Certos textos são feitos, depois revistos, reduzidos e publicados em veículos de escassa circulação.
É o caso deste aqui:
1699. “A diplomacia
do governo Lula: balanço e perspectivas”, Brasília, 11 dezembro 2006, 14 p.
Ensaio para ser publicado na revista do
Instituto Liberal, “Banco de Idéias”, como dossiê especial. Feita nova versão
em 3.02.2007, reduzida a 12.500 caracteres, com espaço (5 p.). Publicado: Banco de Idéias (Rio de
Janeiro: Instituto Liberal; ano X, n. 38, mar-abr-mai 2007, p. 7-15; disponível
no site pessoal: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1699DiplomGovLulaBalanPersp.pdf).
Versão completa jamais publicada.
Ou seja, tive de praticamente cortar pela metade o texto e ele, provavelmente, teve escassa audiência fora de um público restrito.
Por acaso "cai" nesse registro hoje, ao procurar outra coisa.
Talvez fosse o caso de ler o texto hoje, com os olhos do segundo mandato, e avaliar se o que escrevi sobre o primeiro mandato e o que eu previa para o segundo se sustentam...
Com vocês...
A
diplomacia do governo Lula: balanço e perspectivas (2003-2006)
Paulo Roberto de
Almeida
Doutor
em Ciências Sociais. Diplomata.
(Inédito:
11 de dezembro de 2006)
Versão
resumida a 5 p., publicada in:
Banco de Idéias (Rio de
Janeiro: Instituto Liberal; ano X, n. 38, mar-mai 2007, p. 7-15).
Passados quatro anos de implementação da diplomacia do
primeiro mandato do governo Luis Inácio Lula da Silva (2003-2006) e
preparando-se o presidente reeleito para mais quatro anos de mandato
(2007-2010) – que promete, na área externa, uma reafirmação das mesmas linhas
desenvolvidas no primeiro período –, que balanço poderia ser feito de sua
política internacional, tanto nas concepções doutrinárias e nas orientações
políticas, como em seus resultados efetivos, e que perspectivas podem ser
vislumbradas no horizonte previsível? O presente trabalho, de natureza mais
expositiva do que propriamente interpretativa, pretende fazer uma apresentação
das posições de política externa do primeiro governo Lula, oferecer, em
seguida, um pequeno balanço desse primeiro mandato, com uma avaliação dos
resultados alcançados a partir dos objetivos proclamados, e discutir,
finalmente, eventuais perspectivas para o segundo mandato, numa espécie de
antecipação analítica a partir das intenções declaradas e das limitações
previsíveis colocadas a um país intermediário como o Brasil.
Uma primeira observação, quanto ao conteúdo ou a função
que a política externa parece desempenhar no governo do Partido dos
Trabalhadores (PT), pode ser feita em relação, justamente, à “ideologia da
política externa” neste governo, o que tem a ver com o papel da diplomacia no
processo de desenvolvimento do Brasil. Para o PT, e em grande medida para os
formuladores e executores da atual política externa, esta deve fazer parte de
um “projeto nacional”, do qual ela constituiria uma espécie de alavanca
fundamental do processo de desenvolvimento, que deveria ser marcado pela
integração soberana na economia internacional e pela mudança nas “relações de
força” do mundo atual. Esta idéia está expressa em várias declarações do
próprio presidente e de seus auxiliares diplomáticos e tem sido traduzida em
conceitos como o “reforço do multilateralismo” – em oposição ao que seria o
unilateralismo da potência hegemônica – ou a “mudança na geografia comercial
mundial”, o que evidenciaria o desejo manifesto de uma união dos países em
desenvolvimento para negociar, em melhores condições políticas, uma alteração
no padrão de trocas prevalecente, hoje considerado desigual, com base nas
atuais regras de política comercial e de acesso a mercados, notadamente no que
se refere ao protecionismo e às subvenções agrícolas à produção e às
exportações.
Dois princípios estão explicitamente presentes na
política externa do governo Lula, eles se traduzem nas duas grandes linhas de
ação que moldaram a diplomacia do primeiro mandato e prometem continuar
conduzindo a ação externa no novo período. Eles estão consubstanciados em dois
objetivos proclamados de forma reiterada, que são ao mesmo tempo ambiciosos e
contraditórios entre si: a chamada “presença soberana no mundo” e a “forte
integração continental”. Parece evidente, a qualquer observador mais atento,
que a busca de maior integração regional contrapõe-se, na prática, à
preservação da soberania nacional, uma vez que aquela implica, ipso facto, a diminuição desta, dado que
porções maiores da autonomia decisória interna – em políticas setoriais, como,
por exemplo, comercial, agrícola ou industrial, ou, a fortiori, no terreno das políticas macroeconômicas, a cambial,
entre outras – têm necessariamente de ser transferidas para o plano da
coordenação intergovernamental, em detrimento de escolhas puramente nacionais.
