores do cristianismo medieval. Não chegaram a realizar o seu treinamento em Trisulti, mas no auditório do Instituto Rio Branco, em Brasília.

Influenciado por essas visões insólitas, também compartilhadas por membros do gabinete da Presidência da República, o governo Bolsonaro iniciou uma meticulosa demolição de algumas de nossas mais respeitadas tradições diplomáticas. O alvo privilegiado, como também o era para Trump, foi a ONU, particularmente o Conselho dos Direitos Humanos e a Organização Mundial da Saúde. O multilateralismo passou, então, a ser considerado uma ameaça aos interesses brasileiros.

Na mesma linha, o Mercosul, que já foi um dos pilares de nossa diplomacia, sob Bolsonaro foi condenado ao descaso. Foi acusado por não ter alcançado a união aduaneira, nem mesmo o livre-comércio, o que é em parte verdade, sem lembrar que muitos dos que faziam a crítica são os mesmos que se haviam oposto a uma desgravação mais ampla. E não reconhecem tampouco a contribuição valiosa da harmonização do marco regulatório, nos mais diferentes setores, para a circulação mais desimpedida dos bens e capitais, ciência e tecnologia, transporte e serviços de infraestrutura, cultura e turismo, entre outros.

Nessas condições, o Mercosul ficou praticamente restrito a uma discussão ociosa entre Brasil e Argentina sobre o grau de redução da Tarifa Externa Comum, como se dois ou três pontos porcentuais, para cima ou para baixo, pudessem fazer a diferença para atingir um patamar mais elevado de integração entre os membros do acordo regional.

Enquanto isso, as reais questões sobre a reforma do Mercosul, a dinamização do comércio, a ampliação ou a expansão em direção à Aliança do Pacífico, ou mesmo em direção à Parceria Transpacífica, passaram para o segundo plano, pois não é possível avançar numa agenda regional, complexa e desafiadora sem o engajamento ativo dos chefes de Estado.

Outra iniciativa de que o Brasil havia participado e mesmo liderado, o acordo Mercosul- União Europeia, está paralisada diante das ofensas pessoais de Bolsonaro à esposa do presidente da França, um episódio sem precedentes na história da diplomacia brasileira. A recusa em não ratificar o acordo, da parte de outros países europeus, deveu-se ao descumprimento pelo Brasil de seus compromissos com a redução do desmatamento na Amazônia.

Por fim, vale relembrar os ruídos, senão hostilidades, em relação aos dois mais importantes parceiros econômicos do Brasil. A China, em razão das hostilidades gratuitas a membros de sua Embaixada em Brasília. Os Estados Unidos, pela embaraçosa, mas deliberada demora no reconhecimento da vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais norte-americanas.

Na iminência de concluir-se o governo do presidente Bolsonaro, resta uma indagação central: o que o Brasil ganhou com esta série de desfeitas e equívocos gratuitos de seu governo, inclusive em relação aos mais importantes parceiros do País? Os riscos e custos são conhecidos: o isolamento internacional do Brasil; a perda de sua liderança, inclusive em nossa própria região; e a criação, pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de um comitê especial para investigar a progressão do desflorestamento na Amazônia, cujos resultados serão levados em conta na aprovação ou não do pedido de adesão do Brasil ao organismo, por exemplo.

A política externa está entre os setores que o próximo governo, qualquer que seja, terá de mudar substancialmente.

* FOI EMBAIXADOR EM WASHINGTON E PRESIDENTE DO CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA 

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Chantecler remove embaixador do Brasil em Washington - Revista Veja

Ernesto Araújo remove embaixador do Brasil em Washington

Decisão vem a público na semana em que chanceler é acusado de deslealdade e traição pelo embaixador Mário Vilalva e o demite da Apex

O ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo: críticos tornam-se heróis no Itamaraty - 10/04/2019. (Charles Sholl/Brazil Photo Press/Folhapress)
Depois de exonerar seu colega diplomata Mário Vivalva da presidência da Agência de Promoção de Exportações (Apex) e deixar outros veteranos embaixadores sem postos no Itamaraty, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, decidiu retirar Sérgio Amaral da embaixada do Brasil em Washington e dar-lhe uma posição de menor envergadura. A transferência de Amaral para o Escritório de Representação do Itamaraty em São Paulo foi publicada na edição desta quarta-feira, 10, no Diário Oficial da União (DOU).
A saída de Amaral de Washington já era carta marcada e deverá lhe trazer imenso alívio. Aposentado, depois de um longo período de licença durante os governos petistas, ele fora indicado para o principal posto do Brasil no exterior pelo então chanceler José Serra durante o governo de Michel Temer.
Embaixador Sérgio Amaral: retorno a São Paulo pode ser alívio para veterano diplomata.
Embaixador Sérgio Amaral: retorno a São Paulo pode ser alívio para veterano diplomata. (Roque de Sá/Agência Senado)
O embaixador é historicamente conectado ao PSDB. Foi porta-voz do Palácio do Planalto e, depois, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) na gestão deFernando Henrique Cardoso.
Embora no Itamaraty haja nomes à altura para substituí-lo, o chanceler Ernesto Araújo e o presidente Jair Bolsonaro tendem a escolher uma pessoa ideologicamente afinada  para o principal posto do Brasil no exterior. O guru do governo do PSL, Olavo de Carvalho, é um dos nomes cotados, além do de seu discípulo Nestor Forster, nomeado e exonerado em apenas sete dias por Araújo como seu chefe de gabinete, em dezembro. O setor militar do governo, porém, insiste no cientista político Murillo Aragão.
A mudança em Washington vem a público apenas um dia depois do episódio da demissão do embaixador Mário Vilalva do comando da Apex, ao final de noventa dias de gestão nesse feudo do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente da República. A VEJA, Vivalva afirmou ter “caído em uma grande arapuca” ao aceitar o convite de Araújo para assumir essa posição e se sentir “aliviado e frustrado” com sua saída.
Com 43 anos de carreira diplomática – catorze anos a mais que Araújo -, o embaixador deverá se licenciar do serviço público. Sua atitude, porém, o tornou mais um dos heróis do Itamaraty, onde perseguições a quadros não vinculados ideologicamente ao novo governo estão na ordem do dia e uma corrida a postos no exterior – em especial, para consulados – tem sido a válvula de escape. O último diplomata a enfrentar Araújo foi Paulo Roberto de Almeida, exonerado do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) por suas críticas à condução do Itamaraty neste governo.
“Foram noventa dias de luta insana para colocar as coisas nos devidos lugares na Apex e tocar o trabalho de promoção do comércio e da boa imagem do Brasil”, afirmou Vilalva, um dos mais experientes nessa área do Itamaraty. “Acabei sozinho e alvo de jogadas desleais e traiçoeiras desferidas pelos meus colegas da cúpula do Itamaraty”, completou, referindo-se a atitudes consideradas surpreendentes do chanceler Ernesto Araújo e do secretário-geral das Relações Exteriores, Otávio Brandelli.
Vivalva disse não ter sido chamado nenhuma vez por Araújo para conversar reservadamente sobre o funcionamento da Apex que, na gestão de Dilma Rousseff, esteve subordinada ao MDIC. Recebera apenas uma visita de Eduardo Bolsonaro, acompanhado de um guarda-costas armado. Do chanceler, afirmou o embaixador, recebeu o “golpe” inesperado.

