Meu trabalho publicado mais recente:
4222. “Eleições brasileiras de 2022 num cenário de terra arrasada”, Brasília, 22 agosto 2022, 12 p. Publicado na revista InterAção (Santa Maria: UFSM; vol. 13, n. 2, edição especial, setembro 2022; ISSN: 2357-7675). Relação de Publicados n. 1469.
Eleições brasileiras de 2022: um cenário de terra arrasada
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
Texto composto em 22/08/2022
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Publicado na revista InterAção (Santa Maria: UFSM; vol. 13, n. 2, edição especial, setembro 2022; ISSN: 2357-7675). Relação de Publicados n. 1469.
Estaria o Brasil evoluindo insidiosamente para um regime iliberal?
Uma primeira reflexão interrogativa sobre o atual cenário de grandes dúvidas a respeito do desenvolvimento normal das eleições de 2022 poderia ser feito partindo de um questionamento geral sobre nossa trajetória como nação política. Rupturas institucionais ou de regimes políticos só ocorrem excepcionalmente na vida das nações. As sociedades já constituídas politicamente não costumam fazer assembleias gerais para decidir sobre o seu próximo destino: normalmente, mudanças e reformas, inclusive no plano institucional, se dão no âmbito parlamentar, depois de ampla discussão no corpo representativo.
Com efeito, rupturas radicais só ocorrem ao cabo de revoluções ou de guerras civis. Ainda não é o caso do Brasil. Pelo menos não na magnitude dos episódios antecedentes que podem ser aqui sumariados: a crise do regime imperial, que também se devia, além dos casos religiosos e militares, a grandes dúvidas sobre a sucessão da monarquia, dada a idade provecta do imperador; quando se deu o golpe militar em prol da República; a crise da primeira República, refletida na luta dos militares e da classe média contra os votos falsos, também estimulada pela crise econômica externa; a própria crise do regime getulista ao final da Segunda Guerra Mundial; o clima de radicalização que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros e o arremedo parlamentarista que levou João Goulart à presidência, mas precipitou o acirramento das oposições; o golpe de 1964, quando os militares decidiram não apenas intervir na política, mas “fabricar” um novo regime tecnocrático; finalmente, a crise de vinte anos de autoritarismo que soçobrou na crise econômica e na falta de legitimidade política.
Essa foi a sucessão de rupturas desde o início do regime republicano, o que justificou que o principal brasilianista americano, Thomas Skidmore, examinando nossa trajetória dos anos 1930 ao golpe de 1964, desse como subtítulo de seu primeiro livro sobre a política no Brasil esse qualificativo dubitativo: Politics in Brazil, 1930-1964: an Experiment in Democracy (1967). Atualmente, o Brasil, definitivamente, não vive um ciclo toynbeeano de ascensão e declínio civilizatório. Nossa trilha é um pouco mais “abaixo”, não em termos de avanços materiais ou progressos tecnológicos, mas no terreno dos valores e princípios morais de uma sociedade que deveria ser regrada, mas não consegue encontrar as bases de um regime político definitivamente regido pelas leis, não pela esperança eleitoral de se encontrar o próximo “salvador da pátria”. Não escapamos do sebastianismo, mas tampouco somos capazes de degringolar em experimentos tão radicais como as vistas em outros países.
Certas sociedades, enfrentando profundas crises, como a República de Weimar ou a Venezuela dos anos 1990, acabaram se entregando a um bando de sacripantas criminosos que terminam por levá-la ao paroxismo da autodestruição. Estaria o Brasil se aproximando dessa “atração fatal”? Não parece ser o caso, pelo menos não ainda.
Não se pense que certas “deformações” de um ciclo normalmente e tendencialmente ascensional estejam restritas a países que passaram por profundas crises sociais e econômicas como a Alemanha de Weimar ou a Venezuela pré-Chávez. Elas podem afetar, igualmente, nações aparentemente bem-sucedidas, mas bastante diversas em sua composição “civil”, com estamentos privilegiados, mas decadentes, e diferentes estratos de “desclassificados”, mas dotados de franquias eleitorais, como ocorre atualmente com a maior parte dos Estados-nacionais do sistema onusiano. Os Estados Unidos recentes podem ser um exemplo disso, como já revelaram alguns estudiosos da própria franja avançada das democracias de mercado, que veem o liberalismo em crise e o declínio das democracias. Tais processos parecer ser bem mais o resultado do avanço da ignorância do que dos retrocessos da economia.