1. Política externa: o que
se pretendia no início do mandato?
Em seu discurso inaugural, pronunciado no Congresso
nacional em 1º de janeiro de 2003, o presidente Lula expunha seus grandes
objetivos políticos da seguinte forma: “…trabalharemos para superar nossas
vulnerabilidades atuais e criar condições macroeconômicas favoráveis à retomada
do crescimento sustentado para a qual a estabilidade e a gestão responsável das
finanças públicas são valores essenciais. Para avançar nessa direção, além de
travar combate implacável à inflação, precisaremos exportar mais, agregando
valor aos nossos produtos e atuando, com energia e criatividade, nos solos
internacionais do comércio globalizado.”
No que se refere especificamente à política externa,
ele começava por objetivos vagos e consensuais – “No
meu governo, a ação diplomática do Brasil estará orientada por uma perspectiva
humanista e será, antes de tudo, um instrumento do desenvolvimento nacional.
Por meio do comércio exterior, da capacitação de tecnologias avançadas, e da
busca de investimentos produtivos, o relacionamento externo do Brasil deverá
contribuir para a melhoria das condições de vida da mulher e do homem
brasileiros, elevando os níveis de renda e gerando empregos dignos.” – para emendar
logo em seguida, de maneira mais afirmada: “As negociações
comerciais são hoje de importância vital. Em relação à Alca, nos entendimentos
entre o Mercosul e a União Européia, na Organização Mundial do Comércio, o
Brasil combaterá o protecionismo (...) e tratará de obter regras mais justas e
adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento. Buscaremos eliminar os
escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam os
nossos produtores privando-os de suas vantagens comparativas.” Mas, consoante as teses soberanistas do PT, ele alertava contra
qualquer cessão de soberania na chamada questão dos espaços para políticas
nacionais de desenvolvimento: “Estaremos atentos também para que essas negociações,
que hoje em dia vão muito além de meras reduções tarifárias e englobam um amplo
espectro normativo, não criem restrições inaceitáveis ao direito soberano do
povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento.”
Explicitando,
então, o seu grande objetivo de política externa, o presidente enfatizava que a “grande prioridade
da política externa durante o meu governo será a construção de uma América do
Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e
de justiça social.” Para isso ele pretendia engajar uma “uma ação decidida
de revitalização do Mercosul”, uma vez que este teria sido “enfraquecido pelas
crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e
egoístas do significado da integração”. Não contente em reforçar a integração da
América do Sul, o projeto do presidente buscava também ampliar o processo em
suas “dimensões social, cultural e científico-tecnológica”, por meio de
“empreendimentos conjuntos” e de um “vivo intercâmbio intelectual e artístico
entre os países sul-americanos.”
No
seguimento se insinuava o projeto nunca explicitado de uma liderança brasileira
na região: “Apoiaremos os arranjos institucionais
necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e
da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações difíceis.
Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para
encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos
preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país.” Essa
intenção, aliás, deveria ir além do próprio continente sul-americano: “O mesmo empenho
de cooperação concreta e de diálogos substantivos teremos com todos os países
da América Latina.” Observe-se, a propósito, que as
relações com o principal parceiro hemisférico eram colocadas sob o domínio de
um verbo condicional, ao passo que as relações com a Europa e outras regiões
recebiam conotação mais afirmativa: “Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma
parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo.
Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Européia e
os seus Estados-Membros, bem como com outros importantes países desenvolvidos,
a exemplo do Japão.”
A
opção preferencial por “aliados estratégicos” – “Aprofundaremos as relações
com grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do
Sul, entre outros” – e os grandes objetivos da diplomacia sul-sul – “Reafirmamos os
laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição
de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes
potencialidades” – já estavam colocados de maneira explícita, aliás, desde
antes do discurso inaugural. Da mesma forma, a afirmação do multilateralismo –
“Vamos
valorizar as organizações multilaterais, em especial as Nações Unidas, a quem
cabe a primazia na preservação da paz e da segurança internacionais.” – e a recusa
do hegemonismo vinham lado a lado, em moldes seguidos tradicionalmente pelo
Itamaraty: “A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer
espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o
desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado”.
