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domingo, 20 de maio de 2012

Diplomacia do Primeiro Mandato de Lula: um balanco de PRAlmeida

Certos textos são feitos, depois revistos, reduzidos e publicados em veículos de escassa circulação.
É o caso deste aqui:

1699. “A diplomacia do governo Lula: balanço e perspectivas”, Brasília, 11 dezembro 2006, 14 p. Ensaio para ser publicado na revista do Instituto Liberal, “Banco de Idéias”, como dossiê especial. Feita nova versão em 3.02.2007, reduzida a 12.500 caracteres, com espaço (5 p.). Publicado: Banco de Idéias (Rio de Janeiro: Instituto Liberal; ano X, n. 38, mar-abr-mai 2007, p. 7-15; disponível no site pessoal: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1699DiplomGovLulaBalanPersp.pdf). Versão completa jamais publicada.


Ou seja, tive de praticamente cortar pela metade o texto e ele, provavelmente, teve escassa audiência fora de um público restrito.
Por acaso "cai" nesse registro hoje, ao procurar outra coisa.
Talvez fosse o caso de ler o texto hoje, com os olhos do segundo mandato, e avaliar se o que escrevi sobre o primeiro mandato e o que eu previa para o segundo se sustentam...
Com vocês...



A diplomacia do governo Lula: balanço e perspectivas (2003-2006)

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em Ciências Sociais. Diplomata.
(Inédito: 11 de dezembro de 2006)
Versão resumida a 5 p., publicada in:
Banco de Idéias (Rio de Janeiro: Instituto Liberal; ano X, n. 38, mar-mai 2007, p. 7-15).

Passados quatro anos de implementação da diplomacia do primeiro mandato do governo Luis Inácio Lula da Silva (2003-2006) e preparando-se o presidente reeleito para mais quatro anos de mandato (2007-2010) – que promete, na área externa, uma reafirmação das mesmas linhas desenvolvidas no primeiro período –, que balanço poderia ser feito de sua política internacional, tanto nas concepções doutrinárias e nas orientações políticas, como em seus resultados efetivos, e que perspectivas podem ser vislumbradas no horizonte previsível? O presente trabalho, de natureza mais expositiva do que propriamente interpretativa, pretende fazer uma apresentação das posições de política externa do primeiro governo Lula, oferecer, em seguida, um pequeno balanço desse primeiro mandato, com uma avaliação dos resultados alcançados a partir dos objetivos proclamados, e discutir, finalmente, eventuais perspectivas para o segundo mandato, numa espécie de antecipação analítica a partir das intenções declaradas e das limitações previsíveis colocadas a um país intermediário como o Brasil.
Uma primeira observação, quanto ao conteúdo ou a função que a política externa parece desempenhar no governo do Partido dos Trabalhadores (PT), pode ser feita em relação, justamente, à “ideologia da política externa” neste governo, o que tem a ver com o papel da diplomacia no processo de desenvolvimento do Brasil. Para o PT, e em grande medida para os formuladores e executores da atual política externa, esta deve fazer parte de um “projeto nacional”, do qual ela constituiria uma espécie de alavanca fundamental do processo de desenvolvimento, que deveria ser marcado pela integração soberana na economia internacional e pela mudança nas “relações de força” do mundo atual. Esta idéia está expressa em várias declarações do próprio presidente e de seus auxiliares diplomáticos e tem sido traduzida em conceitos como o “reforço do multilateralismo” – em oposição ao que seria o unilateralismo da potência hegemônica – ou a “mudança na geografia comercial mundial”, o que evidenciaria o desejo manifesto de uma união dos países em desenvolvimento para negociar, em melhores condições políticas, uma alteração no padrão de trocas prevalecente, hoje considerado desigual, com base nas atuais regras de política comercial e de acesso a mercados, notadamente no que se refere ao protecionismo e às subvenções agrícolas à produção e às exportações.
Dois princípios estão explicitamente presentes na política externa do governo Lula, eles se traduzem nas duas grandes linhas de ação que moldaram a diplomacia do primeiro mandato e prometem continuar conduzindo a ação externa no novo período. Eles estão consubstanciados em dois objetivos proclamados de forma reiterada, que são ao mesmo tempo ambiciosos e contraditórios entre si: a chamada “presença soberana no mundo” e a “forte integração continental”. Parece evidente, a qualquer observador mais atento, que a busca de maior integração regional contrapõe-se, na prática, à preservação da soberania nacional, uma vez que aquela implica, ipso facto, a diminuição desta, dado que porções maiores da autonomia decisória interna – em políticas setoriais, como, por exemplo, comercial, agrícola ou industrial, ou, a fortiori, no terreno das políticas macroeconômicas, a cambial, entre outras – têm necessariamente de ser transferidas para o plano da coordenação intergovernamental, em detrimento de escolhas puramente nacionais.

1. Política externa: o que se pretendia no início do mandato?
Em seu discurso inaugural, pronunciado no Congresso nacional em 1º de janeiro de 2003, o presidente Lula expunha seus grandes objetivos políticos da seguinte forma: “…trabalharemos para superar nossas vulnerabilidades atuais e criar condições macroeconômicas favoráveis à retomada do crescimento sustentado para a qual a estabilidade e a gestão responsável das finanças públicas são valores essenciais. Para avançar nessa direção, além de travar combate implacável à inflação, precisaremos exportar mais, agregando valor aos nossos produtos e atuando, com energia e criatividade, nos solos internacionais do comércio globalizado.”
No que se refere especificamente à política externa, ele começava por objetivos vagos e consensuais – No meu governo, a ação diplomática do Brasil estará orientada por uma perspectiva humanista e será, antes de tudo, um instrumento do desenvolvimento nacional. Por meio do comércio exterior, da capacitação de tecnologias avançadas, e da busca de investimentos produtivos, o relacionamento externo do Brasil deverá contribuir para a melhoria das condições de vida da mulher e do homem brasileiros, elevando os níveis de renda e gerando empregos dignos.– para emendar logo em seguida, de maneira mais afirmada: As negociações comerciais são hoje de importância vital. Em relação à Alca, nos entendimentos entre o Mercosul e a União Européia, na Organização Mundial do Comércio, o Brasil combaterá o protecionismo (...) e tratará de obter regras mais justas e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento. Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam os nossos produtores privando-os de suas vantagens comparativas.” Mas, consoante as teses soberanistas do PT, ele alertava contra qualquer cessão de soberania na chamada questão dos espaços para políticas nacionais de desenvolvimento: “Estaremos atentos também para que essas negociações, que hoje em dia vão muito além de meras reduções tarifárias e englobam um amplo espectro normativo, não criem restrições inaceitáveis ao direito soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento.”
Explicitando, então, o seu grande objetivo de política externa, o presidente enfatizava que a grande prioridade da política externa durante o meu governo será a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social.” Para isso ele pretendia engajar uma “uma ação decidida de revitalização do Mercosul”, uma vez que este teria sido “enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração”. Não contente em reforçar a integração da América do Sul, o projeto do presidente buscava também ampliar o processo em suas “dimensões social, cultural e científico-tecnológica”, por meio de “empreendimentos conjuntos” e de um “vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos.”
No seguimento se insinuava o projeto nunca explicitado de uma liderança brasileira na região: “Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações difíceis. Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país.” Essa intenção, aliás, deveria ir além do próprio continente sul-americano: “O mesmo empenho de cooperação concreta e de diálogos substantivos teremos com todos os países da América Latina.” Observe-se, a propósito, que as relações com o principal parceiro hemisférico eram colocadas sob o domínio de um verbo condicional, ao passo que as relações com a Europa e outras regiões recebiam conotação mais afirmativa: “Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Européia e os seus Estados-Membros, bem como com outros importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão.”
A opção preferencial por “aliados estratégicos” – “Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outros” – e os grandes objetivos da diplomacia sul-sul – “Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades” – já estavam colocados de maneira explícita, aliás, desde antes do discurso inaugural. Da mesma forma, a afirmação do multilateralismo – “Vamos valorizar as organizações multilaterais, em especial as Nações Unidas, a quem cabe a primazia na preservação da paz e da segurança internacionais.” – e a recusa do hegemonismo vinham lado a lado, em moldes seguidos tradicionalmente pelo Itamaraty: “A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado”.
Finalmente, o que viria a converter-se no grande objetivo da política externa de Lula, ou seja, a conquista de uma vaga permanente no CSNU, aparecia de maneira não totalmente explícita no discurso inaugural: “Defenderemos um Conselho de Segurança reformado, representativo da realidade contemporânea com países desenvolvidos e em desenvolvimento das várias regiões do mundo entre os seus membros permanentes”. Em suma, as linhas básicas da política externa do governo Lula combinavam os princípios tradicionais da diplomacia do Itamaraty com algumas inovações conceituais e novas ênfases nas alianças preferenciais que seriam seguidas de modo relativamente consistente, como agora se verá.

2. Diplomacia do primeiro mandato: o que foi alcançado?

O que agora poderia ser dito dos grandes objetivos do governo Lula em matéria de política externa, e quais são, nos quatro primeiros anos de intensa presença no cenário internacional, os resultados práticos daquilo que foi chamado pelo chanceler Celso Amorim de “diplomacia altiva e ativa”? Um balanço concreto da política externa do governo Lula deve, antes de mais nada, deixar de lado as declarações de intenção para avaliar os resultados efetivos dessa diplomacia, tal como implementada nos últimos quatro anos. Para essa finalidade, os seguintes temas foram considerados como relevantes: Conselho de Segurança da ONU; alianças com parceiros estratégicos; situação do Mercosul; relações com a Argentina; liderança do Brasil na América do Sul e bloco político regional; OMC e negociações comerciais multilaterais e regionais; relações com China, Rússia e o papel internacional do Brasil. É em torno desses pontos que será organizado este pequeno balanço.

2.1. Conselho de Segurança da ONU
Trata-se de tema caro ao ministro Celso Amorim, que trabalhou durante muito tempo em assuntos multilaterais e em questões de segurança internacional e que encontrou a simpatia e o interesse do presidente e de amplos setores na própria diplomacia, nas forças armadas e nos grupos de apoio dentro e fora do PT. A questão é notoriamente difícil e em torno dela a diplomacia brasileira engajou recursos consideráveis num vasto programa de lobby junto aos mais diferentes países. O próprio acolhimento do presidente Lula, por interlocutores do G-7 e pela imprensa internacional, como grande líder de estatura mundial, reforçou a idéia de que a conquista da cadeira permanente seria factível, mesmo tendo em conta a oposição de poderosos vizinhos regionais (Argentina e México, sobretudo). A iniciativa se desenvolveu em diversos formatos e em diversas frentes, envolvendo, inclusive, o perdão de dívidas bilaterais de países pobres e a constituição de um grupo especial – o G-4 – interessado na reforma da Carta da ONU e na elevação dos países integrantes (Alemanha, Brasil, Índia e Japão) ao CSNU; mas ela foi obstaculizada pela má vontade de alguns integrantes do atual Conselho – China e EUA, em especial – e por divergências de âmbito regional, entre elas a posição irrealista da União Africana.
Foi em grande medida em função dessa aspiração que o Brasil tomou a iniciativa de liderar o contingente das Nações Unidas na missão de estabilização política do Haiti, tarefa que ultrapassa os limitados meios materiais do Brasil, uma vez que envolve objetivos de nation-building, mais até do que de missão de paz. O tema da reforma da Carta da ONU e da assunção do Brasil a uma cadeira permanente em seu CS continua na agenda da diplomacia brasileira como de alta prioridade, mas não parece haver chances de que ele venha a ser encaminhado, satisfatoriamente, no futuro imediato.