Nessas fricções do processo histórico e no itinerário da evolução de nações assim confrontadas a desafios adaptativos podem surgir espaços, abrir “janelas”, para que oportunistas dotados de “boa” retórica consigam empolgar as massas com suas propostas disruptivas. Pode ser o começo do declínio, mais ou menos dramático segundo as forças sociais mobilizadas ao redor do personagem: um Mussolini, um Hitler, um Chávez, um Trump, um Bolsonaro.
Não está claro o que pode advir desse tipo de “atração fatal”. O que está claro é que tal tipo de fenômeno deveria, pelo menos, afastar essas teorias deterministas da História. A história de cada nação em particular é um livro aberto ao imponderável, ao contingente, ao inesperado, ao acidental e até ao dramático. Apenas se espera que o Brasil não esteja no vórtice de alguma “atração fatal”.
Qual é a conjuntura política existente no Brasil semanas antes das eleições?
Duas semanas antes das supostas festividades pelos 200 anos de nossa independência como Estado autônomo e menos de 40 dias antes do próximo pleito presidencial, o contexto eleitoral que se observa, de um ponto de vista independente, é próximo de um cenário de terra arrasada. As razões não são difíceis de definir, bastando olhar o panorama político.
Nada do que venha a ocorrer no curso das próximas semanas, em plena campanha política presidencial, deveria poder nos impedir de reconhecer exatamente quem são os corruptos, os grandes mentirosos, os incompetentes e até um ou outro desequilibrado, entre os que estão na liça para a presidência nos próximos quatro anos, assim como entre os milhares de candidatos para os demais cargos em disputa. O que já vimos até aqui – em termos de emendas secretas, uso abusivo dos fundos eleitoral e partidário – também pode nos confirmar que o estamento político brasileiro é essencialmente predatório das riquezas duramente produzidas pelo povo trabalhador. Digo estamento num sentido flexivelmente weberiano, pois que a classe política de fato se converteu numa categoria à parte no cenário social brasileiro. Ela se apresenta hoje como sendo o pior inimigo do Brasil e dos trabalhadores brasileiros, que estão sendo sistematicamente extorquidos por ladrões organizados. Esta é uma constatação que se funda na observação dos crimes eleitorais, ou crimes comuns, perpetrados por vários dos candidatos e que, no entanto, estão em liça.
Vai ser difícil reparar tal sistema necrosado pela corrupção entranhada, totalmente alheio a qualquer ética no serviço público, servindo apenas a si mesmo e confiante na impunidade judicial que seus grandes integrantes construíram para si.
Como chegamos a isso?
Foi um lento acumular de distorções e de deformações banais, que atingiram inclusive as mais altas corporações de Estado, e que produziram um mundo à parte das preocupações mundanas dos brasileiros do setor produtivo, um mundo focado exclusivamente na captura da riqueza criada pelo setor produtivo sob a forma de nacos cada vez maiores do orçamento nacional, sistematicamente desviados para ganhos prebendalistas, o que está no centro do patrimonialismo que nunca deixou de se fortalecer no Brasil.
Nossa decadência política é de um tipo diferente: ela não tem nada de ideológico, pois que todas as correntes de opinião política, todas as tendências do sistema partidário partilham do mesmo afã pelo ganho fácil, pela extorsão legalizada por um sem-número de dispositivos e mecanismos dedicados ao objetivo comum de extrair renda do Estado brasileiro.
Os rentistas do estamento político estão unidos no aprofundamento do declínio da nação e prometem aperfeiçoar o sistema de extorsão legalizada justamente no ano em que “comemoramos” o Bicentenário do Estado independente. Existe maior ironia do destino do que essa?
De fato, podemos proclamar desde já, ou seja, quarenta dias antes dos resultados dos escrutínios – para os cargos executivos e para todos aqueles representativos – que as próximas eleições podem ser totalmente inúteis para a correção das graves dificuldades que enfrenta o Brasil, como resultado do pior declínio político a que assistimos em nossa história republicana, um processo que se arrasta desde o início do século.
