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sábado, 19 de maio de 2012

Kant: de Koenisgsberg ao paraiso - quem nao tem cachorro...

Na companhia de Kant


Paulo Roberto de Almeida 

Eu pretendia visitar o túmulo de Kant em Koenigsberg, atual Kaliningrad, mas resulta que, além de uma simples placa ao lado da Igreja da cidade, não tem absolutamente mais nada do filósofo na cidade, ex-capital da Prússia oriental, atualmente um mero enclave russo, militarizado e sem graça, entre a Polônia e a Lituânia.
Não poderia, de toda forma, entrar no enclave de carro alugado, como era minha intenção: os russos são muito chatos e mantêm aquilo como base militar, com ruas cujos nomes são ainda da era socialista esclerosada.
Enfim, desisti, mas fiquei em boa companhia: do próprio Kant.


Terminei de ler, há mais tempo, mas ainda peguei para revisar, antes de empacotar todos os livros que comprei na Europa, esta pequena obra:
[Pseudo-Kant]:
Histoire Authentique de Mon Voyage au Paradis, par Emmanuel Kant
Traduit de l'Allemand et présenté par Vincent Guillier
(Paris: Éditions de l'Éclat, 2012, 96 p.; ISBN: 978-2-84162-274-0; 7 euros)
Em sua introdução, Lectio Curiosa, o tradutor diz que se trata de uma filosoficção, e explica em que circunstâncias ele veio a encontrar esse livro bizarro, salvo da destruição por bombardeios durante a Segunda Guerra e praticamente escondido, depois, numa biblioteca de Salzburg, onde nem mesmo o bibliotecário conseguia localizá-lo.
A autoria é atribuída ao filósofo alemão pós-kantiano Gustav Teichmüller (1832-1888) e o livro teria sido publicado uma única vez sob o nome de Kant em 1877, na ocasião, ele teria sido considerado por discípulos como sendo autêntico. Não duvido.
E não tenho mesmo por que duvidar do próprio Kant, dadas suas manias transcendentais e metafísicas; acredito que ele seria bem capaz de, em lugar de morrer simplesmente, fazer um breve passeio ao paraíso, onde se encontrou com praticamente todos os filósofos da antiguidade grega -- entre eles o grande Sócrates, o inefável Platão e o insuperável Aristóteles -- e com diversos outros da era medieval, inclusive até mesmo alguns contemporâneos seus, da tradição idealista alemã.
Muitos céticos consideram a obra apócrifa, desde suas primeiras palavras, ou seja, de Kant, ele próprio: 
"Sei que se pensa, aqui e ali, que eu morri de velhice durante o ano de 1804."
Enfim, isso é o que se diz, mas na verdade sua tumba tem estes dizeres: 
Cineres mortales immortalis Kantii
(ou seja: as cinzas mortais do imortal Kant).
Kant argumenta que os rumores sobre sua morte foram grandemente exagerados. Como explica ele mesmo, no preâmbulo, ele sempre tinha cultivado a arte de prolongar a vida, chegando até mesmo a superar suas violentas dores de dentes por meio unicamente da força do espírito. Se por acaso ele não tivesse sido acolhido no céu, ele poderia ter se escondido na terra, ele que tinha sido saudado no mundo como o "Hércules do pensamento".
Na verdade, Kant teve certa dificuldade para entrar no céu, porque S. Pedro objetou a que ele levasse consigo seu criado Lampe, que teve de ficar na porta; desde a entrada, começaram a zombar dele por causa de sua peruca, de seu jeito de andar, e do seu uso frequente de uma tabaqueira.


Independentemente dessas controvérsias sem grande importância do ponto de vista do grande Kant, o fato é que o livro é um passeio filosófico em torno do mundus intelligibilis do grande filósofo alemão, que se vê obrigado a defender o seu sistema de entendimento, seus valores e até seu modo de vida -- regrado, como se sabe -- em face de ataques de gregos e troianos (enfim, não sei se havia troianos no bando de gregos mal-humorados do paraíso, mas tinha gente da Ásia menor, isso tinha).
Ataques por vezes bem dados, e que deixam nosso filósofo quase sem reação, o que resulta em certo empate filosófico. 
Nem tudo foram discordâncias, todavia, e Kant pareceu concordar com Aristipo da Cirenaica quando este afirmou que "a razão e a verdade nunca vão bem com o povo. Sempre se recolhem aplausos quando se afirma uma coisa completamente absurda com ar de aparente certeza e segurança". Também acho...
O grande Protágoras foi exageradamente cruel com o mestre de Konigsberg: 
"Entre nós, caro Kant, nós podemos reconhecer que você usa a sua filosofia crítica como base de um dogmatismo populista. Você continua a jogar areia nos olhos do povo." 
Uau! Kant passou por muitas e boas no paraíso.
Em todo caso, ele não esclarece como veio a sair do paraíso e voltar para a Terra, para publicar seu relato autêntico.
Suas últimas palavras foram:
"Para o público esclarecido, doravante sabedor de tudo, eu escrevi a história autêntica de minha experiência. Meus fiéis detratores preferem as mistificações e as ilusões barulhentas em lugar da beatitude celeste, onde um acordo se estabelece entre a liberdade, a natureza e as leis, sem qualquer desconforto, assim como eu continuo respeitoso das leis da moral. É por isso que, para alcançar a felicidade suprema, é preciso sempre ficar no mundo das aparências."
O pós-escrito do editor, datado de 1877, explica apenas que este era "o último texto das obras completas de Kant, ao que parece, e que possui princípios altamente esclarecedores em torno do mundo da sabedoria."
E ele conclui: 
"É com um verdadeiro sentimento de gratidão que posso editar esta obra nova e surpreendente do sábio de Konigsberg, tremendo em face dos perigos e debates intensos que ele teve de enfrentar, e aos quais seus fiéis discípulos, eu mesmo, pudemos escapar graças à abundância de informações que ele deixou ao seu público de leitores." (p. 93)
Bem, não pude visitar Kant em Koenigsberg, mas fiquei na companhia dele, aqui mesmo em Paris.


Paulo Roberto de Almeida 
Paris, sábado 19 de maio de 2012.

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