Golpe

Embaixador Mário Vilalva: armadilhas na Apex e demissão por telefone
Embaixador Mário Vilalva: armadilhas na Apex e demissão por telefone (APEX Brasil/Reprodução)
Vilalva acusou publicamente Araújo de ter se engajado com os dois diretores da agência, Márcio Coimbra e Leticia Catelani, na elaboração de um novo estatuto para a agência  “na calada da noite”. O documento, registrado em cartório, esvazia a presidência da Apex e repassa boa parte de suas atribuições aos dois diretores. Embora Araújo, como ministro, presida o Conselho Deliberativo da Apex, o novo estatuto não foi submetido à aprovação dos demais membros desse órgão.
Ao denunciar o “golpe”, Vivalva estava ciente das consequência. Foi demitido por telefone na terça-feira. O Itamaraty limitou-se a publicar uma nota na qual agradeceu os serviços prestados pelo embaixador. Seu sucessor ainda não foi designado.
Segundo o embaixador, desde o início do governo, a Apex tem sido controlada por Coimbra e Letícia Catelani, mais conhecida como Catel. Ambos são ligados às colunas bolsonaristas e, como diretores da Apex, recebem salário de cerca de 45.000 ao mês. A empresária Catelani, sócia-administradora da empresa Liderusi, é conhecida amiga do deputado Bolsonaro desde os tempos de faculdade e tem sido protegida por Araújo.
Embora não tivesse experiência em comércio exterior nem no serviço público federal, ela fora nomeada pelo chanceler para a Diretoria de Negócios, a pedido do filho do presidente. A área sob seu controle é responsável por 81% do orçamento da agência, de 700 milhões de reais ao ano.
Desde sua chegada à Apex, Vivalva viu-se minado pela atuação dos dois diretores. Não conseguiu alterar o estatuto da Apex para reduzir o poder financeiro da área de Negócios nem substitui-los por quadros profissionais. Tampouco teve sucesso em suas iniciativas de trazer para a Apex um auditor com carreira na Corregedoria Geral da União, um militar para a área de gestão, uma diplomata como sua chefe de gabinete e uma jornalista para a área de Comunicação Social. Viu-se ainda amarrado pela determinação estatutária de que as decisões deveriam ser tomadas com as assinaturas do presidente da Apex e de um diretor – ou dos dois diretores, na ausência do líder.
Em uma das armadilhas dos diretores, Catelani desapareceu no dia da assinatura da renovação do contrato da Apex com a empresa de marketing Terroá, responsável naquele momento pela montagem de um estande do Brasil na feira de móveis de Milão, com a presença dos irmãos Campana, célebres designers brasileiros. A diretora insistiu para que Vivalva enviasse o contrato, já com a assinatura dele, para o local onde estava.
“Eu expliquei que não poderia fazer isso, que um contrato público deve ser assinado conjuntamente pelos seus responsáveis e com a presença de testemunhas. Fiquei até as 20 horas esperando por ela, que não apareceu. No dia seguinte, ela acusou a empresa Terroá de ter sido disse mencionada na Lava Jato, fato que eu não conhecia e que deveria ter sido apresentado por ela para nossa reunião prévia”, afirmou.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Destravar a politica externa - Sergio Amaral

É hora de destravar a política externa
Sérgio Amaral
Folha de S. Paulo, 20/08/2014

