A economia precisa de ajustes macroeconômicos para retomar o crescimento sustentável. Um dos ajustes principais é o das contas públicas, por meio do aumento do superávit primário. Mas qual seria o ajuste das contas públicas factível nas condições atuais?
Por um lado, o ajuste fiscal é essencial para retomar a confiança na economia, por outro, há dificuldades concretas para implementá-lo no curto prazo.
De forma geral, acreditamos em um cenário macroeconômico de ajustes considerados mínimos; suficientes para evitar a deterioração da economia, mas não profundos o suficiente para gerar uma retomada vigorosa do crescimento. A nossa perspectiva para o ajuste fiscal se encaixa neste contexto. Acreditamos que o governo ajuste as contas públicas em até 1% do PIB, atingindo um superávit primário de 1,2% do PIB em 2015.
O superávit primário que estabiliza a relação dívida/PIB é maior que esse projetado para o ano que vem. Estimamos que seja necessário atingir um primário entre 2-2,5% do PIB. É evidente que o ajuste fiscal terá de ser multianual, estendendo-se para além do próximo ano. Uma implementação bem sucedida em 2015 poderia gerar a confiança necessária no ajuste nos anos seguintes.
A magnitude do ajuste no ano que vem não seria inédita, mas comparável ao efetuado em 2003 e 2011. O impacto desse ajuste já está considerado nas nossas estimativas de atividade econômica e de inflação para o ano seguinte.
Mas há riscos claros de implementação, dada a dificuldade do ajuste, especialmente em meio a um cenário de crescimento modesto e de inflação alta.
O incentivo para ajustar é claro. Além de evitar a deterioração da percepção de risco, a tendência de consolidação fiscal ao longo dos próximos anos terá efeitos positivos sobre a confiança e o crescimento.
Dinâmica fiscal nos últimos anos
Nos últimos três anos, o superávit primário do setor público recuou de 3,1% do PIB, em 2011, para 2,4%, em 2012; 1,9%, em 2013, e 0,6% nos 12 meses terminados em setembro de 2014. Nossa estimativa de primário recorrente, que exclui as receitas e despesas não recorrentes, passou de 2,7% do PIB, em 2011, para -0,5%, em setembro de 2014 (ver gráfico).
A queda do primário decorre não apenas do impacto da desaceleração da atividade econômica sobre a arrecadação, mas também de uma postura fiscal mais expansionista tanto do lado da receita (desonerações tributárias) quanto do lado da despesa. Em 2014, o crescimento da arrecadação tributária acumulado até setembro está relativamente estável em termos reais, enquanto as despesas crescem 5,3%, ritmo significativamente acima de estimativas de crescimento econômico potencial. A receita recorrente do governo central sobre o PIB vem declinando moderadamente desde meados de 2012, após ter subido continuamente entre 2000 e 2007, enquanto a despesa total do governo central sobre o PIB segue em tendência de alta (ver gráfico).
A redução do superávit primário, em conjunto com o aumento recente no custo de financiamento da dívida pública, vem pressionando o endividamento público. Neste ano, a dívida líquida do setor público em proporção do PIB acumula alta de 2,4 pontos percentuais, para 35,9%. A dívida bruta do governo geral subiu 5,0 p.p., para 61,7% do PIB. A diferença do movimento de alta entre os dois conceitos se dá, em parte, pela desvalorização do câmbio, que atenua a alta na dívida líquida, e pelos aportes do Tesouro ao BNDES, que afetam apenas a dívida bruta.
Para a frente, dado que as despesas de juros tendem a permanecer elevadas, a manutenção do superávit primário nos patamares atuais consolidará a tendência de alta no endividamento o público. Nossas simulações de dinâmica de dívida mostram que, caso o superávit primário fique estável em 0,0% do PIB a partir de 2015 (nível ainda acima do superávit primário recorrente estimado para 2014), a dívida líquida subirá mais de 10 p. p. do PIB nos próximos quatro anos (considerando taxa de câmbio estável no período). Segundo nossos cálculos, o superávit primário necessário para estabilizar a dívida pública no longo prazo situa-se entre 2,0% e 2,5% do PIB (essa estimativa assume crescimento do PIB potencial de 2,5%, e juro real de 4,0%, no longo prazo).
Portanto, a discussão sobre um ajuste fiscal que reequilibre as contas públicas e garanta a sustentabilidade do endividamento público nos parece importante neste momento.
É possível ajustar?
Avaliamos ser factível uma mudança na postura da política fiscal, capaz de elevar o superávit primário consolidado para 1,2% do PIB em 2015 e 1,8% do PIB em 2016. Tal ajuste sinalizaria o propósito de manter o equilíbrio das contas públicas. Para alcançá-lo, no entanto, são necessários esforços do lado do gasto e do lado da receita, e da contribuição tanto do governo central como dos governos regionais.
Um ajuste relevante do lado dos gastos do governo central é difícil. A primeira dificuldade é que, dado apenas o reajuste do salário mínimo no ano que vem (próximo a 9,0% em termos nominais, segundo a regra que ainda vale para 2015) e o aumento esperado nos beneficiários da Previdência, estimamos que as despesas da previdência e de LOAS e RMV somadas subirão em torno de 0,2 p.p. do PIB em 2015. Para compensar, o governo pode: (1) manter as demais despesas de custeio (linha formada principalmente pelos gastos através dos Ministérios da Defesa, do Desenvolvimento Social, da Educação, da Ciência e Tecnologia etc.) estáveis como proporção do PIB, o que seria uma mudança significativa em relação a anos anteriores em que as despesas nessa rubrica cresceram cerca de 0,2 p.p. do PIB por ano; e (2) fazer um corte de 0,3 p.. do PIB no investimento (outras despesas de capital). Além disso, pode: (3) implementar alterações, já sinalizadas recentemente, nas regras de pensões por morte e abono e de seguro-desemprego. Avaliamos que tais mudanças economizariam perto de 0,2% do PIB. Ao fim, a despesa total do governo central recuaria cerca de 0,3 p.p. do PIB no ano que vem (de 19,6% para 19,3% do PIB).