2.2. Alianças com parceiros estratégicos (Argentina, China, Índia, África do Sul)
A diplomacia de Lula acredita que países como Brasil, Argentina, China, África do Sul e Índia não só partilham valores e objetivos comuns no sistema internacional, como apresentam características sociais e econômicas relativamente similares a ponto de justificar um esforço de cooperação. O G-3, por exemplo, foi apresentado como uma demonstração da criatividade e da capacidade de iniciativa da diplomacia brasileira no sentido de buscar uma coordenação política com os dois últimos parceiros em temas da agenda multilateral, bem como com vista a intensificar a cooperação trilateral, nos mais diferentes campos de interesse conjunto. A Argentina deveria ser o grande parceiro na construção de um sistema sul-americano de cooperação e de integração, a partir do reforço do Mercosul, que consolidaria a região como o grande vetor de projeção dos interesses brasileiros num espaço econômico integrado. A China, por sua vez, parecia ser o parceiro por excelência na reformulação das relações econômicas internacionais, no sentido da afirmação do multilateralismo e da diminuição do unilateralismo imperial. Na prática, a despeito de alguns resultados concretos na ampliação da cooperação, poucos sucessos efetivos puderam ser registrados a partir dessas alianças previamente definidas com base em critérios pouco claros de proximidade política ou econômica.

2.3. Reforço do Mercosul e ampliação das oportunidades econômicas na região
A “reestruturação”, o reforço institucional e a ampliação do Mercosul constavam explicitamente do “cardápio” diplomático do governo Lula, que anunciou, previamente, sua dedicação prioritária à agenda da integração regional. De fato, os “investimentos” nessa área foram consideráveis, inclusive no sentido de aceitar, parcialmente, diversas restrições ao livre-comércio bilateral ou regional que a Argentina, menos capacitada industrialmente, pretendeu – e, em grande medida, conseguiu – impor ao Brasil. Ainda assim, o Mercosul não se encontra em melhor situação do que aquela deixada pela administração anterior e algumas realizações apresentadas como avanços – como o Parlamento ou Fundo de Correção de Assimetrias – podem, na verdade, travar ainda mais o itinerário do bloco no caminho de sua unificação econômica e comercial (pelo estímulo à busca de vantagens setoriais ou uniformização de regras em áreas que seriam melhor atendidas pelo princípio da concorrência aberta). No campo da “ampliação” do Mercosul, parecia claro, desde o início, que o Chile não pretendia – nem poderia, por diferenças de estrutura tarifária – ingressar de modo pleno no bloco, mas ainda assim o anúncio de seu acordo de livre-comércio com os EUA causou insatisfação visível ao Palácio do Planalto. O “ingresso pleno” da Venezuela, decidido politicamente, mais do que com base em um cumprimento estrito dos requisitos comerciais de incorporação às normas comuns da união aduaneira, foi por sua vez apresentado como um importante reforço dos mercados sub-regionais, com um componente energético considerável, mas teme-se que a contrapartida seja a incorporação de uma agenda política venezuelana que não se coaduna com os interesses diplomáticos de seus outros membros.

2.4. Relações com a Argentina
Relação sempre sensível, mas extremamente relevante no conjunto das relações bilaterais do Brasil, a interação com a Argentina padeceu, a despeito de um máximo de empenho e boa-vontade demonstrados desde antes da posse pelos novos responsáveis políticos brasileiros, de certa deterioração prática, em grande medida determinada pela difícil situação econômica atravessada pelo país platino nos dois primeiros anos da administração Nestor Kirchner. Cautelosas, por medo de alguma “contaminação” nos mercados financeiros e nas agências de avaliação de risco, em relação à queda de braço promovida com os credores privados e o verdadeiro enfrentamento mantido com o FMI, as autoridades econômicas brasileiras foram bem mais realistas na condução da agenda bilateral e na dos negócios com a Argentina do que seus colegas diplomatas, mais dispostos a praticar aquilo que foi chamado de “diplomacia da generosidade”, ou seja, alguma leniência com as restrições comerciais unilaterais e uma predisposição de princípio a acomodar certas perdas imediatas – como a exportação de algumas linhas de manufaturados – para garantir as boas relações no médio e no longo prazo. Essas relações também foram parcialmente afetadas pela personalidade algo particular do presidente Kirchner, cujo comportamento pessoal esteve na origem do afastamento da Argentina de algumas reuniões regionais – foi o caso, por exemplo, do encontro do Grupo do Rio, no Rio de Janeiro, e da reunião constitutiva da Comunidade Sul-Americana de Nações, no Peru – ou multilaterais – como a conferência com os países árabes em Brasília ou, ainda, de reuniões que interessavam o próprio Mercosul. A difícil aceitação, pelo Brasil, de um sistema automático de salvaguardas comerciais bilaterais, em clara contradição com o espírito e a letra dos compromissos firmados no âmbito do Mercosul, também contribuiu para certa tensão nas relações entre os dois grandes sócios do bloco, que por outro lado sofreu os efeitos de insatisfações manifestadas pelos dois sócios menores (como o conflito das “papeleiras” entre a Argentina e o Uruguai).

2.5. Liderança do Brasil na América do Sul e formação de um bloco político regional
O conceito de “liderança regional” sempre foi uma espécie de tabu na história das relações com os demais vizinhos geográficos, daí porque a diplomacia profissional jamais inscreveu essa palavra em qualquer texto que tivesse a ver com nossas relações regionais. A nova liderança política, aparentemente, acreditou que estava na hora de o Brasil assumir uma postura mais afirmativa, inclusive num sentido positivo, de estender financiamentos oficiais para certos projetos de interesse integracionista e, também, em um sentido certamente mais controverso, o de unificar as posições negociadoras dos países da região em determinados foros comerciais – era o caso da Alca, por exemplo, mas o mesmo poderia ser aplicado à Rodada Doha, da OMC – para reforçar as demandas próprias e obter melhores condições de “barganha”. Tratava-se, igualmente, de superar a fase puramente técnica de concepção e implementação de grandes projetos de integração física em escala sul-americana – que eram conduzidos com a assessoria do INTAL-BID no quadro da IIRSA, iniciativa de integração regional sul-americana – para inaugurar um projeto considerado como prioritário pela atual diplomacia brasileira: a criação da chamada Casa, ou Comunidade Sul-Americana de Nações, que deveria administrar, politicamente, a rede de acordos de liberalização comercial próprios à região e os novos projetos de integração física regional. O fato é que a “liderança brasileira” enfrentou resistências ou indiferença, inclusive por uma questão de escassez de meios efetivos à disposição para o seu exercício. Aliás, um dos vetores políticos para a coordenação de posições negociadoras, a recusa da Alca tal como proposta nos moldes americanos, não encontrou consenso mesmo entre associados ou membros do Mercosul, já que alguns deles concretizaram ou esperam conseguir acordos de acesso ao mercado dos EUA em bases puramente bilaterais, mas num padrão que não difere muito das condições de acesso oferecidas pelos EUA no âmbito da Alca.
No que se refere a esta última, Brasil e EUA compartilham responsabilidades pelo bloqueio do processo negociador, ambos por dificuldades internas ligadas a setores temerosos de uma abertura indiscriminada a concorrentes mais competitivos no outro país. Era evidente, por outro lado, que a oposição essencialmente política à Alca, nas bases sociais e nos grupos de apoio ao governo brasileiro, conduziria o projeto de interesse preeminente dos EUA à implosão, como ocorreu efetivamente na cúpula hemisférica de Mar del Plata – novembro de 2005 –, para alegria desses setores e a satisfação de alguns dirigentes da região (entre eles, os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e o anfitrião Kirchner). Esse mesmo movimento, no entanto, reforçou a caminhada dos países, individualmente, em direção de acordos bilaterais com os EUA, retirando, potencialmente, mercados do Brasil, direta ou indiretamente.

2.6. OMC, Rodada Doha e negociações comerciais multilaterais e regionais
A conquista de acesso a novos mercados externos e a preferência pelos foros multilaterais de negociações comerciais são duas áreas nas quais o Itamaraty, por reconhecida competência e presença física, sempre exerceu uma espécie de “liderança hegemônica” ao seio da administração brasileira, determinando posições e conduzindo, efetivamente, o processo negociador, segundo uma visão própria do chamado interesse nacional. No governo Lula, a ação da diplomacia, nesses vetores, correspondeu bastante bem à visão que o partido dominante político mantinha sobre as relações econômicas internacionais, com a defesa de uma função estratégica de suporte da diplomacia ao projeto nacional de desenvolvimento, garantindo a liberdade de serem preservados espaços normativos para o estabelecimento de políticas setoriais nacionais, não limitadas, portanto, por regras multilaterais mais intrusivas do que as atualmente já existentes para investimentos, propriedade intelectual ou serviços. Nesse sentido, a formação do G-20, na reunião ministerial de Cancún (setembro de 2003), da OMC, e sua atuação visivelmente ativa em reuniões posteriores da Rodada Doha, foram apresentados como um sucesso político em termos de organização “alternativa” – e criativa – para as difíceis negociações agrícolas. Entretanto, uma das limitações do G-20 é que ele pode tornar as posições do Brasil tão defensivas quanto são as de China e da Índia, em matéria de subsídios e protecionismo setorial, e muito restritivas, em algumas áreas da indústria (NAMA) e dos serviços. No plano interno, por outro lado, as posições negociadoras mais rígidas do Itamaraty produziram vários choques com os ministérios da Fazenda, o MDIC e a Agricultura, embora resolvidos com ganhos pelo primeiro, a partir do aval do presidente a essas posições.
Já no âmbito das negociações comerciais birregionais, entre o Mercosul e a União Européia, houve, no começo, certa ilusão de que um acordo mais limitado poderia trazer maiores vantagens ao Brasil e ao Mercosul, ademais da idéia, também equivocada, de que a UE, por ser um espaço de integração com “preocupações sociais” e políticas de “correção de assimetrias regionais”, seria bem mais generosa com o Mercosul do que uma Alca “imperial”. Na verdade, os europeus se mostraram muito mais protecionistas do que os EUA em matéria de agricultura, ainda que menos ambiciosos em outras vertentes negociadoras, além do fato de que, uma vez a Alca emperrada, diminuiriam os incentivos para se obter um acordo equilibrado.
Por fim, a noção de que o Brasil, ao diversificar mercados e buscar novos parceiros comerciais no eixo Sul-Sul, estaria operando, literalmente, uma “mudança na geografia comercial do mundo”, parece ignorar o fato de que essa “nova geografia” do comércio internacional já existe há muito tempo e ela se traduz em exportações maciças das economias dinâmicas dos países asiáticos para os mercados do Norte desenvolvido.