A economia brasileira é, hoje, uma das mais fechadas do mundo, com o comércio representando cerca de 20% do Produto Interno Bruto
Afora os Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e as relações com Pequim, a política externa brasileira travou, inclusive em setores prioritários --como Mercosul, América do Sul e comércio exterior.
O Mercosul está paralisado, se não em retrocesso. Em pouco mais de uma década, as vendas brasileiras para o grupo declinaram de 17% a 8% das nossas exportações. Os investimentos também caíram, enquanto as instituições do Mercosul não fizeram qualquer progresso significativo.
Chegou a hora da verdade para o Mercosul. Os países-membros do grupo terão de tomar decisões fundamentais: querem consolidar o livre-comércio? Pretendem manter a união aduaneira? Querem continuar a proteger bens intermediários, em detrimento da integração das cadeias produtivas?
Quaisquer que sejam as opções, o importante será cumprir as regras acordadas, de modo a restaurar a credibilidade que o Mercosul perdeu. Com a adesão da Venezuela ao grupo, inclusive a cláusula democrática virou letra morta.
Na América do Sul, em vez de caminharmos para a integração, marchamos a passos firmes para a desintegração, com o traçado de uma nova linha de Tordesilhas que separa o Mercosul, a leste, da Aliança do Pacífico, a oeste. O último grupo representa 34% do PIB e 51% do comércio da América Latina.
Em três anos, a Aliança do Pacífico avançou, em vários setores, mais do que o Mercosul. A busca de uma convergência entre os dois grupos encontra, no entanto, a resistência do Brasil.
Por fim, em comércio colocamos todas as fichas na OMC (Organização Mundial do Comércio). Com o fracasso, provavelmente definitivo, da Rodada Doha, ficamos a ver navios, pois não negociamos os acordos de comércio, bilaterais e regionais, que a maioria de nossos parceiros já concluiu.
O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, o mais importante deles, ainda não foi finalizado --pela resistência da Argentina em aceitar concessões que os seus parceiros no Mercosul já fizeram, e pela recusa do Brasil em prosseguir nas negociações sem a Argentina, como, de fato, pode e deveria.
O custo para o Brasil será alto. Como relembrou José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, o Brasil poderá perder, entre outras vantagens, o acesso privilegiado ao mercado europeu de carne, caso as negociações com Washington avancem rapidamente, pois serão concedidas aos Estados Unidos as quotas que poderiam beneficiar o Brasil.
A abertura da economia é precondição para a retomada do crescimento. Assim como as reformas econômicas são um requisito para que a indústria possa competir.
A economia brasileira é, hoje, uma das mais fechadas do mundo. O comércio representa cerca de 20% do PIB --no caso da China, este percentual é de 53%. O presidente chinês, Xi Jinping, em sua visita recente ao Brasil, declarou que seu país não seria o que é hoje não fossem a abertura do comércio e as reformas da economia -- e Xi Jinping é insuspeito de inclinações neoliberais.
O travamento da política externa não ocorre apenas em setores prioritários. O comércio com a África continua a representar 5% de nossas exportações, como há várias décadas. As relações com Washington estão num ponto morto, exatamente no momento em que os Estados Unidos promovem uma revolução energética como prelúdio para um processo de reindustrialização, que abrirá oportunidades novas para cooperação e comércio.
É preciso não confundir visitas diplomáticas e comunicados conjuntos generosos com programas e parcerias efetivas. Infelizmente, temos sido pródigos na retórica e modestos nos resultados.

SERGIO AMARAL, 70, embaixador, foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (governo Fernando Henrique Cardoso)

sábado, 21 de julho de 2012

Bolivia: rompendo contratos, com a complacencia brasileira - Sergio Amaral


Até quando abusarão da nossa paciência?