Quer ganhe um ou outro dos principais candidatos, segundo as pesquisas eleitorais, isso não parece ter a menor importância para a governança ou para as reformas necessárias no país, pois a cidadania votante nem se sabe se elas serão, ou não, feitas, algumas sim, outras não, ao sabor das coalizões sempre cambiantes e oportunistas no Parlamento.
Quem continuará mandando, de fato, serão os políticos predadores e predatórios do largo estamento de hienas do orçamento, pois essa é a última instância de poder. O Centrão, na verdade, nem precisaria existir na sua forma e composição atuais: o que existe, de fato, é uma ameba sequiosa de verbas públicas em favor do seu enriquecimento pessoal, e isso de forma permanente. O velho patrimonialismo continua e continuará forte, feliz e seguro de si no Brasil do Bicentenário. Senão vejamos.
Estamos numa conjuntura “gatopardiana”? Mudar para nada mudar?
Menos de três semanas após a data dos 200 anos de independência e de construção tentativa de uma nação controlada e extorquida pelo Estado, o eleitorado brasileiro, independentemente de quem tenha sido o mais votado para a presidência, elegerá, de forma quase inconsequente e inconsciente, os mesmos sanguessugas para os diversos outros cargos — velhos ou novos, não importa— que continuarão a se locupletar com e a partir da riqueza duramente criada pelo povo trabalhador.
Difícil acreditar, a essa altura das miseráveis negociações pouco republicanas que ocorrem à margem das candidaturas presidenciais, que algo de fundamentalmente diferente ocorra a partir dessas eleições, que tenhamos homens probos no Congresso, engajados por um momento, não em suas prebendas orçamentárias, mas em reformas estruturais no tocante à educação, infraestrutura, segurança, luta contra a corrupção e a insegurança jurídica.
O eleitorado continuará fixado no próximo salvador da pátria e, ao lado disso, os verdadeiros donos do poder — que nem é só o estamento burocrático de que falava Raymundo Faoro — continuarão suas soturnas maquinações em busca da preservação, da manutenção ou da conquista de mandatos parlamentares, que são os que determinam, em última instância, o destino das verbas públicas.
Podemos ter a certeza de que o estupro orçamentário continuará, com todos os tipos de emendas que a imaginação fértil dos sanguessugas congressuais concebeu, que isenções, subsídios e outros favores (sempre setoriais), que perdão de dívidas por impostos não pagos, que concursos públicos para lotar a máquina do Estado de centenas de funcionários muito bem remunerados, que milhares de cargos em comissão, tudo isso continuará a existir, que carros, imóveis e penduricalhos diversos a título de “auxílios” não tributáveis continuarão a existir e que novos serão criados. Enfim, basta dizer que o Brasil continuará sendo muito parecido com o Brasil que já conhecemos.
Não há nenhum pessimismo nesse tipo de afirmação. Basta observar o declínio de outras nações, a decadência democrática e a semiestagnação econômica, processos muito mais frequentes do que progressos fulgurantes em direção à prosperidade. Basta olhar em volta para conferirmos esse tipo de cenário de quase terra arrasada.
O Brasil não é muito melhor do que a Argentina aqui ao lado, que já nos provou que a pobreza pode, sim, voltar e se espalhar, pelas mãos e pés dos mesmos políticos que infelicitam a nação há décadas. O Brasil não é muito melhor, em sua democracia de baixa qualidade, do que os EUA, um exemplo lamentável de retrocessos inacreditáveis num processo de reforço de particularismos anacrônicos trazidos por carolice religiosa, ignorância cidadã e introversão nacionalista da mais baixa qualidade.
As eleições, finalmente, não são a grande festa da democracia, como nos quer fazer crer a propaganda ingênua do TSE. Elas são apenas a continuidade de um ritual compulsório, a que nos conduziram as hordas de políticos hábeis na manipulação de cidadãos — na verdade súditos de um Estado expropriador — com o único objetivo de se constituírem em governantes — federais, estaduais ou municipais — legitimamente mandatados para continuar o processo de extorsão.