Finalmente, o que viria a converter-se no grande
objetivo da política externa de Lula, ou seja, a conquista de uma vaga
permanente no CSNU, aparecia de maneira não totalmente explícita no discurso
inaugural: “Defenderemos um Conselho de Segurança reformado,
representativo da realidade contemporânea com países desenvolvidos e em
desenvolvimento das várias regiões do mundo entre os seus membros permanentes”. Em suma, as linhas básicas da política externa do governo Lula
combinavam os princípios tradicionais da diplomacia
do Itamaraty com algumas inovações conceituais e novas ênfases nas alianças
preferenciais que seriam seguidas de modo relativamente consistente, como agora
se verá.
2. Diplomacia do primeiro
mandato: o que foi alcançado?
O que
agora poderia ser dito dos grandes objetivos do governo Lula em matéria de
política externa, e quais são, nos quatro primeiros anos de intensa presença no
cenário internacional, os resultados práticos daquilo que foi chamado pelo
chanceler Celso Amorim de “diplomacia altiva e ativa”?
Um balanço concreto da política externa do governo Lula deve, antes de mais
nada, deixar de lado as declarações de intenção para avaliar os resultados
efetivos dessa diplomacia, tal como implementada nos últimos quatro anos. Para
essa finalidade, os seguintes temas foram considerados como relevantes:
Conselho de Segurança da ONU; alianças com parceiros estratégicos; situação do
Mercosul; relações com a Argentina; liderança do Brasil na América do Sul e
bloco político regional; OMC e negociações comerciais multilaterais e
regionais; relações com China, Rússia e o papel internacional do Brasil. É em
torno desses pontos que será organizado este pequeno balanço.
2.1. Conselho de Segurança da ONU
Trata-se de tema caro ao ministro Celso Amorim, que
trabalhou durante muito tempo em assuntos multilaterais e em questões de
segurança internacional e que encontrou a simpatia e o interesse do presidente
e de amplos setores na própria diplomacia, nas forças armadas e nos grupos de
apoio dentro e fora do PT. A questão é notoriamente difícil e em torno dela a
diplomacia brasileira engajou recursos consideráveis num vasto programa de lobby junto aos mais diferentes países.
O próprio acolhimento do presidente Lula, por interlocutores do G-7 e pela
imprensa internacional, como grande líder de estatura mundial, reforçou a idéia
de que a conquista da cadeira permanente seria factível, mesmo tendo em conta a
oposição de poderosos vizinhos regionais (Argentina e México, sobretudo). A
iniciativa se desenvolveu em diversos formatos e em diversas frentes,
envolvendo, inclusive, o perdão de dívidas bilaterais de países pobres e a
constituição de um grupo especial – o G-4 – interessado na reforma da Carta da
ONU e na elevação dos países integrantes (Alemanha, Brasil, Índia e Japão) ao
CSNU; mas ela foi obstaculizada pela má vontade de alguns integrantes do atual
Conselho – China e EUA, em especial – e por divergências de âmbito regional,
entre elas a posição irrealista da União Africana.
Foi em grande medida em função dessa aspiração que o
Brasil tomou a iniciativa de liderar o contingente das Nações Unidas na missão
de estabilização política do Haiti, tarefa que ultrapassa os limitados meios
materiais do Brasil, uma vez que envolve objetivos de nation-building, mais até do que de missão de paz. O tema da
reforma da Carta da ONU e da assunção do Brasil a uma cadeira permanente em seu
CS continua na agenda da diplomacia brasileira como de alta prioridade, mas não
parece haver chances de que ele venha a ser encaminhado, satisfatoriamente, no
futuro imediato.
2.2. Alianças com parceiros estratégicos
(Argentina, China, Índia, África do Sul)
A diplomacia de Lula acredita que países como Brasil,
Argentina, China, África do Sul e Índia não só partilham valores e objetivos
comuns no sistema internacional, como apresentam características sociais e
econômicas relativamente similares a ponto de justificar um esforço de
cooperação. O G-3, por exemplo, foi apresentado como uma demonstração da
criatividade e da capacidade de iniciativa da diplomacia brasileira no sentido
de buscar uma coordenação política com os dois últimos parceiros em temas da
agenda multilateral, bem como com vista a intensificar a cooperação trilateral,
nos mais diferentes campos de interesse conjunto. A Argentina deveria ser o
grande parceiro na construção de um sistema sul-americano de cooperação e de
integração, a partir do reforço do Mercosul, que consolidaria a região como o
grande vetor de projeção dos interesses brasileiros num espaço econômico
integrado. A China, por sua vez, parecia ser o parceiro por excelência na
reformulação das relações econômicas internacionais, no sentido da afirmação do
multilateralismo e da diminuição do unilateralismo imperial. Na prática, a
despeito de alguns resultados concretos na ampliação da cooperação, poucos
sucessos efetivos puderam ser registrados a partir dessas alianças previamente
definidas com base em critérios pouco claros de proximidade política ou
econômica.