2.7. Relações com China, Rússia e presença política mundial
A China tinha sido designada como “aliada” ou “parceiro estratégico” preventivamente, antes mesmo da assunção do novo governo, e de forma unilateral; uma vez constituída a nova administração, apostas foram feitas, sobre compras ampliadas a fornecedores brasileiros, sobre cooperação tecnológica e na atração de investimentos chineses em infra-estrutura no Brasil. Considerou-se, inclusive, que a China atuaria no sentido de mudar as “relações de força” existentes no mundo e de diminuir o grau de “hegemonismo” presente no cenário internacional. Por um momento também foi considerada a hipótese de um acordo comercial entre o Mercosul e a China, tema posteriormente colocado de lado, à medida que as reais dimensões da relação econômico-comercial, necessariamente mais modestas, eram postas em evidência.
Da mesma forma, mas com objetivos mais políticos do que econômicos, houve uma aproximação “estratégica” com a Rússia, sempre com a intenção de contribuir para a redução dos espaços abertos ao “arbítrio unilateralista”, assim como com a França e a Alemanha, por ocasião dos debates em torno de uma resolução do CSNU sobre o Iraque. A conferência entre países árabes e da América do Sul foi organizada tanto visando objetivos econômico-comerciais como com a finalidade de realçar a presença política do Brasil na região, agenda confirmada pela decisão de instalar uma representação diplomática brasileira junto à Autoridade Nacional Palestina, em Ramalah. As várias viagens presidenciais à África responderam tanto ao desejo internamente motivado de reforçar os elementos afro-brasileiros na arena diplomática do Brasil, quanto à busca de apoios para o pleito ao CSNU e de novos mercados para produtos brasileiros.
De fato, o Brasil tornou-se um interlocutor mundial em várias instâncias e foros, como o G-8, por exemplo, ou a comunidade do Fórum Econômico Mundial, em Davos, ainda que essa agenda não contasse com pleno apoio em determinados setores da comunidade de sustentação política do governo. Ocorreu, por outro lado, uma maior interferência de ONGs claramente identificadas com posições ditas alternativas em matéria de meio ambiente ou de negociações agrícolas na formulação de posições externas do Brasil ou, até mesmo, na orientação da agenda diplomática, o que de certa forma reflete as posições de componentes do governo em relação aos temas da globalização e as relações desses líderes políticos com o temário do Fórum Social Mundial. No plano conceitual, se assistiu, inclusive, à tentativa de oferecer uma alternativa ao chamado “Consenso de Washington”, mediante a elaboração, com a Argentina, e seu posterior oferecimento ao resto do continente, de um “Consenso de Buenos Aires”, documento analítico e propositivo colocando grande ênfase nos temas sociais, por oposição ao que seria o conjunto de regras puramente econômicas e ditas “neoliberais” do primeiro “Consenso”.
Como repetido diversas vezes pelo próprio presidente Lula, o Brasil não mais pediria “licença a ninguém para ocupar seu lugar no mundo”, confirmando a vocação eminentemente participativa da nova diplomacia. Ela foi traduzida em várias iniciativas de caráter multilateral, nas quais o Brasil sempre explicitou sua posição em favor de maior democracia nas relações internacionais e de uma mudança fundamental no tratamento concedido aos países mais pobres. Um bom exemplo dessa atitude foi a proposição de uma “iniciativa mundial contra a fome e a pobreza”, concebida como um novo programa de trabalho das Nações Unidas.
De fato, o que seria um prolongamento universal do programa “Fome Zero” do governo Lula, converteu-se, pela capacidade de mobilização da diplomacia brasileira, em tema da agenda internacional, tendo recebido o apoio explícito de vários países – França, Chile, Espanha, entre outros – mas não se traduziu na grande campanha mundial que talvez fosse esperada pelo presidente brasileiro. Em lugar da canalização de grandes receitas financeiras com uma taxa mundial sobre movimentação de capitais, como era a proposta de muitas ONGs envolvidas com o projeto, os patrocinadores exploraram diversas fontes alternativas de recursos, entre elas um tributo adicional, de aplicação nacional e em caráter voluntário, sobre passagens aéreas internacionais. Esses recursos devem financiar uma central de compras de medicamentos anti-Aids para países pobres. Entre outros problemas, a iniciativa duplica esforços já existentes em outros programas multilaterais sobre alimentos ou combate a doenças contagiosas, mas não deixa dúvida quanto ao novo espírito de solidariedade universal que passou a animar a diplomacia brasileira. Como explicitado várias vezes pelo chanceler Amorim, o Brasil escolheu não ser indiferente à sorte de vários países ainda mais pobres do que o próprio país.

3. Quais são as perspectivas para o segundo mandato: more of the same?

Quais seriam, finalmente, as novas perspectivas da política externa no segundo mandato do presidente Lula: teremos elementos inovadores ou se assistirá a uma mera repetição do que já vem sendo feito? A julgar pelo que foi proclamado durante a campanha eleitoral de 2006, o mais provável é que se assista a mais do mesmo. Vejamos, em primeiro lugar, o que dizia o documento de campanha elaborado pelo PT, a partir da coordenação política do próprio assessor de relações internacionais do governo, professor Marco Aurélio Garcia, que muitas vezes foi apresentado como uma das cabeças da política externa do governo.
O documento, divulgado no site da campanha em meados de agosto de 2006, começava por repetir a velha intenção de defender para o Brasil uma “inserção soberana no mundo”. De forma extremamente (talvez deliberadamente) vaga, a intenção repetia objetivos do passado, mas agora com a assunção declarada da candidatura à cadeira permanente no CSNU: “O Brasil acentuará sua presença soberana no mundo. Lutará nos foros internacionais pelo multilateralismo, contribuindo para a reforma das Nações Unidas e de seu Conselho de Segurança, onde reivindica uma vaga permanente.” Da mesma forma, o documento mantinha a mesma ambigüidade entre a inserção no mundo globalizado de Davos e a demanda pelo caminho alternativo típico do Fórum Social Mundial: “Manterá suas iniciativas em favor de ordem econômica, financeira e comercial mais justa que beneficie países pobres, e em desenvolvimento, ao mesmo tempo em que reduz as atuais assimetrias mundiais”.
A terminologia típica do multilateralismo do Itamaraty se insinuava no mesmo documento: O Brasil continuará empenhado em sua luta contra a fome e pela paz. Defenderá um relacionamento entre as nações baseado nos princípios de respeito à soberania nacional, de não agressão e de não ingerência nos assuntos internos de outros estados.” Por outro lado, aparecia, também, a integração regional como prioridade estratégica: “Privilegiará o processo de integração sul-americana – o Mercosul e a Comunidade Sul-americana de Nações...”, para logo em seguida agregar o mesmo elemento da diplomacia sul-sul: “...e fortalecerá as relações Sul-Sul, dando ênfase particular às suas relações com os países do continente africano,...”, mas não deixava de fazer referência aos parceiros mais dinâmicos do sistema mundial: “... ao mesmo tempo em que buscará ampliar seu acesso aos grandes mercados europeu, norte-americano e asiático e manter com os países desenvolvidos um relacionamento positivo e soberano.
Por fim, e isto é verdadeiramente inédito em termos de diplomacia e de postura estratégica, aparecia uma frase relativamente ambígua, mas aparentemente preocupante aos olhos de certos observadores militares. Ela tinha a ver com a defesa e a organização do equipamento militar: Reconstruir a indústria bélica nacional, de forma articulada com os países da América do Sul.” Este objetivo, diga-se de passagem, apresenta alguns elementos de dúvida quanto à sua factibilidade e contrapõe-se, de toda forma, à defesa da soberania no plano mundial e regional. Não houve maior explicitação quanto ao sentido ou significado desse engajamento regionalista na “reconstrução” da indústria bélica nacional, assim como o tema ficou ausente dos debates eleitorais. 

 

4. O debate nacional em torno das opções diplomáticas do governo Lula

Não faltaram críticas às orientações da diplomacia brasileira, geralmente por parte de veículos da imprensa, enfatizando, eles, um suposto caráter ideológico ou “terceiro-mundista” da política externa, o que foi rebatido por seus formuladores e executores. Os meios empresariais, por sua vez, alertaram para o perigo de isolamento econômico e a perda de espaços comerciais na própria região, em vista da ausência de acordos mais consistentes de acesso a novos mercados ou a ampliação dos existentes. Decepções com atitudes políticas de alguns parceiros ditos “estratégicos”, assim como preocupações com o equilíbrio militar na própria região, além de alguns dissabores com vizinhos e aliados no imediato entorno regional – como podem ser os problemas criados a propósito da exploração dos recursos energéticos da Bolívia e da retórica mais agressiva da Venezuela em relação aos EUA –, podem determinar algumas mudanças de ênfase numa segunda fase da atual diplomacia.
No cômputo global, contudo, o presidente Lula demonstra estar bastante satisfeito com os rumos, as orientações e, sobretudo, com as realizações de sua política externa, que ele vê como a mais adequada para a afirmação soberana do Brasil no mundo. Depois de ter criticado o seu antecessor pelo excesso de viagens, ele também parece ter sucumbido a uma “diplomacia presidencial” – embora o conceito não seja utilizado, justamente para evitar aproximações com os métodos utilizados anteriormente – e, de fato, a agenda de viagens ao exterior, bem como as visitas de alto nível recebidas em Brasília, jamais foram tão intensas, em qualquer época da diplomacia brasileira, como nos anos de governo Lula. Aparentemente, pela primeira vez nos registros históricos, o Brasil encontra-se adimplente em suas contribuições para a maior parte dos organismos internacionais, o que também demonstra o alto apreço do presidente pelo trabalho do Itamaraty e, obviamente, um cálculo político novamente vinculado à candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no CSNU.
De forma geral, a atual política externa parece gozar de amplo apoio nos meios acadêmicos e nos setores já adquiridos a uma visão política de esquerda, sendo vista, em contrapartida, com algumas reservas nos meios empresariais e nos grandes veículos de comunicações. De toda forma, os temas diplomáticos nunca estiveram tão presentes nos debates internos, e não apenas nos meios políticos, sendo previsível que eles se continuem em posição de destaque no decorrer do segundo mandato presidencial. A diplomacia brasileira parece, paradoxalmente, ter deixado de gozar o antigo consenso favorável de que desfrutava em épocas anteriores, mesmo no período militar, passando agora a contar com adesões indiscutidas, entre os aliados naturais, e oposições também declaradas por parte dos setores já apontados, que a acusam de ser uma “diplomacia partidária”. Trata-se de um elemento novo no cenário político brasileiro e nos anais da própria diplomacia, uma realidade inédita que talvez se prolongue nos embates políticos dos próximos anos, dentro e fora da Casa de Rio Branco.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11 de dezembro de 2006

Bibliografia seletiva do autor sobre o tema:

Livros:

O Estudo das relações internacionais do Brasil: um diálogo entre a diplomacia e a academia (Brasília: LGE, 2006).

Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (2ª edição; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004; 1ª edição: 1998).

Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Paz e Terra, 2001).

O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999).

Artigos:

“Uma nova ‘arquitetura’ diplomática?: interpretações divergentes sobre a política externa do Governo Lula (2003-2006)”, Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: IBRI: ano 49, nº 1, 2006, p. 95-116).

“A política internacional do PT e a Diplomacia do Governo Lula”, in Guilhon de Albuquerque, J.A.; Seitenfus, R.; Nabuco de Castro, S.H. (orgs.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (2ª ed.; Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2006; 1º vol.; p. 537-559).

 “Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula”, Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: v. 47, nº 1, 2004, p. 162-184).

“A política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula”, Sociologia e Política (Curitiba: UFPR, nº 20, 2003, p. 87-102).

A frase da semana (e o texto que a contem) - Reinaldo Azevedo

Já escrevi alguma coisa sobre as mesmas coisas, sobretudo sobre o marxismo e o socialismo, em torno dos quais construí meu livro: Velhos e Novos Manifestos: o socialismo na era da globalização (1999).
Por isso mesmo retive uma frase que eu devo ter expresso sob outras formas, mas que condensa uma realidade tão patente, que eu me pergunto ainda como tantos acadêmicos alienados conseguem levar a sério propostas que pareciam razoáveis um século atrás, mas que se tornaram sandices sem tamanho em nossos tempos.
Minha frase da semana é esta aqui:


O velho marxismo morreu de falência múltipla dos órgãos. A sua realização prática eram as economias planificadas, que não resistiram à globalização — descrita ou antevista, como queiram, pelo próprio Marx no “Manifesto Comunista”.
Reinaldo Azevedo.


Creio, contudo, que vale a pena ler o texto original de onde ela foi retirada. Figura abaixo a íntegra do texto.
Paulo Roberto de Almeida 



Reinaldo Azevedo, 
20/05/2012 12:09:25

Leiam este texto. Volto depois.
*
O marxismo é uma variante da preguiça. Se você acredita que a base material condiciona mudanças na cultura, na forma de pensar e nas relações intersubjetivas, basta fazer como os romanos do poema “À Espera dos Bárbaros”, de Kafávis: sentar na calçada e esperar a banda passar. E há os que resolveram acelerar a história para que o inexorável chegasse antes: Lênin, Stálin, Mao, Pol Pot. O resultado se mede em crânios.
O truque da chamada Escola de Frankfurt — de que Habermas é caudatário, embora infinitamente mais chato porque escreve mal — já é mais divertido do que o marxismo clássico. O que em um é consequência vira, no outro, causa, e a cultura é vista como o motor das mudanças materiais. É uma bobagem que alimenta intelectuais cuja profissão é contestar o regime — que lhes garante a liberdade de contestação. Mas muito influente.
O velho marxismo morreu de falência múltipla dos órgãos. A sua realização prática eram as economias planificadas, que não resistiram à globalização — descrita ou antevista, como queiram, pelo próprio Marx no “Manifesto Comunista”. Já ali se podia supor que o socialismo buscava represar o mar. O neomarxismo pretendeu fazer a crítica à ortodoxia esquerdista sem ceder à razão burguesa. Deu em quê?
Da maçaroca de esquerdismos não-dogmáticos nasceu uma vulgata virulenta: o pensamento politicamente correto. Tanto se dedicaram os intelectuais da dita nova esquerda à desconstrução do suposto eixo autoritário das democracias burguesas que a política militante degenerou, nos países ricos, no que Robert Hughes chama de “cultura da reclamação” e, nos pobres, de “excluídos militantes”, que rejeitam os valores universais da igualdade e o Estado de Direito. Querem que suas demandas particularistas sejam tratadas como reparação histórica.
Negros, feministas, homossexuais, índios, sem-terra, sem-teto, sem eira nem beira… Todos anseiam que a História seja vivida como culpa, e a desculpa se traduz na concessão de algum privilégio. Isso que já é uma ética coletiva supõe que todos são vítimas de alguém ou de alguma coisa. De quem ou do quê? Ninguém sabe. “Da sociedade” talvez. A hipótese é interessante. Poderíamos zerar a História, dissolver os contratos e voltar ao estado da natureza. O Brasil já tem um novo “negro” ou um novo “índio”: é o macho branco, pobre, heterossexual e católico. É um pobre coitado, um discriminado, um sem-ONG. Nem os padres querem saber dele.
As “minorias” se profissionalizam, e a luta sempre continua. Não temos uma política pública digna desse nome que se ocupe, por exemplo, da qualidade do ensino fundamental e médio, mas se faz, com cotas e ProUni, suposta justiça social na universidade, onde o único critério cabível de seleção é o saber — que mascararia as diferenças de classe e traria consigo um contencioso de injustiças históricas. Eis o desastre: competência e justiça, nesse raciocínio perturbado, passam a se opor, viram uma disjuntiva. Nas TVs, e até nos cadernos de cultura dos jornais, “manos” do rap e “MCs” fazem-se porta-vozes de uma nova metafísica, oposta àquele saber universal, formalista e reacionário. Padre Pinto é o santo padroeiro dessa guerra à ortodoxia.
Igualdade? Justiça? Reparação? Nada disso. Consolida-se é o divórcio entre os partidários desse igualitarismo — que, de fato, é um particularismo que corrói as bases do Estado de Direito — e os da universalidade. O “novo homem” do antigo marxismo — que era, sim, uma utopia liberticida e homicida — foi substituído pelos bárbaros, cujo mundo ideal é aquele disputado por hordas, tribos, bandos, de que entidades do “terceiro setor” são proxenetas bem remuneradas.
Os tais mercados não dão a menor bola para isso. A plateia que vi mais incomodada e, até certo ponto, indignada com a crítica severa que faço ao PT e a seu viés totalitário era composta de pessoas ligadas ao mercado financeiro. A democracia, como a defendiam os antigos liberais, é a eles irrelevante. Trata-se de dinheiro novo. Assistimos ao casamento entre os hunos e essa gente muito prática. As bodas bárbaras.
*
Voltei
Esse meu texto saiu publicado no dia 3 de junho de 2006 no jornal “O Globo”, de que eu era colunista antes de meu blog se hospedar na VEJA. Está no livro “O País dos Petralhas”, que eu estava folheando nesta madrugada. Na segunda, conto por quê. É provável que muitos dos novos leitores não o conheçam. Poderia ter sido escrito há alguns minutos, não?

Brasil ajuda Coreia do Norte: certo, um pais que precisa...

Pensei que se tratasse de uma ajuda emergencial, por alguma grande catástrofe, algum desastre humanitário, mas parece que não é: se trata de ajuda normal, constante, regular, para países que exibem carências alimentares.
Faz sentido! A Coreia do Norte exibe vários tipos de carências, inclusive a alimentar, que deve ser dramática "a nível de" população. Mas isso ocorre há anos, e não sei se os companheiros refletiram sobre isso: o socialismo, como um todo, é um caso emergencial, de UTI, uma enorme catástrofe humanitária, talvez até civilizacional. Finalmente, os companheiros precisam de aliados, pois nem os socialistas reformistas europeus são tão anti-imperialistas e anti-hegemônicos como deveriam; afinal de contas eles estão na OTAN e continuam a aplicar políticas neoliberais.
Nada como um bom socialismo, puro e duro, sobretudo isso, duro...
Paulo Roberto de Almeida 

Coreia do Sul critica ajuda brasileira a vizinho do norte


Jornal do Brasil, 19/05/2012
O diretor-geral do departamento para a América Latina do Ministério das Relações Exteriores da Coreia do Sul, Jang Keun-ho, criticou a ajuda humanitária que o Brasil vem dando ao seu vizinho do norte. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o diplomata reconheceu que a atitude do Brasil de enviar alimentos à Coreia do Norte é boa, mas pode ter um efeito negativo. 
O governo sul-coreano teme que o vizinho, com quem está tecnicamente em guerra, use as doações para ganhar fôlego e continuar seu programa nuclear.
A Coreia do Norte vive uma crise humanitária, e o Brasil já enviou 16 mil toneladas de alimento ao país, número que deve chegar a 21 mil toneladas nos próximos meses, segundo a Folha de S.Paulo. A Coreia do Norte já enfrentou crises de alimentos, e o governo americano interrompeu a ajuda humanitária ao país depois que o governo lançou um foguete em abril. O temor é que o lançamento tenha sido o teste de um míssil. 
De acordo com a Folha, o Itamaraty afirma que a doação de alimentos é regulamentada por uma lei de junho do ano passado, que prevê a ajuda a países com carências alimentares.
Tags: ajuda, brasil, coreias, crise, nuclear 

sábado, 19 de maio de 2012

As Lei Fundamentais da Estupidez Humana - Carlo M. Cipolla

Uma leitura agradável, mas conclusões e constatações bem menos, aliás definitivamente inquietantes e preocupantes...


As Leis Fundamentais da Estupidez Humana
Paulo Roberto de Almeida

Finalmente, consigo colocar as mãos, ou os olhos mais exatamente, numa tradução mais conforme da famosa obra do historiador econômico Carlo Maria Cipolla. O texto tinha sido publicado em inglês, em edição de autor, de forma limitada, portanto, em 1976, por uma improvável editora chamada Mad Millers (os “moleiros loucos”, o que só pode ter sido uma brincadeira do medievista italiano). Poucos exemplares circularam, e eu só tinha conseguido aceder a uma versão em francês, a partir da primeira edição italiana de 1988, da Il Mulino (o que parece sugerir um complô entre moleiros malucos).
A edição que eu possuía tinha alguns outros textos, e apareceu sob o título de “Allegro Ma Non Troppo” (aliás, transformado em peça de teatro, a que assisti em Paris no século passado (eh oui!). Aparentemente era uma tradução improvisada, tanto que a categoria dos “cretinos”, agora oficializada, aparecia nessa versão como sendo apenas “crédulo”, o que é, digamos, muito generoso, mas não traz a força do atual cretino (nem aliás, o conceito original em inglês de “helpless”). Em todo caso, o livro era este: Allegro ma non troppo: Les lois fondamentales de la stupidité humaine (Paris: Balland 1992); confesso que ainda não consegui reencontrar esse livro em minha biblioteca caótica, para confrontar as duas versões do texto principal, mas prometo fazê-lo, assim que retornar ao Brasil.
Agora, a versão francesa que já vou citar foi feita a partir do original em inglês, The Basic Laws of Human Stupidity, mas o copyright pertence à Società editrice Il Mulino, de Bolonha (aha!, os moleiros malucos sempre aparecem), e o ano indicado é o de 1988. Estranho, ma, cosi è, si vi pare. O copyright da tradução francesa, agora oficial, é de maio de 2012, da grande editora universitária, este que tenho em mãos:

Carlo M. Cipolla:
Les Lois Fondamentales de la Stupidité Humaine
(Traduit de l’Anglais par Laurent Bury; Paris: Presses Universitaires de France, 2012, 72 p.; ISBN: 978-2-13-060701-4; 7 euros).