O eleitorado se arrastará sem qualquer entusiasmo para as urnas de outubro, sem qualquer esperança de que 2023 será muito diferente do que já vimos nos anos precedentes. Esta descrição relativamente pessimista não é um impedimento absoluto quanto às possibilidades de o Brasil dar um grande salto para a frente na correção das suas piores iniquidades, a desigualdade social em primeiro lugar. Ela deve servir unicamente para nos guardar daquele otimismo reincidente a cada nova eleição: desta vez será diferente…
Será? Observando o cenário de terra arrasada, não existem razões para se acreditar que desta vez possa ser diferente. Inclusive porque, olhando a realidade de frente, a polarização promete tudo contaminar, antes, durante e após o próximo pleito eleitoral
O que nos promete o atual processo eleitoral? Nada de muito brilhante.
Parece que, por enquanto, temos pela frente dois responsáveis por dois grandes desastres, que ameaçam se repetir, um por corrupção e sectarismo, o outro por incompetência e perversidade negacionista. Sair dessa camisa de força, mesmo dispondo de alguns bons candidatos alternativos, não depende só deles, mas de um eleitorado pouco educado e muito castigado por frustrações contínuas.
Ninguém, nenhum partido ou movimento, dispõe da chave do futuro: este pode estar na acentuação da divisão do país, como até agora prometido pelas pesquisas eleitorais, ou numa longa caminhada para a normalização da nação, que será efetivamente muito difícil, e não apenas pela amplitude dos desafios econômicos e sociais, mas sobretudo pela péssima qualidade da representação política, que pode ainda se acentuar na próxima legislatura.
Cabe, portanto, ser moderadamente pessimista quanto aos próximos anos: tudo leva a crer que permaneceremos ainda, e durante bastante tempo mais, na mediocridade que tem sido a nossa por quase meio século, com poucos momentos de lucidez. Não somos, infelizmente, o que gostaríamos de ser.
O Brasil vai saltando de salvador em salvador, continuando a afundar na mediocridade de esperar que um presidente “dê jeito nas coisas”. Construímos nós mesmos essa gaiola de ferro que não leva a nada, a não ser a novas frustrações.
Ainda não crescemos o suficiente. Custa pensar?
Por que, como é que toda uma sociedade, que possui gente capaz, pesquisadores e professores que produzem obras magníficas de saber consistente, empresários inteligentes e batalhadores, e até alguns políticos sagazes, como é que tanta gente se deixa aprisionar e levar por um punhado de aproveitadores, mentirosos e incompetentes, que são saudados como “líderes”, dos quais se espera a solução a tantos problemas criados pelos mesmos mentirosos aproveitadores?
A sociedade como um todo, em sua grande maioria formada de cidadãos contribuintes e votantes, se deixa levar por alguns poucos pilantras, que continuam a praticar falcatruas a prazos regulares?
Mais de dez mil anos de “civilização”, religiões salvadoras, maravilhas da modernidade tecnológica, e até economistas competentes, para no final nos deixarmos levar por alguns espertinhos, que possuem a retórica adequada em face das dificuldades da vida e que continuam a apregoar falsas soluções?
Somos tão crédulos assim, ou apenas passivos e acomodados?
Estamos no limiar de um novo exercício do mesmo gênero, mais um autoengano, que vai beneficiar velhos e novos espertinhos, e deixar a maioria mais ou menos como ela estava antes.
Até a próxima vez…
É, parece que, finalmente, a humanidade, as sociedades nacionais, os povos constituídos em forma de Estados, nós não avançamos tanto assim: continuamos ingênuos e incapazes de cuidar de nós mesmos, e temos de recorrer a outros para organizar a bagunça. Tem um preço em tudo isso: não avançamos tanto quanto poderíamos: conflitos de opinião continuam possíveis. As paixões e os interesse ainda nos dominam.
Finalmente, não estamos tão longe assim da guerra de Troia. Mas mesmo que os brasileiros pretendessem voltar para uma Ítaca imaginária – alguns poucos bons governos no passado de duas ou três gerações: JK, FHC, quem mais? –, o caminho seria longo e semeado de escolhos. Existiria alguma outra via?