2.3. Reforço do Mercosul e ampliação das
oportunidades econômicas na região
A “reestruturação”, o reforço institucional e a
ampliação do Mercosul constavam explicitamente do “cardápio” diplomático do
governo Lula, que anunciou, previamente, sua dedicação prioritária à agenda da
integração regional. De fato, os “investimentos” nessa área foram
consideráveis, inclusive no sentido de aceitar, parcialmente, diversas
restrições ao livre-comércio bilateral ou regional que a Argentina, menos
capacitada industrialmente, pretendeu – e, em grande medida, conseguiu – impor
ao Brasil. Ainda assim, o Mercosul não se encontra em melhor situação do que
aquela deixada pela administração anterior e algumas realizações apresentadas
como avanços – como o Parlamento ou Fundo de Correção de Assimetrias – podem,
na verdade, travar ainda mais o itinerário do bloco no caminho de sua
unificação econômica e comercial (pelo estímulo à busca de vantagens setoriais
ou uniformização de regras em áreas que seriam melhor atendidas pelo princípio da
concorrência aberta). No campo da “ampliação” do Mercosul, parecia claro, desde
o início, que o Chile não pretendia – nem poderia, por diferenças de estrutura
tarifária – ingressar de modo pleno no bloco, mas ainda assim o anúncio de seu
acordo de livre-comércio com os EUA causou insatisfação visível ao Palácio do
Planalto. O “ingresso pleno” da Venezuela, decidido politicamente, mais do que
com base em um cumprimento estrito dos requisitos comerciais de incorporação às
normas comuns da união aduaneira, foi por sua vez apresentado como um
importante reforço dos mercados sub-regionais, com um componente energético
considerável, mas teme-se que a contrapartida seja a incorporação de uma agenda
política venezuelana que não se coaduna com os interesses diplomáticos de seus
outros membros.
2.4. Relações com a Argentina
Relação sempre sensível, mas extremamente relevante no
conjunto das relações bilaterais do Brasil, a interação com a Argentina
padeceu, a despeito de um máximo de empenho e boa-vontade demonstrados desde
antes da posse pelos novos responsáveis políticos brasileiros, de certa
deterioração prática, em grande medida determinada pela difícil situação
econômica atravessada pelo país platino nos dois primeiros anos da
administração Nestor Kirchner. Cautelosas, por medo de alguma “contaminação”
nos mercados financeiros e nas agências de avaliação de risco, em relação à
queda de braço promovida com os credores privados e o verdadeiro enfrentamento
mantido com o FMI, as autoridades econômicas brasileiras foram bem mais
realistas na condução da agenda bilateral e na dos negócios com a Argentina do
que seus colegas diplomatas, mais dispostos a praticar aquilo que foi chamado
de “diplomacia da generosidade”, ou seja, alguma leniência com as restrições
comerciais unilaterais e uma predisposição de princípio a acomodar certas
perdas imediatas – como a exportação de algumas linhas de manufaturados – para
garantir as boas relações no médio e no longo prazo. Essas relações também
foram parcialmente afetadas pela personalidade algo particular do presidente
Kirchner, cujo comportamento pessoal esteve na origem do afastamento da
Argentina de algumas reuniões regionais – foi o caso, por exemplo, do encontro
do Grupo do Rio, no Rio de Janeiro, e da reunião constitutiva da Comunidade
Sul-Americana de Nações, no Peru – ou multilaterais – como a conferência com os
países árabes em Brasília ou, ainda, de reuniões que interessavam o próprio
Mercosul. A difícil aceitação, pelo Brasil, de um sistema automático de
salvaguardas comerciais bilaterais, em clara contradição com o espírito e a
letra dos compromissos firmados no âmbito do Mercosul, também contribuiu para
certa tensão nas relações entre os dois grandes sócios do bloco, que por outro
lado sofreu os efeitos de insatisfações manifestadas pelos dois sócios menores
(como o conflito das “papeleiras” entre a Argentina e o Uruguai).