Mas a edição do Kindle, que acabo de carregar da Amazon (me custou US$ 5,83 e foi recebido em menos de 10 segundos), traz como edição impressa em inglês, da Il Mulino, o ano de 2011 (vá lá entender moleiros malucos), o mesmo para a edição Kindle (cujo ISBN é este: 978-88-15-30700-2). Vou conferir as versões, para poder confrontar linguajar e conceitos, em francês e em inglês, embora os argumentos sejam bem mais importantes do que as palavras usadas.
Creio já ter resumido, em trabalhos anteriores, o essencial do pensamento de Cipolla sobre quão perigosa é nossa existência num planeta que tem uma quantidade fixa, talvez relevante, de pessoas perfeitamente estúpidas. Não vamos nos enganar, os estúpidos não são os incultos – como eu sempre alerto a propósito dos “meus” idiotas – já que pessoas que não tiveram oportunidade de estudar são simplesmente ignorantes, mas podem ser pessoas perfeitamente normais, afáveis e até sensatas (embora sempre propensas a cair no risco de resvalar na idiotice ou na estupidez). Carlo Maria Cipolla é absolutamente categórico: estúpidos podem ser encontrados nos meios universitários, e até mesmo entre os prêmios Nobel (do que não duvido, pois de vez em quando eu ouço besteiras das grossas de um ou outro literato que se mete a falar de economia ou de política).
Talvez eu deva agora simplesmente resumir o “pensamento” – eu até diria o “divertimento” – de Cipolla em torno dessa questão relevante para o futuro da humanidade, e selecionar alguns trechos que mais me impactaram nesta nova versão agora lida e apreciada (como desde o primeiro contato). Somos primos filosóficos, eu e Cipolla, ele bem mais famoso do que eu, obviamente, mas creio que dividimos concepções quase idênticas sobre os perigos que nos rondam, com tantos estúpidos soltos por aí. Em todo caso, já adianto que concordo inteiramente com sua quinta (e derradeira) lei fundamental, que sintetiza o conjunto da análise extremamente rigorosa que ele conduz em seu opúsculo, que alguns chamariam de textículo:
O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo mais perigoso que existe.”

Retomemos, porém, do início, com as cinco leis fundamentais em sua sequência lógica. Cipolla começa dizendo que a humanidade está em estado lamentável, o que, aliás, sempre foi o caso: desde Darwin sabemos que temos origens comuns com seres inferiores do reino animal. Mas os humanos têm de suportar uma dose ainda maior de problemas, cuja fonte é uma categoria especial de sua raça: “Esse grupo é muito mais poderoso do que a Máfia, o complexo militar-industrial ou a internacional comunista; se trata de um grupo desprovido de estatuto, sem estrutura nem constituição, sem chefe nem presidente, que consegue, no entanto, funcionar de maneira perfeitamente coordenada, de tal maneira que a atividade de cada membro contribui para ampliar e tornar mais forte e mais eficaz a de todos os outros.” (p. 13-14).
A primeira lei já é de uma brutalidade desconcertante:
Todos nós subestimamos sempre inevitavelmente o número de indivíduos estúpidos existentes no mundo.
Essa lei parece muito vaga e simplista, mas o fato é que pessoas que julgávamos racionais e inteligentes se revelam espantosamente estúpidas; e, todos os dias, sem esperar, somos assediados, nos lugares e circunstâncias mais imprevistos, por pessoas estúpidas. Vamos fazer alguns testes para saber se é verdade?
A segunda lei, parece incrível, recusa a igualdade fundamental do ser humano:
A probabilidade de que um indivíduo seja estúpido é independente de quaisquer outras características desse mesmo indivíduo.
Cipolla chegou à conclusão, depois de muita pesquisa e estudo, de que existe um número constante e regular de indivíduos estúpidos em toda e qualquer categoria de grupos humanos, ou seja, o mesmo percentual, independentemente de ser grande ou pequeno esse grupo; os estúpidos existem entre trabalhadores manuais e entre universitários, da mesma forma e inapelavelmente.
Como ele diz: “Mais impressionante ainda é o resultado entre os professores. Que a universidade seja grande ou pequena, de prestígio ou obscura, eu constatei que uma mesma fração, constante, era constituída de seres estúpidos. Isto me surpreendeu tanto que eu procurei estender a pesquisa a um grupo especialmente escolhido, uma autêntica elite: os laureados do Prêmio Nobel. O resultado confirmou esse poderio supremo da Natureza: uma mesma proporção de prêmios Nobel era formada de estúpidos.” (p. 23-24). A ideia foi difícil de digerir, reconhece ele, mas os resultados empíricos ofereciam a prova dessa verdade incontornável. “A Segunda Lei é uma lei de ferro, que não admite exceções”.
Cipolla faz então um intervalo técnico para apresentar em forma gráfica suas descobertas, distribuindo a raça humana em quatro grandes categorias em eixos vertical e horizontal, como se faz habitualmente com a pesquisa científica. Na direita superior dos eixos Y e X, com sinais positivos, estão os seres inteligentes; à esquerda deles figuram os cretinos, aqueles que podem fazer o bem aos demais, sem no entanto beneficiar-se disso (mas a situação pode variar, como veremos); abaixo dos inteligentes, situam-se os bandidos, os que buscam seu próprio benefício causando prejuízo aos demais, mas também existem bandidos estúpidos. Finalmente, no canto inferior esquerdo, com dois sinais amplamente negativos, estão os estúpidos, aqueles que causam danos aos demais, sem jamais retirar qualquer benefício para si próprios. Os ganhos e perdas podem, portanto, ser expressos graficamente, e o pesquisador poderá conduzir uma análise de custo-benefício dessas categorias (e como!).
Passemos, portanto, à Terceira Lei Fundamental (que é também, segundo Cipolla, uma regra de ouro):
É estupido aquele que causa danos a um outro indivíduo ou um grupo de indivíduos, ao mesmo tempo em que não retira de sua ação nenhum benefício para si mesmo, podendo inclusive incorrer em prejuízos.
Seres racionais, como eu e você, podemos ficar céticos ante essa lei, mas ela parece confirmada por todas as pesquisas de Cipolla.
O capítulo V do pequeno livro de Cipolla é dedicado a uma questão técnica: a distribuição de frequências, o que dá um triste resultado para os estúpidos. Passons...
O capítulo VI, extremamente curto, trata de uma questão relevante: “Estupidez e Poder”. Estamos falando aqui da condição de todos nós, que podemos ser afetados profundamente pelos estúpidos que ascendem a posições de mando na sociedade. No mundo moderno, os conceitos de casta e classe foram eliminados, a religião tem pouco poder, e assim, no sistema democrático, aquela fração constante e regular de estúpidos pode se encontrar entre aqueles que foram chamados a exercer o poder.
O Capítulo VII, também reduzido, trata da potência da estupidez, o que, mais uma vez, comprova que esse tipo de relação pode contribuir para reforçar os vínculos entre esses indivíduos e as perdas que eles ocasionam; eles geralmente nos surpreendem, ao surgir inopinadamente e cometer seus atos estúpidos; mesmo que tomemos consciência do ataque, não podemos fazer nada, argumenta Cipolla, pois ele é feito de maneira não racional.
Agora chegamos à Quarta Lei Fundamental, que estipula que:
Os não-estúpidos sempre subestimam a potência destruidora dos estúpidos. Em especial os não-estúpidos esquecem sempre que em todos os tempos, em todos os lugares, em quaisquer circunstâncias, tratar ou se associar com pessoas estúpidas se revela ser, inapelavelmente, um erro custoso.
Finalmente, o último capítulo, de macroanálise, chega à Quinta Lei Fundamental:
O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo o mais perigoso.
E o corolário dessa lei é esta aqui:
O  indivíduo estúpido é mais perigoso que o bandido.
Após algumas análises de distribuição, Cipolla reconhece que cretinos inteligentes e bandidos inteligentes podem, eventualmente, causar algum benefício para si mesmos ou até o bem-estar numa dada sociedade, mas jamais isso pode ocorrer com os verdadeiramente estúpidos. Como eles causam perdas para todos, a sociedade se empobrece e é conduzida à ruina.
Resumindo, os países dinâmicos conseguem controlar os seus estúpidos, mantê-los isolados, evitando, assim, males maiores. Mas, nos países menos dinâmicos, a fração de cretinos e bandidos se aproxima do canto inferior esquerdo, o que se revela fatal para a sociedade: “Essa mudança na composição da população não-estúpida reforça inevitavelmente a potência destruidora da fração estúpida e o declínio torna-se inelutável. É o desastre”. (p. 63)
O livro se termina por algumas páginas com gráficos em branco, para que cada leitor possa anotar e classificar os seres humanos com os quais ele tem de tratar.
Eu, sinceramente, me vi tentado a, imediatamente, preencher as seções em branco com alguns nomes daqueles que ascenderam, por assim dizer, a posições de mando e prestígio, mas me contive. Não tanto por falta de tempo, mas por falta de espaço. Eu tenho antes de fazer várias cópias dessas últimas páginas...


Paris, 2396: 20 Maio 2012.

Museus da cidade de Paris: passeios recentes

Carmen Lícia e eu, aproveitando o tempo livre e disponibilidade de agenda, cumprimos nosso dever habitual de turistas culturais: visitar os museus de Paris (e são muitos).
Sexta foi o Cernuschi, de arte oriental, e sábado o da Vie Romantique, na casa que outrora serviu de encontro para namorados famosos da vida intelectual e cultural parisiense do século XIX.
Os resultados estão aqui, no blog de Carmen Lícia: 




Aproveitem...
Paulo Roberto de Almeida 

Kant: de Koenisgsberg ao paraiso - quem nao tem cachorro...

Na companhia de Kant


Paulo Roberto de Almeida 

Eu pretendia visitar o túmulo de Kant em Koenigsberg, atual Kaliningrad, mas resulta que, além de uma simples placa ao lado da Igreja da cidade, não tem absolutamente mais nada do filósofo na cidade, ex-capital da Prússia oriental, atualmente um mero enclave russo, militarizado e sem graça, entre a Polônia e a Lituânia.
Não poderia, de toda forma, entrar no enclave de carro alugado, como era minha intenção: os russos são muito chatos e mantêm aquilo como base militar, com ruas cujos nomes são ainda da era socialista esclerosada.
Enfim, desisti, mas fiquei em boa companhia: do próprio Kant.