Sobre a natureza do declínio relativo do Brasil no último meio século
Não existe qualquer fatalidade interna ou externa que explique a perda de impulso para o crescimento e o desenvolvimento econômico e social que afeta o Brasil desde a fase final, de crises e desacertos, do regime militar. As razões são essencialmente políticas e self-made.
O Brasil afundou menos pela ação persistente de algum projeto organizado de pensamento equivocado aplicado à nação — como podem ter sido os fenômenos do bolchevismo e do peronismo, nos casos bem mais graves dos desacertos ocorridos na Rússia e na Argentina durante décadas— e mais pela inconsciência geral quanto aos destinos do país por parte daqueles que ascenderam ao poder, de esquerda ou direita, desde aquela época.
Os problemas foram se acumulando lentamente, asfixiando não só a possibilidade de correções pontuais pela via da política, como a própria consciência de que problemas conjunturais estivessem reforçando tendências estruturais negativas, já longamente estabelecidas, como por exemplo a persistência de baixos níveis de educação na população.
A correção dos desacertos é difícil e incerta, ao observarmos o cenário de curto prazo, uma vez que ainda persistimos em identificar um improvável “salvador da pátria” como o redentor dos nossos males, sendo que este pode estar tanto à direita quanto à esquerda. Tais são as indefinições que persistem, e que mostram a divisão do país, num quadro de incerteza geral quanto a um programa geral de ajustes. As “soluções” ainda são buscadas em nível de pessoas, não de políticas.
Difícil vislumbrar qualquer inversão da atual tendência declinante e de recuperação da nação como um processo longo e desgastante, tantas são as deformações criadas por políticos desonestos e medíocres no comando do país — de esquerda e de direita —, ao lado da incultura ainda largamente predominante em todos os estratos sociais.
Não há nenhuma dúvida quanto a inexistência de fatalidades inevitáveis, pois todos os nossos problemas são o resultado de disfuncionalidades cumulativas criadas domesticamente. Mas muitas são as dúvidas de que possamos ter, no ambiente atual da fragmentada política brasileira (ou seja, as “elites dirigentes”) e da virtual inexistência de qualquer consenso sobre a natureza dos desafios entre as elites verdadeiramente dominantes (ou seja, os donos do capital), alguma possibilidade de correção de rumos no futuro previsível.
Em resumo: a retomada do dinamismo é incerta e provavelmente tomará mais de uma geração. Perdemos o rumo e até a consciência de que devemos ter algum tipo de rumo, qualquer que seja ele. Vai demorar para encontrar algum outro, tal a rigidez de interesses consolidados na atual anomia societal.
Se ousarmos pensar no Brasil como “país do futuro”, 80 anos depois que Stefan Zweig ousou predizer boas promessas nessa perspectiva, em boa medida pelo caráter plástico de nossas relações raciais, parece que até isso se perdeu, uma vez que o politicamente correto continua a criar arestas de uma divisão cultural racial que não existia antes da importação das ideias americanas sobre a “afro” descendência. Paramos de insistir naquilo que nos distingue como povo tolerante e culturalmente integrado, e começamos a construir uma sociedade demarcada por conceitos raciais, como os Estados Unidos?
A trajetória perversa do estamento político no Brasil
O Brasil está economicamente estagnado há muito tempo. Isso é certo e conhecido.
Mas, uma outra economia cresceu bastante nos últimos anos, a da criminalidade, não necessariamente aquela “normal”, bem conhecida, e sim uma especificamente política, ou melhor, dos políticos.
Esse aumento da corrupção política dos “representantes do povo” foi acelerado na era Lula, que, para ter maioria no Congresso, passou a comprar, literalmente, parlamentares e bancadas inteiras com dinheiro público e das estatais. Tudo isso está muito bem documentado, embora os lulopetistas pretendam agora reescrever a história.
Daí o processo de corrupção política se desenvolveu enormemente depois, passando de fenômenos como Mensalão e Petrolão para processos endógenos de sustentação financeira, como os fundos e as emendas (de vários tipos), cobrindo todo o espectro do leque político, de um extremo a outro, sem exceções ou muito poucas. Isso também é conhecido.