2.5. Liderança do Brasil na América do Sul e formação de um bloco
político regional
O conceito de “liderança regional” sempre foi uma
espécie de tabu na história das relações com os demais vizinhos geográficos,
daí porque a diplomacia profissional jamais inscreveu essa palavra em qualquer
texto que tivesse a ver com nossas relações regionais. A nova liderança
política, aparentemente, acreditou que estava na hora de o Brasil assumir uma
postura mais afirmativa, inclusive num sentido positivo, de estender
financiamentos oficiais para certos projetos de interesse integracionista e,
também, em um sentido certamente mais controverso, o de unificar as posições
negociadoras dos países da região em determinados foros comerciais – era o caso
da Alca, por exemplo, mas o mesmo poderia ser aplicado à Rodada Doha, da OMC –
para reforçar as demandas próprias e obter melhores condições de “barganha”.
Tratava-se, igualmente, de superar a fase puramente técnica de concepção e
implementação de grandes projetos de integração física em escala sul-americana
– que eram conduzidos com a assessoria do INTAL-BID no quadro da IIRSA,
iniciativa de integração regional sul-americana – para inaugurar um projeto
considerado como prioritário pela atual diplomacia brasileira: a criação da
chamada Casa, ou Comunidade Sul-Americana de Nações, que deveria administrar,
politicamente, a rede de acordos de liberalização comercial próprios à região e
os novos projetos de integração física regional. O fato é que a “liderança
brasileira” enfrentou resistências ou indiferença, inclusive por uma questão de
escassez de meios efetivos à disposição para o seu exercício. Aliás, um dos
vetores políticos para a coordenação de posições negociadoras, a recusa da Alca
tal como proposta nos moldes americanos, não encontrou consenso mesmo entre
associados ou membros do Mercosul, já que alguns deles concretizaram ou esperam
conseguir acordos de acesso ao mercado dos EUA em bases puramente bilaterais,
mas num padrão que não difere muito das condições de acesso oferecidas pelos
EUA no âmbito da Alca.
No que se refere a esta última, Brasil e EUA
compartilham responsabilidades pelo bloqueio do processo negociador, ambos por
dificuldades internas ligadas a setores temerosos de uma abertura
indiscriminada a concorrentes mais competitivos no outro país. Era evidente,
por outro lado, que a oposição essencialmente política à Alca, nas bases
sociais e nos grupos de apoio ao governo brasileiro, conduziria o projeto de
interesse preeminente dos EUA à implosão, como ocorreu efetivamente na cúpula
hemisférica de Mar del Plata – novembro de 2005 –, para alegria desses setores
e a satisfação de alguns dirigentes da região (entre eles, os presidentes Hugo
Chávez, da Venezuela, e o anfitrião Kirchner). Esse mesmo movimento, no
entanto, reforçou a caminhada dos países, individualmente, em direção de
acordos bilaterais com os EUA, retirando, potencialmente, mercados do Brasil,
direta ou indiretamente.
2.6. OMC, Rodada Doha e negociações comerciais multilaterais e
regionais
A conquista de acesso a novos mercados externos e a
preferência pelos foros multilaterais de negociações comerciais são duas áreas
nas quais o Itamaraty, por reconhecida competência e presença física, sempre
exerceu uma espécie de “liderança hegemônica” ao seio da administração
brasileira, determinando posições e conduzindo, efetivamente, o processo
negociador, segundo uma visão própria do chamado interesse nacional. No governo
Lula, a ação da diplomacia, nesses vetores, correspondeu bastante bem à visão
que o partido dominante político mantinha sobre as relações econômicas
internacionais, com a defesa de uma função estratégica de suporte da diplomacia
ao projeto nacional de desenvolvimento, garantindo a liberdade de serem
preservados espaços normativos para o estabelecimento de políticas setoriais
nacionais, não limitadas, portanto, por regras multilaterais mais intrusivas do
que as atualmente já existentes para investimentos, propriedade intelectual ou
serviços. Nesse sentido, a formação do G-20, na reunião ministerial de Cancún
(setembro de 2003), da OMC, e sua atuação visivelmente ativa em reuniões
posteriores da Rodada Doha, foram apresentados como um sucesso político em
termos de organização “alternativa” – e criativa – para as difíceis negociações
agrícolas. Entretanto, uma das limitações do G-20 é que ele pode tornar as
posições do Brasil tão defensivas quanto são as de China e da Índia, em matéria
de subsídios e protecionismo setorial, e muito restritivas, em algumas áreas da
indústria (NAMA) e dos serviços. No plano interno, por outro lado, as posições
negociadoras mais rígidas do Itamaraty produziram vários choques com os
ministérios da Fazenda, o MDIC e a Agricultura, embora resolvidos com ganhos
pelo primeiro, a partir do aval do presidente a essas posições.