Terminei de ler, há mais tempo, mas ainda peguei para revisar, antes de empacotar todos os livros que comprei na Europa, esta pequena obra:
[Pseudo-Kant]:
Histoire Authentique de Mon Voyage au Paradis, par Emmanuel Kant
Traduit de l'Allemand et présenté par Vincent Guillier
(Paris: Éditions de l'Éclat, 2012, 96 p.; ISBN: 978-2-84162-274-0; 7 euros)
Em sua introdução, Lectio Curiosa, o tradutor diz que se trata de uma filosoficção, e explica em que circunstâncias ele veio a encontrar esse livro bizarro, salvo da destruição por bombardeios durante a Segunda Guerra e praticamente escondido, depois, numa biblioteca de Salzburg, onde nem mesmo o bibliotecário conseguia localizá-lo.
A autoria é atribuída ao filósofo alemão pós-kantiano Gustav Teichmüller (1832-1888) e o livro teria sido publicado uma única vez sob o nome de Kant em 1877, na ocasião, ele teria sido considerado por discípulos como sendo autêntico. Não duvido.
E não tenho mesmo por que duvidar do próprio Kant, dadas suas manias transcendentais e metafísicas; acredito que ele seria bem capaz de, em lugar de morrer simplesmente, fazer um breve passeio ao paraíso, onde se encontrou com praticamente todos os filósofos da antiguidade grega -- entre eles o grande Sócrates, o inefável Platão e o insuperável Aristóteles -- e com diversos outros da era medieval, inclusive até mesmo alguns contemporâneos seus, da tradição idealista alemã.
Muitos céticos consideram a obra apócrifa, desde suas primeiras palavras, ou seja, de Kant, ele próprio: 
"Sei que se pensa, aqui e ali, que eu morri de velhice durante o ano de 1804."
Enfim, isso é o que se diz, mas na verdade sua tumba tem estes dizeres: 
Cineres mortales immortalis Kantii
(ou seja: as cinzas mortais do imortal Kant).
Kant argumenta que os rumores sobre sua morte foram grandemente exagerados. Como explica ele mesmo, no preâmbulo, ele sempre tinha cultivado a arte de prolongar a vida, chegando até mesmo a superar suas violentas dores de dentes por meio unicamente da força do espírito. Se por acaso ele não tivesse sido acolhido no céu, ele poderia ter se escondido na terra, ele que tinha sido saudado no mundo como o "Hércules do pensamento".
Na verdade, Kant teve certa dificuldade para entrar no céu, porque S. Pedro objetou a que ele levasse consigo seu criado Lampe, que teve de ficar na porta; desde a entrada, começaram a zombar dele por causa de sua peruca, de seu jeito de andar, e do seu uso frequente de uma tabaqueira.


Independentemente dessas controvérsias sem grande importância do ponto de vista do grande Kant, o fato é que o livro é um passeio filosófico em torno do mundus intelligibilis do grande filósofo alemão, que se vê obrigado a defender o seu sistema de entendimento, seus valores e até seu modo de vida -- regrado, como se sabe -- em face de ataques de gregos e troianos (enfim, não sei se havia troianos no bando de gregos mal-humorados do paraíso, mas tinha gente da Ásia menor, isso tinha).
Ataques por vezes bem dados, e que deixam nosso filósofo quase sem reação, o que resulta em certo empate filosófico. 
Nem tudo foram discordâncias, todavia, e Kant pareceu concordar com Aristipo da Cirenaica quando este afirmou que "a razão e a verdade nunca vão bem com o povo. Sempre se recolhem aplausos quando se afirma uma coisa completamente absurda com ar de aparente certeza e segurança". Também acho...
O grande Protágoras foi exageradamente cruel com o mestre de Konigsberg: 
"Entre nós, caro Kant, nós podemos reconhecer que você usa a sua filosofia crítica como base de um dogmatismo populista. Você continua a jogar areia nos olhos do povo." 
Uau! Kant passou por muitas e boas no paraíso.
Em todo caso, ele não esclarece como veio a sair do paraíso e voltar para a Terra, para publicar seu relato autêntico.
Suas últimas palavras foram:
"Para o público esclarecido, doravante sabedor de tudo, eu escrevi a história autêntica de minha experiência. Meus fiéis detratores preferem as mistificações e as ilusões barulhentas em lugar da beatitude celeste, onde um acordo se estabelece entre a liberdade, a natureza e as leis, sem qualquer desconforto, assim como eu continuo respeitoso das leis da moral. É por isso que, para alcançar a felicidade suprema, é preciso sempre ficar no mundo das aparências."
O pós-escrito do editor, datado de 1877, explica apenas que este era "o último texto das obras completas de Kant, ao que parece, e que possui princípios altamente esclarecedores em torno do mundo da sabedoria."
E ele conclui: 
"É com um verdadeiro sentimento de gratidão que posso editar esta obra nova e surpreendente do sábio de Konigsberg, tremendo em face dos perigos e debates intensos que ele teve de enfrentar, e aos quais seus fiéis discípulos, eu mesmo, pudemos escapar graças à abundância de informações que ele deixou ao seu público de leitores." (p. 93)
Bem, não pude visitar Kant em Koenigsberg, mas fiquei na companhia dele, aqui mesmo em Paris.


Paulo Roberto de Almeida 
Paris, sábado 19 de maio de 2012.

Fracasso da politica educacional dos companheiros...

Registrem que eu disse dos companheiros, não do Governo Lula ou do Governo Dilma, embora as coisas sejam praticamente coincidentes.
Mas acredito que esse fracasso viria mesmo se o governo fosse tucano ou ultra-conservador.
Não há nada que possa ser feito com um MEC que é um dinossauro de ideais fracassadas: com centenas de saúvas freireanas, e com as máfias sindicais de professores isonomistas, pouco preparados, não poderia dar outro resultado, mesmo que o governo fosse bem intencionado, o que obviamente não é o caso.
O governo ajudou, claro, com sua cota imensa de besteirol -- estudos afrobrasileiros e espanhol obrigatórios no fundamental, sociologia e filosofia obrigatórios no médio e um monte de outras bobagens, como os testes e os livros politicamente enviesados -- mas a epidemia é estrutural, sistêmica, duradoura e persistente. Estou sendo otimista claro, pois isso é apenas o que se vê, e a realidade deve ser muito pior, mas muito pior do que somos sequer capazes de imaginar...
O ensino brasileiro vai continuar indo de mau a pior até onde a vista alcança e não há chance de melhorar antes de que uma revolução nas mentalidades ocorra. Como isso tampouco vai ocorrer, só fechando o MEC e criando outras carreiras de professores, bem pagos mas remunerados por desempenho, sem estabilidade e sem isonomia, com uma filosofia de ensino completamente diferente é que as coisas poderiam começar a melhorar (em pelo menos 15 anos de prazo). Como isso não vai ocorrer, obviamente, não há portanto outro destino para a educação brasileira do que a crescente mediocrização.
Paulo Roberto de Almeida 

Os números do ensino médio

Editorial O Estado de S.Paulo, 18 de maio de 2012
Os últimos números do Ministério da Educação (MEC) revelam que, em 2011, o índice de reprovação na rede pública e privada de ensino médio foi de 13,1% - o maior dos últimos 13 anos. Em 2010, foi de 12,5%. Os alunos reprovados não conseguem ler, escrever e calcular com o mínimo de aptidão, tendo ingressado no ensino médio com nível de conhecimento equivalente ao da 5.ª série do ensino fundamental.
O Estado com o maior índice de reprovados foi o Rio Grande do Sul - 20,7% dos alunos. Em segundo lugar aparecem, empatados, Rio de Janeiro e Distrito Federal, com índice de 18,%, seguidos pelo Espírito Santo (18,4%) e Mato Grosso (18,2%). A rede municipal de ensino médio na região urbana de Belém, no Estado do Pará, foi a que apresentou o maior índice de reprovação do País (62,5%), seguida pela rede federal na zona rural de Mato Grosso do Sul (40,3%). No Estado de São Paulo, o índice pulou de 11% para 15,4%, entre 2010 e 2011.
Os Estados com os menores índices de reprovação foram Amazonas (6%), Ceará (6,7%), Santa Catarina (7,5%), Paraíba (7,7%) e Rio Grande do Norte (8%). Os indicadores também mostram que 9,6% dos estudantes da rede pública e privada de ensino médio abandonaram a escola - em 2010, a taxa foi de 10,3%; em 2009, ela foi de 11,5%; e em 2008, de 12,8%.
Já na rede pública e privada de ensino fundamental, o movimento foi inverso ao do ensino médio. Entre 2010 e 2011, a taxa média de reprovação caiu de 10,3% para 9,6% e o índice de abandono diminuiu de 3,1% para 2,8%, no período. Os Estados com os maiores índices de repetência foram Sergipe (19,5%), Bahia (18,5%), Alagoas (15,2%), Rio Grande do Norte (14,9%) e Rondônia (14,2%). Se forem consideradas apenas as escolas públicas, as redes de ensino fundamental da Bahia e Sergipe foram as que registraram os mais altos índices de reprovação do País - 26,6% e 22,5%, respectivamente. Os Estados com as menores taxas foram Mato Grosso (3,6%), Santa Catarina (4,4%), São Paulo (4,9%), Minas Gerais (7,3%) e Goiás (7,6%).
Esses números, que atestam o fracasso da política educacional dos governos Lula e Dilma, foram divulgados na última segunda-feira, pelo site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), vinculado ao MEC. Como não havia nada para comemorar ou para ser explorado politicamente pelo governo na campanha eleitoral deste ano, a divulgação foi feita de maneira muito discreta - evidentemente, para não prejudicar a imagem do ex-ministro Fernando Haddad, candidato à Prefeitura de São Paulo.
Ao depor na Câmara dos Deputados, em 2007, Haddad afirmou que o ensino médio vivia uma "crise aguda" e reconheceu que as políticas até então adotadas pelo governo federal para estimular os governos estaduais a modernizarem o ensino médio não vinham surtindo efeito. Em 2008, quando integrou um grupo interministerial com o então secretário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, ele pediu ao CNE novas diretrizes curriculares para tentar melhorar a qualidade do ensino médio - o mais problemático de todos os ciclos de ensino.
Homologadas no final de março por seu sucessor, essas diretrizes sugerem a adoção de "procedimentos que guardem maior relação com o projeto de vida dos estudantes". A ideia é tornar o ensino médio mais atraente, valorizando a correlação entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Quando as diretrizes foram anunciadas, em meio a mais uma polêmica sobre o desvirtuamento do Exame Nacional do Ensino Médio, por causa das mudanças introduzidas por Haddad nesse mecanismo de avaliação, vários pedagogos afirmaram que elas não eliminarão os gargalos do ensino médio. Para esses pedagogos, as novas diretrizes são mais retóricas do que práticas e estimulam a oferta de um grande número de disciplinas.
As taxas de reprovação e abandono no ensino médio divulgadas pelo Inep são mais um sinal de alerta sobre a má qualidade da educação brasileira. E pelas políticas adotadas até agora, dificilmente esse quadro mudará tão cedo.