Um governo fraco, débil, improvisado e caótico, como é o atual desgoverno do psicopata perverso, tornou ainda mais resiliente a criminalidade política, assim como estimulou a criminalidade comum, não só pela crise, pandemia e guerra, mas porque isso corresponde à sua natureza profunda; ele vem desses meios.
Essa é a verdadeira “herança maldita” a ser legada por um ladrão ordinário, fraudador como muitos outros colegas de Parlamento do dinheiro público, via rachadinhas e outras falcatruas, mas que virou, voluntária e involuntariamente, um grande criminoso político. Alguma dúvida? Essa triste trajetória já pode ter ocorrido em diversos outros países, em especial na América Latina, mas o Brasil ingressou, definitivamente, na era da grande criminalidade política.
Não se pode esperar que o “fenômeno” se dissolva rapidamente. Ele acompanha o processo de deterioração educacional e moral da sociedade, inclusive porque já adentramos num regime “parlamentar”, mas um parlamentarismo de fachada.
O Brasil já chegou ao “parlamentarismo”, mas de um tipo disfarçado, deformado e até criminoso, pois que apenas exercido no sentido da apropriação, em vários casos da extorsão, de recursos públicos por parte dos “parlamentares”, com finalidades exclusivamente patrimonialistas.
Isso se deve ao fato de que o presidente atual é um completo inepto em matéria de governança e por isso transferiu — ou transferiram — a essência do seu desgoverno aos profissionais do ramo, os mesmos que elevaram os fundos indecentes a extremos de apropriação.
Se trata de um “parlamentarismo” podre, no qual os parlamentares não assumem nenhuma responsabilidade pela gestão, apenas se dedicam a arrancar nacos do orçamento para seus fins pessoais e familiares. Tudo isso sob o controle de uma espécie de familiocracia miliciana.
O Brasil “presidencialista” acabou?
Com efeito, tudo indica que o Brasil “presidencialista” de tempos atrás, acabou: entramos num híbrido institucional não formalizado, próximo de um parlamentarismo de fachada, que vai nos levar à anarquia política nos anos à frente
Votos à parte, a desorganização financeira e orçamentária promovida pelo atual governo vai impactar negativamente as contas públicas estaduais e da União durante anos à frente. Não existe mais processo orçamentário, e sim uma extrema fragmentação dos recursos públicos em milhares de emendas paroquiais, sem qualquer sentido de planejamento racional e com amplo espaço para a corrupção.
Esta é a verdadeira herança maldita a ser deixada pelo desespero eleitoral do atual dirigente, ao lado da destruição total da cultura, da educação e do fomento à C&T. O Brasil se degrada politicamente pela pior gestão administrativa na história e pelo avanço de um falso parlamentarismo criado e mantido pelo estamento político predatório que se firmou no país.
O número de partidos pode até diminuir — embora apenas formalmente—, mas os caciques partidários passam a controlar um volume exponencial de recursos públicos, dados os fundos Partidário e Eleitoral ao lado do estupro orçamentário de todos os tipos de emendas. Conseguimos nos rebaixar deliberadamente, pela completa ausência de estadistas, ou de dirigentes responsáveis, seja na classe política, seja entre as elites econômicas.
O Brasil se suicida lentamente, não por um projeto consciente, mas pela extrema mediocridade dos que estão no comando político e econômico do país, não excluindo as corporações de Estado desse processo, mandarins do Estado focados exclusivamente em seus ganhos patrimonialistas, inclusive militares e aristocratas do Judiciário.
Cabe, portanto, prepararmo-nos para uma mudança institucional para pior no Brasil, nos próximos anos, independentemente dos que forem eleitos, em todos os cargos em outubro de 2022. A ideia de uma nação voltada para o futuro terminou: os feudos cuidam apenas de si mesmos. A degradação interna e internacional do Brasil já se tornou visível aos olhos do mundo inteiro. Cada vez mais quadros formados estão abandonando o país.
Sobre algumas das razões de nosso atraso político e econômico
Não existe nenhuma novidade ao se afirmar que o cenário visível do desalento nacional é caracterizado pelo aumento da miséria e da pobreza da população mais carente e a total falta de educação cívica em amplos setores do eleitorado, dois fatores potencializados pelo crescimento do evangelismo extrator, isto é, a indústria religiosa predatória dos pobres e deseducados.