Já no âmbito das negociações comerciais birregionais,
entre o Mercosul e a União Européia, houve, no começo, certa ilusão de que um
acordo mais limitado poderia trazer maiores vantagens ao Brasil e ao Mercosul,
ademais da idéia, também equivocada, de que a UE, por ser um espaço de
integração com “preocupações sociais” e políticas de “correção de assimetrias
regionais”, seria bem mais generosa com o Mercosul do que uma Alca “imperial”.
Na verdade, os europeus se mostraram muito mais protecionistas do que os EUA em
matéria de agricultura, ainda que menos ambiciosos em outras vertentes
negociadoras, além do fato de que, uma vez a Alca emperrada, diminuiriam os incentivos
para se obter um acordo equilibrado.
Por fim, a noção de que o Brasil, ao diversificar
mercados e buscar novos parceiros comerciais no eixo Sul-Sul, estaria operando,
literalmente, uma “mudança na geografia comercial do mundo”, parece ignorar o fato
de que essa “nova geografia” do comércio internacional já existe há muito tempo
e ela se traduz em exportações maciças das economias dinâmicas dos países
asiáticos para os mercados do Norte desenvolvido.
2.7. Relações com China, Rússia e presença política mundial
A China tinha sido designada como “aliada” ou “parceiro
estratégico” preventivamente, antes mesmo da assunção do novo governo, e de
forma unilateral; uma vez constituída a nova administração, apostas foram
feitas, sobre compras ampliadas a fornecedores brasileiros, sobre cooperação
tecnológica e na atração de investimentos chineses em infra-estrutura no
Brasil. Considerou-se, inclusive, que a China atuaria no sentido de mudar as
“relações de força” existentes no mundo e de diminuir o grau de “hegemonismo”
presente no cenário internacional. Por um momento também foi considerada a
hipótese de um acordo comercial entre o Mercosul e a China, tema posteriormente
colocado de lado, à medida que as reais dimensões da relação
econômico-comercial, necessariamente mais modestas, eram postas em evidência.
Da mesma forma, mas com objetivos mais políticos do que
econômicos, houve uma aproximação “estratégica” com a Rússia, sempre com a
intenção de contribuir para a redução dos espaços abertos ao “arbítrio unilateralista”,
assim como com a França e a Alemanha, por ocasião dos debates em torno de uma
resolução do CSNU sobre o Iraque. A conferência entre países árabes e da
América do Sul foi organizada tanto visando objetivos econômico-comerciais como
com a finalidade de realçar a presença política do Brasil na região, agenda
confirmada pela decisão de instalar uma representação diplomática brasileira
junto à Autoridade Nacional Palestina, em Ramalah. As várias viagens
presidenciais à África responderam tanto ao desejo internamente motivado de
reforçar os elementos afro-brasileiros na arena diplomática do Brasil, quanto à
busca de apoios para o pleito ao CSNU e de novos mercados para produtos
brasileiros.
De fato, o Brasil tornou-se um interlocutor mundial em
várias instâncias e foros, como o G-8, por exemplo, ou a comunidade do Fórum
Econômico Mundial, em Davos, ainda que essa agenda não contasse com pleno apoio
em determinados setores da comunidade de sustentação política do governo.
Ocorreu, por outro lado, uma maior interferência de ONGs claramente
identificadas com posições ditas alternativas em matéria de meio ambiente ou de
negociações agrícolas na formulação de posições externas do Brasil ou, até
mesmo, na orientação da agenda diplomática, o que de certa forma reflete as
posições de componentes do governo em relação aos temas da globalização e as
relações desses líderes políticos com o temário do Fórum Social Mundial. No
plano conceitual, se assistiu, inclusive, à tentativa de oferecer uma
alternativa ao chamado “Consenso de Washington”, mediante a elaboração, com a
Argentina, e seu posterior oferecimento ao resto do continente, de um “Consenso
de Buenos Aires”, documento analítico e propositivo colocando grande ênfase nos
temas sociais, por oposição ao que seria o conjunto de regras puramente
econômicas e ditas “neoliberais” do primeiro “Consenso”.
Como repetido diversas vezes pelo próprio presidente
Lula, o Brasil não mais pediria “licença a ninguém para ocupar seu lugar no
mundo”, confirmando a vocação eminentemente participativa da nova diplomacia.
Ela foi traduzida em várias iniciativas de caráter multilateral, nas quais o
Brasil sempre explicitou sua posição em favor de maior democracia nas relações
internacionais e de uma mudança fundamental no tratamento concedido aos países
mais pobres. Um bom exemplo dessa atitude foi a proposição de uma “iniciativa
mundial contra a fome e a pobreza”, concebida como um novo programa de trabalho
das Nações Unidas.