Rio Branco et la diplomatie bresilienne - PRAlmeida

Uma conferência, a convite do diretor da Maison de l'Amérique Latine, Alain Rouquié, ex-embaixador da França no Brasil.






Nous avons le plaisir de vous rappeler que le Mardi 22 mai 2012 à 19h00 se tiendra la conférence sur
Rio Branco et la diplomatie brésilienne, hier et aujourd'hui
de Paulo Roberto de Almeida,
diplomate, Professeur de relations internationales
au Centre Universitaire de Brasilia
A l'occasion du centenaire de la mort de
José Maria de Silva Paranhos,
baron de Rio Branco (1845-1912).
La Maison de l'Amérique latine 
217, boulevard Saint Germain
75007 PARIS 

Espionagem da China e paranoia dos EUA:

Os militares têm por obrigação de ser paranoicos, e um tanto quanto exagerados nas ameaças. Do contrário, como assegurar aqueles gordos orçamentos que fazem a alegria de todo mundo, de gregos e goianos? Isso em todos os lugares, em todas as épocas.
Os americanos são especialmente paranoicos; durante anos e décadas, eles se prepararam para um enfrentamento, ainda que virtual, com a URSS, apenas para ver esta implodir em algum momento do climax da competição estratégica. Com a China, se passa mais ou menos a mesma coisa, sendo que a paranoia do balanço estratégico não é justificada (pois a China vai continuar atrás durante décadas), mas a da espionagem é. Os chineses espionam descaradamente o tempo todo, o que é normal sempre quando se está atrás. Aliás, o novo presidente francês, disse, em março último, que "os chineses trapaceiam o tempo todo"... (sorrisos amarelos).
Mas esse tipo de competição, que os obriga a sempre avançar, é bom para os EUA e para o Pentágono, do contrário eles ficariam parados no mesmo lugar, sem grandes progressos tecnológicos. A espionagem chinesa os obriga a avançar cada vez mais no upgrade inventivo.
Bom negócio para todos (assim é, se lhe parece...).
Paulo Roberto de Almeida 

China linked to ‘economic espionage’
By Geoff Dyer in Washington
Financial Times, May 18, 2012

China is the world’s biggest supporter of “economic espionage”, the Pentagon says in its annual report on the Chinese military which also claimed that Beijing’s defence budget is much higher than official numbers. 
Friday’s report said China would continue to be an “aggressive and capable” collector of sensitive US technological information, including that owned by defence-related companies, and represented a “growing and persistent threat to US national security”. 
“Chinese actors are the world’s most active and persistent perpetrators of economic espionage,” the report said. 
The Pentagon report is the latest in a series of blunt warnings from the Obama administration about the growing risks to US interests from Chinese espionage, including from cyberattacks
A November report prepared by US intelligence agencies said that concerted cyber espionage by China and Russia posed “significant and growing threats” to American economic power and national security. 
Given the lack of transparency that has surrounded China’s military build-up, the Pentagon’s annual analysis of Chinese defence spending is a closely watched document, even if some Pentagon critics fear that scaremongering about China is being used to justify parts of the US budget. 
Even by China’s official figures, military spending has increased at double-digit rates during almost every year for the last couple of decades, although as a proportion of overall spending the defence budget has remained relatively constant. 

The Pentagon said China’s actual military spending in 2011 was between $120bn and 180bn. That compares to an official Chinese budget for 2012 of Rmb670.247bn ($110bn), which was 11.2 per cent higher than the year before. 
In 2011, China conducted the first test flight of the J-20 stealth fighter jet, while a refitted aircraft carrier acquired from the Soviets was also launched last year. 
Among new developments in Chinese spending, the Pentagon said there were indications that parts of a locally-made aircraft carrier were already under construction and could be operational by 2015. 
The report said that the J-20 test flight demonstrated China’s ambitions to develop an aircraft that combined “stealth attributes, advanced avionics and super-cruise engines”, making it a potential rival to the Pentagon’s own new generation fighter jet, the F-22 Raptor. A separate US government document published last month quoted US intelligence agencies as predicting the Chinese jets could be operational by 2018. 

The F-22 Raptor suffered a significant blow this week when strict restrictions were placed on their use because of concerns about the safety of pilots from a lack of oxygen. The F-22 has been controversial for years, with powerful critics in Congress claiming that the expensive project was not needed because there is no obvious rival. However, its supporters point to Chinese and Russian efforts to build a new generation of stealth fighter jets. 

Copyright The Financial Times Limited 2012.