Se a Receita Federal tivesse condições de avaliar o volume de dinheiro que é carreado de forma praticamente subterrânea para as arcas dos pastores – um indústria que talvez iguale, ou supere, os tráficos de todos os tipos – constataria que ele é muitas vezes maior do que todo o "maná" governamental sob a forma de "auxílio à pobreza", sobretudo porque o maná dos pastores passou do dízimo arrecadado voluntariamente ou das bolsinhas circulando nos cultos, para a forma mais moderna do Pix oficial das "igrejas" (o que aliás facilitaria a avaliação do oceano de dinheiro manipulado por esses "pastores da fé").
O crescimento da demagogia religiosa juntou-se ao velho populismo eleitoral para levar o Brasil para trás, e não apenas no sentido cívico, mas propriamente educacional. Daí decorrem políticas gerais, inclusive econômicas, altamente equivocadas que rebaixam o capital humano daqueles mais desprovidos.
É um imenso problema, nunca resolvido mesmo nos anos de estabilização macroeconômica e que está arrastando o Brasil para trás e para baixo. A diminuição da renda e o aumento dos pobres e famintos são visíveis a olho nu, o que não é só uma decorrência da crise da epidemia e da guerra. A má qualidade do estamento político faz o resto, ao produzir baixo crescimento (ou nenhum em termos per capita, e até recuando), pela adoção de políticas inconsistentes ou simplesmente direcionadas a privilegiar os já ricos.
As políticas de “assistência à pobreza” não eliminam na verdade a pobreza, apenas subsidiam o consumo dos mais pobres, e podem até provocar efeitos deletérios, sobre o mercado de trabalho, por um lado (ao alterar o custo desse fator no plano microeconômico), e, por outro lado, sobre a chamada agricultura de subsistência ou atividades muito elementares que atuavam como “renda” não monetária (e, portanto, não computada nos levantamentos baseados em moeda circulante).
Se havia desnutrição, subnutrição ou até surtos epidêmicos de fome localizada (secas em determinadas regiões do agreste, por exemplo), não havia gente condenada a morrer de fome pela ausência de ajuda assistencial do governo ou inexistência de alternativas. Um equilíbrio precário, mas não o quadro de pessoas realmente passando fome extrema, pela ausência de algum maná público.
O desequilíbrio ou interrupção das ajudas levou à dependência passiva, e, portanto, a casos agudos de fome, pois a expectativa era a ajuda, não a busca ativa ou desesperada de uma solução ao nível individual. O tão apregoado e incensado “maior programa de assistência social do mundo” pode ter criado uma cultura da dependência nefasta no plano dos comportamentos sociais e individuais.
O “Estado” — isto é, políticos demagogos do governo — perpetuam a solução da ajuda pública, pois parece um expediente mais fácil — ou útil eleitoralmente— do que a educação de massa de qualidade e políticas de produtividade do capital humano. As políticas de combate à pobreza podem estar perpetuando a pobreza.
Poderemos superar os tremendos obstáculos políticos que obstam, presentemente, um processo sustentado de crescimento econômico, com transformação produtiva e distribuição socialmente equitativa dos frutos desse crescimento? Talvez, mas para isso seria necessário um grande esforço da cidadania no sentido de renovar a representação política, empreender as reformas institucionais e econômicas indispensáveis e renovar o sentido de união nacional em torno dos legítimos interesses da população mais pobre. Persistem fundadas dúvidas sobre se tal esforço tem condições de ser levado adiante por estadistas responsáveis, inclusive porque uma das razões do declínio relativo é justamente a falta de estadistas responsáveis que se apresentem à sociedade com um discurso renovado de unidade nacional em torno de metas e objetivos efetivamente conjugados.
O principal obstáculo parece residir, como já se afirmou repetidas vezes, na notória mediocridade de nossas elites. O atraso não é tanto material, quanto ele é essencialmente mental.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4222: 22 agosto 2022, 12 p.
Publicado na revista InterAção (Santa Maria: UFSM; vol. 13, n. 2, edição especial, setembro 2022; ISSN: 2357-7675). Relação de Publicados n. 1469.
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