Sergio Amaral
O Estado de S.Paulo21 de julho de 2012
O convívio entre os povos, desde os tempos antigos, orienta-se por um princípio e por uma realidade. O princípio é o de que pacta sunt servanda. Se os acordos não forem respeitados, eles não existem e, por conseguinte, não existem regras para a convivência entre as nações. A realidade é o de que a política internacional, antes de tudo, é uma relação de poder, qualquer que seja a sua forma. Mao dizia que o poder está na ponta do fuzil. Gramsci acrescentava que o poder resulta de uma combinação entre força e consentimento. Os Estados Unidos derrotaram a União Soviética na guerra fria por sua superioridade econômica. Nye teoriza sobre o poder suave. Moisi introduz o instigante conceito da geopolítica das emoções.
Pois bem, a América do Sul parece estar buscando reescrever essas duas noções fundamentais. Em nossa região, os tratados não precisam mais necessariamente ser cumpridos. Serão cumpridos ou descumpridos em função das afinidades ideológicas ou da relação de amizade entre os países. É a versão contemporânea das práticas correntes, entre nós, na Velha República: aos amigos, tudo; aos adversários, a lei. O Conselho do Mercosul recusou o impeachment de Fernando Lugo sob o argumento de que, embora a letra da Constituição do Paraguai possa ter sido respeitada, o rito sumário teria caracterizado o golpe. Pode ser. Mas se recusarmos as decisões do Legislativo e do Judiciário paraguaios, por configurarem um simulacro de impeachment, tampouco poderemos aceitar o simulacro de democracia que vige na Venezuela e muito menos recompensá-la com o ingresso no Mercosul.
Em nosso subcontinente, a vontade dos menores, curiosamente, parece prevalecer sobre a dos maiores. Um estudante de intercâmbio em Relações Internacionais, recém-chegado de Marte, ao ler as notícias sobre a perseguição a empresários brasileiros, pelo governo boliviano, em represália à decisão do Brasil de conceder asilo a um senador da oposição, poderia bem supor que a Bolívia é o país sul-americano com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, uma população de 205 milhões de habitantes e um produto interno bruto (PIB) de US$ 2,4 trilhões; e o Brasil, a nação mais frágil, com território de 1 milhão de quilômetros quadrados, 10 milhões de habitantes e um PIB de US$ 25 bilhões. Às vezes pode até parecer que é efetivamente assim, mas a realidade é o inverso.
Infelizmente, esse episódio recente não é um fato isolado. A Bolívia já ocupou antes uma planta da Petrobrás. O Equador contestou a legalidade de um empréstimo do BNDES porque se indispôs com a companhia construtora brasileira. Enquanto isso, o secretário de Comércio da Argentina, com uma simples chamada telefônica, costuma violar o espírito e a letra do Tratado de Assunção, o ato constitutivo do Mercosul.
A menção a esses fatos de modo algum sugere que o Brasil deva prevalecer-se de sua superioridade econômica ou do tamanho de seu mercado para impor a sua vontade. Ao contrário. Por uma questão de solidariedade para com os nossos vizinhos e irmãos sul-americanos, e mesmo por interesses econômicos e políticos próprios, o Brasil deve buscar uma prosperidade compartilhada na região. Por que não traduzir as palavras em fatos e promover uma abertura generalizada e unilateral do nosso mercado aos parceiros sul-americanos? Quem tem condições para propor, acertadamente, uma liberalização multilateral do comércio no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), com mais razão pode comprometer-se com uma abertura mais ampla no âmbito regional.
Por que não impulsionar, como faz a China, uma integração do espaço econômico regional por meio do mercado? Na medida em que um acordo de integração é inviável na Ásia, em face dos vários conflitos entre países da região, as grandes empresas chinesas, com o velado apoio de seu governo, desenvolveram mecanismos de complementação industrial e de integração das cadeias produtivas com as economias vizinhas. Hoje o comércio intra-asiático já representa 53% das trocas totais dos países do continente. No Mercosul esse porcentual, que já foi de 21%, de 1992 a 1999, caiu para 14% de 2000 a 2008. O Mercosul já representou 17% das exportações brasileiras, hoje não passa de 11%.
Estamos assistindo a um visível retrocesso comercial e institucional do Mercosul, entre outras razões, pela tolerância com a violação sistemática das suas regras e o desrespeito às suas instituições. A benevolência diante do descumprimento gera o descrédito perante a sociedade, a insegurança jurídica para os agentes econômicos e a deterioração da imagem do Mercosul entre os seus parceiros no restante do mundo.
O Brasil tem o dever de fazer concessões aos seus vizinhos de menor peso relativo nas negociações econômico-comerciais. Mas, em contrapartida, tem o direito de cobrar o cumprimento do que foi acordado. Temos meios para tanto. Não se trata de ameaçar ou fazer represálias. Basta cumprir a lei. A Bolívia dificilmente resistiria ao fechamento da fronteira contra a receptação de carros roubados ou o tráfico de drogas. O Paraguai, que se soma muitas vezes ao coro das ameaças contra os agricultores brasileiros, dificilmente suportaria a suspensão do contrabando na fronteira.
O episódio recente na Bolívia é lamentável. E não somente pela mesquinhez das ameaças contra produtores, que nada têm que ver com as políticas de seus governos. Mas também por questionar a legitimidade do asilo diplomático, uma das mais genuínas tradições da diplomacia latino-americana, consagrada no caso de Haya de la Torre, um dos próceres ilustres do nosso continente.
A Bolívia só se sente à vontade para praticar atos de verdadeira provocação por estar convencida de que, mais uma vez, contará com a benevolência do Brasil.
Diante desse cenário insólito, só nos resta indagar, repetindo Cícero: até quando, ó Morales, abusarás de nossa paciência?    
DIPLOMATA, FOI EMBAIXADOR EM LONDRES E EM PARIS