Keynesianismo: uma total falta de logica - Gary North

Vale a pena ler este longo artigo, enviado pelo Eduardo Rodrigues, para confirmar o que já sabíamos: um pouco como o socialismo, o keynesianismo dura enquanto durar o dinheiro dos outros. Neste caso, ele dura indefinidamente, enquanto os keynesianos encontrarem uma maneira de "financiamento": mais emissões, mais impostos, mais inflação, mais endividamento, até perder de vista. Mas um dia, isso vem abaixo...
Paulo Roberto de Almeida
Austeridade, otimismo e a dissolução do estado assistencialista keynesiano
por 
Instituto Von Mises Brasil, quarta-feira, 16 de maio de 2012
Os keynesianos e os declaradamente anti-keynesianos se deram as mãos e, atuando em conjunto, passaram a propagandear um erro intensamente keynesiano: falar sobre a "austeridade" fiscal na Europa como sendo um fato negativo.  Um colunista da revista Forbes se referiu à austeridade como sendo uma espiral mortífera.
A palavra "austeridade", que surgiu com a crise da dívida do governo da Grécia dois anos atrás, tem sido utilizada pela mídia como tendo exclusivamente um único sentido: reduções nos gastos dos governos nacionais.  A palavra não é utilizada em relação à economia como um todo.
Mais do que isto: a palavra tem sido utilizada para explicar as contrações nas economias da Europa.  Fala-se que as reduções nos gastos dos governos estão causando a recessão das economias europeias.  Esta explicação é baseada inteiramente nos modelos keynesianos que dominam os livros-textos.
Mas há um problema: não houve reduções nos gastos.  Ao que tudo indica, para a mídia, "austeridade" não significa o mesmo que significa para uma pessoa normal: cortes severos nos gastos governamentais.  Ao que tudo indica, "austeridade" significa não haver absolutamente nenhum corte de gastos.
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Keynesianos sempre defendem aumentos nos gastos do governo.  Este é o âmago do keynesianismo.  O keynesianismo depende inteiramente de um mantra: "Gastos do governo curam recessões".  Todo o resto é periférico: inflação monetária, tributação crescente e livre comércio.  Estas questões periféricas sempre serão sacrificadas em prol da suprema premissa econômica: "Gastos do governo curam recessões."
É deste ponto que qualquer análise do keynesianismo deve partir.  Qualquer doutrina econômica, qualquer política econômica, qualquer solução proposta para a atual crise deve ser avaliada em termos deste mantra.  Qualquer coisa que não comece e não termine com este mantra não é keynesianismo.  Qualquer coisa que o faça, é keynesianismo.
Qualquer ideologia pode se declarar triunfante quando até mesmo seus professos críticos adotam tanto as suas conclusões quanto a sua retórica, e o fazem sem perceber.  Isto significa que os promotores desta ideologia obtiveram êxito total em estipular os termos do debate público.  É muito difícil substituir uma ideologia ou uma visão de mundo quando seus promotores já conseguiram estabelecer os termos do debate.
É algo que pode ser feito, é claro; mas, para fazer isso, os promotores de uma ideologia rival têm de expor não apenas os erros do atual sistema, como também a concordância implícita concedida pelos supostos críticos da ideologia dominante.  Tal postura, é bom deixar claro, não irá lhe garantir novas amizades entre estes infelizes que creem estar obtendo vitórias significativas ao argumentarem apenas contra aspectos periféricos da ideologia inimiga ao mesmo tempo em que aceitam todos os seus pressupostos centrais e todas as suas receitas políticas.  Eles já foram fisgados.
Um exemplo recente de um bem-intencionado, porém conceitualmente confuso anti-keynesiano pode ser conferido em um recente artigo da Forbes.  O título era poderoso: "O keynesianismo é a nova Peste Negra".  Mas o artigo concluía que a grande tragédia da Europa atual é a "austeridade".
Em teoria, a mídia universalmente define austeridade como cortes nos gastos do governo.  Eu nunca vi o termo sendo empregado em qualquer outro sentido.  Qualquer autor que utilizar esta palavra em algum outro sentido tem de explicar aos seus leitores o motivo deste novo significado.  Como o artigo da Forbes não ofereceu nenhuma outra distinção ou alternativa, interpretei o termo ao pé da letra.
Se a austeridade é a grande perversidade do momento, então a implicação é inevitável: aumentar os gastos governamentais e abandonar qualquer austeridade (que nunca houve) é algo positivo.
O mantra austríaco
Os economistas seguidores da Escola Austríaca também têm um mantra: "Menos impostos aumentam a liberdade."  Liberdade é necessária para o crescimento econômico.
Se um governo não puder reduzir impostos sem que isso o leve à falência, então ele tem de cortar gastos caso não queira quebrar.
Os governos europeus estão todos no caminho da falência.  O do Japão também.  O mesmo vale para o dos EUA.  A solução é cortar impostos e cortar gastos ainda mais.
"Nada de mais gastos governamentais.  Menos gastos governamentais!"
"Nada de mais déficits orçamentários.  Menos déficits orçamentários!"
"Nada de mais impostos.  Menos impostos!"
"Nada de mais inflação monetária.  Menos inflação monetária!"
Em suma: "Deixem o povo livre!"
A solução para a recessão europeia não é aumentar os gastos governamentais, e sim o oposto: reduzir os gastos dos governos.  E os impostos.  A solução, portanto, é mais austeridade.
Com isto em mente, examinemos um artigo que argumenta que a austeridade é a maior ameaça para a prosperidade da Europa.
Uma espiral mortífera?
O artigo começa com uma análise da política europeia.  Ele afirma que os eleitores estão desalojando todos os políticos que estão no poder, em todos os países.  Sarkozy foi a oitava baixa ao longo dos últimos doze meses.  Por que isso está acontecendo?  Eis a resposta sugerida:
Os eleitores da Espanha, da Grécia, da França etc. entendem que as elites governamentais empurraram suas economias para espirais mortíferas, e estão expressando este seu descontentamento nas urnas.
A questão mais fundamental, no entanto, é esta: por que estas elites empurraram suas respectivas economias para esta suposta espiral mortífera?  Por que fervorosas elites keynesianas fariam tal coisa?
Não sejamos ingênuos.  O Ocidente tem sido gerido por elites keynesianas, ou por políticos seguidores de ideias keynesianas, desde 1930 — seis anos antes de Keynes oferecer sua ininteligível justificativa para as políticas então adotadas pelos políticos, por meio de seu livro "A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda".
O Banco Central Europeu, seguindo ideias keynesianas, empurrou as economias europeias para um crescimento econômico artificial entre os anos 2001 e 2007.  As economias da periferia da Europa — o chamado "Club Med" — entraram em uma acentuada expansão econômica.  O mesmo ocorreu com o membro honorário do Club Med: a Irlanda.  Os valores dos imóveis na Irlanda quadruplicaram.  Parecia que tudo iria durar para sempre.  As elites — principalmente os economistas — não emitiram nenhum alerta, exceto os economistas seguidores da Escola Austríaca, que, como sempre, foram sumariamente ignorados como se fossem dinossauros.
E então veio a fase da contração econômica.  Tudo o que o Banco Central Europeu havia feito antes de 2007 — inflacionar —, ele passou a fazer ainda mais agressivamente desde 2008.  Os governos europeus incorreram em déficits ainda maiores.  Todos eles implementaram estímulos keynesianos.  Nada funcionou.  A Europa entrou novamente em recessão.
No primeiro semestre de 2010, investidores europeu finalmente se atentaram para o fato de que a população do Club Med não era capaz de concorrer economicamente com o resto da Europa.  Tais países apresentavam seguidos déficits comerciais com o resto da Europa.  Este pessoal calmo e relaxado estava vivendo de dinheiro tomado emprestado junto ao resto da Europa.  Seus respectivos governos faziam o mesmo.  Eles não tinham a intenção de quitar estes empréstimos.
E por que não?  Porque é isto que o keynesianismo ensina.  Empréstimos governamentais não serão pagos.  Nunca.  A dívida governamental irá aumentar continuamente.  E com ela, a prosperidade.
Dois anos atrás, o Partido Socialista da Grécia descobriu a real profundidade do buraco da dívida em que o governo havia se metido.  As taxas de juros então começaram a subir nos países PIIGS.  Estes governos estavam encurralados.  Eles não mais poderiam continuar incorrendo em déficits crescentes, pois o custo dos empréstimos estava aumentando.
E foi aí que a realidade do keynesianismo se manifestou: déficits, ao contrário do que imaginam keynesianos, realmente importam.  Dinheiro não é de graça.  Dívidas devem ser roladas de acordo com os juros de mercado.  O horror!
E foi aí que os governos do sul da Europa começaram a "controlar" um pouco mais os gastos.  Não muito, como se vê no gráfico acima.  Os déficits continuam em níveis inauditos: acima de 6% do PIB.
Os keynesianos rotularam isso de "austeridade".
Mas não é austeridade, é claro.  São déficits orçamentários em escala maciça.  Austeridade é quando os governos incorrem em superávits orçamentários e utilizam as receitas em excesso para pagar a dívida nacional.
Não há austeridade na Europa desde aproximadamente 1914.
O padrão-ouro vigente de 1815 a 1914 impingia austeridade.  Esta era sua principal função e seu maior serviço à humanidade.  Ele obrigava os governos ocidentais a se manterem austeros.  E isto permitiu o setor privado crescer a taxas aceleradas.
Keynesianos odeiam o padrão-ouro porque eles acreditam que gastos governamentais crescentes são o que permitem o aumento dos gastos em consumo; e os gastos em consumo — e não a poupança — são, para os keynesianos, a base da prosperidade.
O público, que prefere o consumismo à austeridade de uma poupança, gosta das políticas do keynesianismo.  Déficits intermináveis, endividamento sem dor, crescimento ininterrupto: os keynesianos prometem, e os eleitores acreditam.
Porém, o dia do acerto de contas chegou em 2010.  O dinheiro gratuito ficou caro.  A festa não acabou, mas alguns dos convidados foram mandados de volta pra casa, onde se juntaram aos jovens adultos que estão sentados no sofá assistindo à televisão, pois não há empregos.
O público se sente traído.  Os eleitores, milhões deles, acreditaram no sonho keynesiano.  Políticos prometeram realizar a façanha de transformar pedras em pães.  Os eleitores aplaudiram.
Mas os tempos mudaram, nos diz o artigo.
Infelizmente para a Europa e para o mundo atual, não há, em todo o continente, candidatos ou partidos em prol do crescimento econômico para oferecer um alívio dos programas de austeridade que estão reduzindo suas economias a pó.  Sem ter ninguém em quem votar, tudo o que o eleitorado europeu tem podido fazer é votar contra.  Eles passaram a explicitar seus protestos derrotando os políticos atualmente no poder.
Os políticos que estavam no poder fizeram promessas excessivas.  Eles há muito vinham dizendo para o eleitorado que déficits não importavam.  Déficits não importavam enquanto os bancos do resto da Europa continuassem emprestando para os PIIGS a taxas de juros de alemãs, cuja população é bem mais frugal.  E então veio a realidade.
A Europa como um todo está em recessão; Grécia, Espanha e Portugal estão em depressão.  O que as pessoas devem fazer se os chefs econômicos tanto à esquerda quanto à direita estão oferecendo o mesmo e venenoso menu de "austeridade"?
Orçamentos equilibrados continuam sendo apenas uma miragem.  Cortes de gastos excessivamente tímidos, que confessadamente têm o objetivo extremamente modesto de reduzir os déficits para altos 3% do PIB em incríveis dez anos, são hoje tidos como "venenoso menu de austeridade".  Colocando em uma terminologia mais familiar, há um excesso de pedras e pouquíssimos pães.  Os eleitores não irão tolerar isso.
A razão por que não há chefs econômicos promovendo o crescimento é simples: alguém tem de financiar o crescimento dos gastos do governo.  Quem fará isso?  Quem confia nos PIIGS?
Quanto mais alto os eleitores protestam contra a austeridade, menor será o número de emprestadores — no caso, investidores dispostos a emprestas a taxas abaixo de 10%.
Peste!
O artigo, no final, chega ao seu objetivo.
Então, o que aconteceu na Europa?  A resposta curta é "peste".  A Peste Negra do século XIV foi causada pela Yersinia pestis bacterium, que foi disseminada por ratos.  A peste atual é resultado do keynesianismo, que está sendo difundido pelos economistas dos departamentos das principais universidades do mundo e também do The New York Times.  Infelizmente, ao contrário da Yersinia pestis, o keynesianismo é imune a antibióticos.
Como o artigo define keynesianismo?  Erroneamente.  Ele diz que keynesianos defendem aumento de impostos e cortes de gastos.
Austeridade, como está sendo atualmente praticada na Europa, baseia-se na crença keynesiana de que aumentos de impostos e cortes de gastos do governo possuem o mesmo efeito sobre os déficits do governo e sobre a economia.  Com efeito, as mais virulentas cepas do keynesianismo fazem as pessoas acreditar que aumentar a alíquota máxima do imposto de renda e aumentar os gastos governamentais pode realmente estimular o PIB, pois "os ricos" possuem uma "propensão marginal para poupar" mais alta do que os beneficiados por repasses governamentais.
François Hollande, o vencedor das eleições presidenciais da França, é um keynesiano.  Ele acredita que elevar a alíquota máxima do imposto de renda da França para 75% ao mesmo tempo em que contrata mais 60.000 professores sindicalizados irá melhorar as coisas.
Como assim?  O que o um político declaradamente socialista tem a ver com o keynesianismo?  Keynesianismo é aquilo que Paul Krugman defende: mais gastos e mais déficits, tudo em conjunto com uma grande expansão monetária feita pelo Banco Central para poder financiar esta expansão.
Qual político ou economista keynesiano já se pronunciou abertamente a favor de cortes de gastos, ou seja, austeridade?  Economistas austríacos já.  Ron Paul já.  É por isso que os austríacos e Ron Paul são marginalizados pela mídia keynesiana, que os considera excêntricos.
Para um político cuja mente está infectada de keynesianismo, faz todo o sentido tentar reduzir um déficit orçamentário por meio de uma combinação de aumento de impostos e cortes de gastos, com o equilíbrio entre os dois sendo determinado por alguma combinação entre considerações políticas e "equidade".
Há muitos políticos na Europa que impuseram mais tributos sobre os ricos.  Os eleitores sempre os encorajaram a fazer isso, e adoravam quando isso era feito.  Os eleitores hoje estão injuriados com os "cortes" de gastos.  Cortes de gastos reduzem o fluxo de fundos para burocratas do governo e para os clientes do estado.  É por isso que os sindicatos gregos fazem baderna.
O keynesianismo tradicional clama por mais gastos, mais endividamento e — caso os investidores privados exijam juros mais altos — mais expansão monetária feita pelo Banco Central para comprar mais títulos da dívida do governo.  O artigo espertamente rejeita esta monetização.  Mas não clama por um padrão-ouro.  Em vez disso, defende o euro.  Por isso, o artigo sofre de uma ilusão: imaginar que o euro não é somente mais um veículo inflacionário; imaginar que ele seja superior a dracmas geridos por keynesianos.
A hierarquia política keynesiana impôs o euro sobre os eleitores em 1999.  Os porta-vozes das elites vêm condenando a saída da Grécia da zona do euro.  Os tecnocratas gregos, que não foram eleitos pelo povo, assim como os tecnocratas de todo o resto da Europa, ou são ex-empregados do Goldman Sachs ou serão futuros empregados dele.  Eles estão agora sendo desalojados pelo eleitorado.  Os eleitores são populistas e socialistas.  Eles são simpatizantes da elite keynesiana apenas durante a fase expansionista do estado assistencialista.  Quando a conta chega, eles passam a defender emissão monetária feita individualmente pelos governos nacionais, tributação dos ricos, sindicalismo e aumentos nos gastos governamentais.
Conclusão
O keynesianismo está em uma espiral de morte.  Na mesma situação está o socialismo populista.  E o mesmo ocorre com o sistema monetário fiduciário, de características fascistas (corporativistas).  Todos estão em espirais mortíferas porque todos rejeitam esta premissa: "Impostos menores aumentam a liberdade".
A liberdade irá vencer.  Esta é uma afirmação escatológica, eu sei.  Uma das maneiras como ela irá prevalecer é por meio da falência da ordem social keynesiana, que defende mais impostos, mais regulamentações, mais déficits, mais inflação.
Para haver austeridade genuína, o governo tem de entrar em dieta: seus gastos devem ser genuinamente cortados.
É isso o que o eleitorado europeu não quer.  Mas é isso o que ele vai receber.
"Nada de menos austeridade.  Mais austeridade!"

Gary North , ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. Visite seu website.