De fato, o que seria um prolongamento universal do programa
“Fome Zero” do governo Lula, converteu-se, pela capacidade de mobilização da
diplomacia brasileira, em tema da agenda internacional, tendo recebido o apoio
explícito de vários países – França, Chile, Espanha, entre outros – mas não se
traduziu na grande campanha mundial que talvez fosse esperada pelo presidente
brasileiro. Em lugar da canalização de grandes receitas financeiras com uma
taxa mundial sobre movimentação de capitais, como era a proposta de muitas ONGs
envolvidas com o projeto, os patrocinadores exploraram diversas fontes
alternativas de recursos, entre elas um tributo adicional, de aplicação
nacional e em caráter voluntário, sobre passagens aéreas internacionais. Esses
recursos devem financiar uma central de compras de medicamentos anti-Aids para
países pobres. Entre outros problemas, a iniciativa duplica esforços já
existentes em outros programas multilaterais sobre alimentos ou combate a
doenças contagiosas, mas não deixa dúvida quanto ao novo espírito de
solidariedade universal que passou a animar a diplomacia brasileira. Como
explicitado várias vezes pelo chanceler Amorim, o Brasil escolheu não ser
indiferente à sorte de vários países ainda mais pobres do que o próprio país.
3. Quais são as
perspectivas para o segundo mandato: more
of the same?
Quais seriam, finalmente, as novas perspectivas da
política externa no segundo mandato do presidente Lula: teremos elementos
inovadores ou se assistirá a uma mera repetição do que já vem sendo feito? A
julgar pelo que foi proclamado durante a campanha eleitoral de 2006, o mais
provável é que se assista a mais do mesmo. Vejamos, em primeiro lugar, o que
dizia o documento de campanha elaborado pelo PT, a partir da coordenação
política do próprio assessor de relações internacionais do governo, professor
Marco Aurélio Garcia, que muitas vezes foi apresentado como uma das cabeças da
política externa do governo.
O
documento, divulgado no site da campanha em meados de agosto de 2006, começava
por repetir a velha intenção de defender para o Brasil uma “inserção soberana no mundo”. De forma extremamente (talvez deliberadamente)
vaga, a intenção repetia objetivos do passado, mas agora com a assunção
declarada da candidatura à cadeira permanente no CSNU: “O Brasil acentuará sua presença soberana no mundo. Lutará nos foros
internacionais pelo multilateralismo, contribuindo para a reforma das Nações
Unidas e de seu Conselho de Segurança, onde reivindica uma vaga permanente.” Da
mesma forma, o documento mantinha a mesma ambigüidade entre a inserção no mundo
globalizado de Davos e a demanda pelo caminho alternativo típico do Fórum
Social Mundial: “Manterá suas iniciativas em favor de ordem econômica,
financeira e comercial mais justa que beneficie países pobres, e em
desenvolvimento, ao mesmo tempo em que reduz as atuais assimetrias mundiais”.
A
terminologia típica do multilateralismo do Itamaraty se insinuava no mesmo
documento: “O Brasil continuará empenhado em sua luta contra a
fome e pela paz. Defenderá um relacionamento entre as nações baseado nos
princípios de respeito à soberania nacional, de não agressão e de não
ingerência nos assuntos internos de outros estados.”
Por outro lado, aparecia, também, a integração regional como prioridade
estratégica: “Privilegiará o processo de integração sul-americana – o Mercosul
e a Comunidade Sul-americana de Nações...”,
para logo em seguida agregar o mesmo elemento da diplomacia sul-sul: “...e fortalecerá as
relações Sul-Sul, dando ênfase particular às suas relações com os países do
continente africano,...”, mas não deixava de fazer
referência aos parceiros mais dinâmicos do sistema mundial: “... ao mesmo tempo em
que buscará ampliar seu acesso aos grandes mercados europeu, norte-americano e
asiático e manter com os países desenvolvidos um relacionamento positivo e
soberano.”
Por fim, e isto é verdadeiramente inédito em termos de
diplomacia e de postura estratégica, aparecia uma frase relativamente ambígua,
mas aparentemente preocupante aos olhos de certos observadores militares. Ela
tinha a ver com a defesa e a organização do equipamento militar: “Reconstruir a indústria bélica nacional, de forma articulada com os
países da América do Sul.” Este objetivo, diga-se de passagem, apresenta alguns
elementos de dúvida quanto à sua factibilidade e contrapõe-se, de toda forma, à
defesa da soberania no plano mundial e regional. Não houve maior explicitação
quanto ao sentido ou significado desse engajamento regionalista na
“reconstrução” da indústria bélica nacional, assim como o tema ficou ausente
dos debates eleitorais.