Do lado das receitas, o ajuste fiscal requererá um aumento da arrecadação tributária, que pode acontecer via recomposição de alíquotas desoneradas e criação/reedição de novos impostos:
Cide - Nosso cenário conta com R$ 5,0 bilhões (0,1% do PIB) de receitas em 2015 através da recomposição da Cide. Estimamos um aumento para R$ 0,07/litro tanto para a gasolina quanto para o diesel, anunciado ao fim de 2014 ou início de 2015, a entrar em vigor em abril/2015 (respeitando a noventena em aumentos da alíquota de contribuição). Alterações na Cide são feitas via decreto, não necessitando de aprovação no Congresso desde que não ultrapassem os tetos estipulados pela Lei 10.336 (R$ 0,86/litro no caso da gasolina, e R$ 0,39/litro no caso do diesel).
IPI - Incluímos na conta um aumento do IPI de automóveis de 3% para 5% ao fim de 2014, e também uma recomposição parcial das alíquotas de IPI dos produtos de linha branca, móveis e materiais de construção. Somadas, as novas alíquotas gerariam um aumento na receita de 2014 para 2015 da ordem de R$ 4,0 bilhões (0,1% do PIB). As isenções de IPI atualmente valem até o fim de 2014.
Receita via aumentos nos preços de gasolina e diesel - Além dos aumentos da Cide, nosso cenário também pressupõe aumentos adicionais nos preços de gasolina e diesel, de forma a diminuir a defasagem entre os preços praticados no Brasil e no exterior. Isso geraria, a nosso ver, um aumento nas receitas (principalmente via dividendos e imposto de renda do setor de óleo e gás) da ordem de 0,1% do PIB para 2015.
Outros - o ajuste exigiria adicionalmente criar/reestabelecer novos impostos ou contribuições, gerando uma receita da ordem de 0,3% do PIB em 2015. Essa hipótese envolve riscos maiores de implementação, pois requereriam aprovação no Congresso.
Receitas não-recorrentes - Como nos últimos anos, é provável que o Tesouro volte a contar com receitas não recorrentes - concessões, dividendos extraordinários, Refis. Como a tendência tem sido de um gradual recuo nos volumes anuais dessas receitas (o que é intuitivo, no caso de concessões e Refis), estimamos que as receitas não recorrentes em 2015 recuarão cerca de 0,1% do PIB, frente ao volume esperado para 2014.
Do lado dos governos regionais, acreditamos ser possível um aumento do superávit primário de 0,1% para 0,3% do PIB. Esse ajuste é factível e relativamente comum no primeiro ano de mandato (no caso dos governos estaduais).
Dessa forma, somando-se: (1) a queda na despesa do governo central de 0,34% do PIB; (2) o aumento de 0,52% do PIB nas receitas via aumentos de impostos (estimamos que as receitas tributária que não forem alteradas cresçam ao mesmo ritmo do PIB); (3) a queda de 0,1% do PIB nas receitas não recorrentes; e (4) o aumento de 0,2% do PIB no superávit primário dos governos regionais, o setor público consolidado alcançaria o superávit primário de 1,2% do PIB em 2015. (Tabela 1)
Para 2016, avaliamos que a persistência da postura fiscal mais restritiva ajudaria a elevar o superávit primário na direção de 1,8% do PIB. Parte do aumento no superávit primário decorre da continuidade dos impostos que foram aumentados em 2015. Também incluímos no cenário mais um aumento adicional de R$ 0,07/litro na Cide da gasolina (atingindo R$ 0,14 litro) e uma recomposição total dos IPIs de veículos (atingindo 7%), linha branca, móveis e materiais de construção. Além disso, contamos com outro corte de 0,2 p.p. do PIB no investimento, outras despesas de custeio estáveis em relação ao PIB e aumento de 0,1 p.p. no superávit primário dos governos regionais.
Conclusão
Considerando a necessidade do ajuste fiscal, mas também as dificuldades para implementá-lo, acreditamos num ajuste fiscal de 1% do PIB no ano que vem, levando o superávit primário para 1,2% do PIB. Para 2016, projetamos continuidade do ajuste e superávit primário de 1,8% do PIB.
Esse cenário envolve um impulso fiscal negativo (determinado pela variação do superávit primário estrutural) da ordem de 0,9% do PIB por ano em média em 2015 e 2016 - ajuste similar ao observado em 2002 e 2003 e já incorporado nas nossas projeções de atividade econômica para os próximos anos.
Há riscos claros de implementação, dada a dificuldade do ajuste, especialmente em meio a um cenário de crescimento modesto e de inflação alta. Mas o incentivo para ajustar é claro. Além de evitar a deterioração na percepção de risco, a tendência de consolidação fiscal ao longo dos próximos anos terá efeitos positivos sobre a confiança e o crescimento.
Luka Barbosa
Economista
Pesquisa macroeconômica - Itaú
Ilan Goldfajn - Economista-Chefe