Opinião
Meu livro publicado mais recente se chama, justamente Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira (Curitiba: Appris, 2021)
Opinião
A demolição da política externa brasileira
Sergio Amaral
O Estado de S.Paulo, 15 de setembro de 2022
O Itamaraty é uma das instituições mais respeitadas do serviço público brasileiro. Seus funcionários são, via de regra, competentes. O concurso de ingresso é rigoroso, a formação e o aperfeiçoamento dos diplomatas estendem-se ao longo de toda uma carreira. Seu compromisso com o País é inquestionável.
Não obstante, a política externa foi um dos desastres do governo de Jair Bolsonaro. De início, o presidente seguiu, em suas linhas básicas, a política externa de Donald Trump, que isolou os Estados Unidos do mundo e fez adversários em todas as partes, inclusive na Europa, onde os Estados Unidos sempre mantiveram alianças estreitas e amigos fiéis. Combateu a ordem mundial concebida e implantada por iniciativa dos Estados Unidos nas conferências de São Francisco e de Bretton Woods, logo após o término da Segunda Guerra Mundial.
As confusas e obscuras visões de mundo de Ernesto Araújo, o primeiro chanceler de Bolsonaro, inspiraram-se nas exóticas teses de Steve Bannon, o influente guru e “estrategista” de Trump, que chegou a criar um “movimento” nacional populista na Europa, com sede no mosteiro medieval de Trisulti, na Itália. Seu objetivo era o de abrigar uma escola para a formação dos cruzados do século 21. Ali eles seriam adestrados para defender os valores da cultura judaico-cristã contra as ameaças dos infiéis e do materialismo ateu. Os alunos do Instituto Rio Branco foram convocados para assistir a palestras nas quais ouviram, perplexos, uma doutrinação em defesa dos valores do cristianismo medieval. Não chegaram a realizar o seu treinamento em Trisulti, mas no auditório do Instituto Rio Branco, em Brasília.
Influenciado por essas visões insólitas, também compartilhadas por membros do gabinete da Presidência da República, o governo Bolsonaro iniciou uma meticulosa demolição de algumas de nossas mais respeitadas tradições diplomáticas. O alvo privilegiado, como também o era para Trump, foi a ONU, particularmente o Conselho dos Direitos Humanos e a Organização Mundial da Saúde. O multilateralismo passou, então, a ser considerado uma ameaça aos interesses brasileiros.
Na mesma linha, o Mercosul, que já foi um dos pilares de nossa diplomacia, sob Bolsonaro foi condenado ao descaso. Foi acusado por não ter alcançado a união aduaneira, nem mesmo o livre-comércio, o que é em parte verdade, sem lembrar que muitos dos que faziam a crítica são os mesmos que se haviam oposto a uma desgravação mais ampla. E não reconhecem tampouco a contribuição valiosa da harmonização do marco regulatório, nos mais diferentes setores, para a circulação mais desimpedida dos bens e capitais, ciência e tecnologia, transporte e serviços de infraestrutura, cultura e turismo, entre outros.
Nessas condições, o Mercosul ficou praticamente restrito a uma discussão ociosa entre Brasil e Argentina sobre o grau de redução da Tarifa Externa Comum, como se dois ou três pontos porcentuais, para cima ou para baixo, pudessem fazer a diferença para atingir um patamar mais elevado de integração entre os membros do acordo regional.
Enquanto isso, as reais questões sobre a reforma do Mercosul, a dinamização do comércio, a ampliação ou a expansão em direção à Aliança do Pacífico, ou mesmo em direção à Parceria Transpacífica, passaram para o segundo plano, pois não é possível avançar numa agenda regional, complexa e desafiadora sem o engajamento ativo dos chefes de Estado.
Outra iniciativa de que o Brasil havia participado e mesmo liderado, o acordo Mercosul- União Europeia, está paralisada diante das ofensas pessoais de Bolsonaro à esposa do presidente da França, um episódio sem precedentes na história da diplomacia brasileira. A recusa em não ratificar o acordo, da parte de outros países europeus, deveu-se ao descumprimento pelo Brasil de seus compromissos com a redução do desmatamento na Amazônia.
Por fim, vale relembrar os ruídos, senão hostilidades, em relação aos dois mais importantes parceiros econômicos do Brasil. A China, em razão das hostilidades gratuitas a membros de sua Embaixada em Brasília. Os Estados Unidos, pela embaraçosa, mas deliberada demora no reconhecimento da vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais norte-americanas.
Na iminência de concluir-se o governo do presidente Bolsonaro, resta uma indagação central: o que o Brasil ganhou com esta série de desfeitas e equívocos gratuitos de seu governo, inclusive em relação aos mais importantes parceiros do País? Os riscos e custos são conhecidos: o isolamento internacional do Brasil; a perda de sua liderança, inclusive em nossa própria região; e a criação, pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de um comitê especial para investigar a progressão do desflorestamento na Amazônia, cujos resultados serão levados em conta na aprovação ou não do pedido de adesão do Brasil ao organismo, por exemplo.
A política externa está entre os setores que o próximo governo, qualquer que seja, terá de mudar substancialmente.
* FOI EMBAIXADOR EM WASHINGTON E PRESIDENTE DO CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA
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