4. O debate nacional em torno das opções
diplomáticas do governo Lula
Não faltaram críticas às orientações da diplomacia
brasileira, geralmente por parte de veículos da imprensa, enfatizando, eles, um
suposto caráter ideológico ou “terceiro-mundista” da política externa, o que
foi rebatido por seus formuladores e executores. Os meios empresariais, por sua
vez, alertaram para o perigo de isolamento econômico e a perda de espaços
comerciais na própria região, em vista da ausência de acordos mais consistentes
de acesso a novos mercados ou a ampliação dos existentes. Decepções com
atitudes políticas de alguns parceiros ditos “estratégicos”, assim como
preocupações com o equilíbrio militar na própria região, além de alguns
dissabores com vizinhos e aliados no imediato entorno regional – como podem ser
os problemas criados a propósito da exploração dos recursos energéticos da
Bolívia e da retórica mais agressiva da Venezuela em relação aos EUA –, podem
determinar algumas mudanças de ênfase numa segunda fase da atual diplomacia.
No cômputo global, contudo, o presidente Lula demonstra
estar bastante satisfeito com os rumos, as orientações e, sobretudo, com as
realizações de sua política externa, que ele vê como a mais adequada para a
afirmação soberana do Brasil no mundo. Depois de ter criticado o seu antecessor
pelo excesso de viagens, ele também parece ter sucumbido a uma “diplomacia
presidencial” – embora o conceito não seja utilizado, justamente para evitar
aproximações com os métodos utilizados anteriormente – e, de fato, a agenda de
viagens ao exterior, bem como as visitas de alto nível recebidas em Brasília,
jamais foram tão intensas, em qualquer época da diplomacia brasileira, como nos anos de governo Lula. Aparentemente, pela primeira vez nos
registros históricos, o Brasil encontra-se adimplente em suas contribuições
para a maior parte dos organismos internacionais, o que também demonstra o alto
apreço do presidente pelo trabalho do Itamaraty e, obviamente, um cálculo
político novamente vinculado à candidatura do Brasil a uma cadeira permanente
no CSNU.
De forma geral, a atual política externa parece gozar de
amplo apoio nos meios acadêmicos e nos setores já adquiridos a uma visão
política de esquerda, sendo vista, em contrapartida, com algumas reservas nos
meios empresariais e nos grandes veículos de comunicações. De toda forma, os
temas diplomáticos nunca estiveram tão presentes nos debates internos, e não
apenas nos meios políticos, sendo previsível que eles se continuem em posição
de destaque no decorrer do segundo mandato presidencial. A diplomacia
brasileira parece, paradoxalmente, ter deixado de gozar o antigo consenso
favorável de que desfrutava em épocas anteriores, mesmo no período militar,
passando agora a contar com adesões indiscutidas, entre os aliados naturais, e
oposições também declaradas por parte dos setores já apontados, que a acusam de
ser uma “diplomacia partidária”. Trata-se de um elemento novo no cenário político
brasileiro e nos anais da própria diplomacia, uma realidade inédita que talvez
se prolongue nos embates políticos dos próximos anos, dentro e fora da Casa de
Rio Branco.
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
11 de dezembro de 2006
Bibliografia seletiva do autor sobre
o tema:
Livros:
O Estudo das relações internacionais
do Brasil: um diálogo
entre a diplomacia e a academia (Brasília: LGE, 2006).
Relações internacionais e política
externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (2ª edição;
Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2004; 1ª edição:
1998).
Os primeiros anos do século XXI: o
Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São
Paulo: Paz e
Terra, 2001).
O Brasil e o multilateralismo
econômico
(Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999).
Artigos:
“Uma nova ‘arquitetura’ diplomática?:
interpretações divergentes sobre a política externa do Governo Lula (2003-2006)”,
Revista Brasileira de Política
Internacional (Brasília: IBRI: ano 49, nº 1, 2006, p. 95-116).
“A política internacional do PT e a
Diplomacia do Governo Lula”, in Guilhon de Albuquerque, J.A.; Seitenfus, R.;
Nabuco de Castro, S.H. (orgs.), Sessenta
Anos de Política Externa Brasileira (2ª ed.; Rio de Janeiro: Lumens Juris,
2006; 1º vol.; p. 537-559).
“Uma política externa engajada: a diplomacia
do governo Lula”, Revista Brasileira de
Política Internacional (Brasília: v. 47, nº 1, 2004, p. 162-184).
“A política internacional do Partido
dos Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula”, Sociologia e Política (Curitiba:
UFPR, nº 20,
2003, p. 87-102).