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sábado, 8 de outubro de 2022

Olimpíada do Bicentenário da Independência do Brasil - inscrições abertas

Estão abertas as inscrições para a Olimpíada do Bicentenário da Independência do Brasil


Estudantes de escolas públicas e particulares de todo o Brasil podem se inscrever

Estudantes de escolas públicas e particulares de todo o Brasil já podem se inscrever, de forma gratuita, para participar da Olimpíada do Bicentenário da Independência do Brasil. Os interessados podem se inscrever diretamente, sem a necessidade de que a escola se inscreva, por meio do site: https://olimpiadabrasil.org/. O prazo para inscrição vai até o dia 9 de outubro. 

A iniciativa é realizada pelos ministérios da Educação (MEC), da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Turismo e pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). 

A Olimpíada do Bicentenário da Independência será dividida em duas categorias: sênior e júnior. Na primeira, podem participar estudantes nascidos de 1º de janeiro de 2004 a 31 de dezembro de 2007, desde que não estejam matriculados em algum curso superior. A categoria júnior é voltada para nascidos a partir de 1º de janeiro de 2008. 

O objetivo da ação é celebrar os 200 anos da Independência do Brasil, bem como promover uma reflexão não só sobre a importância do ato em si, mas também sobre todos os seus desdobramentos num espectro mais amplo que o histórico. 

A olimpíada consiste na realização de provas que serão divididas em quatro fases, incluindo virtuais e presenciais. As questões abrangerão vários temas, como: literatura, pintura, matemática, história, geografia, geopolítica, música, entre outras. 

A primeira fase, que será realizada de forma remota, acontecerá entre os dias 1º e 9 de outubro. A segunda ocorrerá de 20 a 27 de outubro. Já a terceira etapa acontecerá no dia 9 de novembro e a última em 1º de dezembro. 

Fonte: https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/estao-abertas-as-inscricoes-para-a-olimpiada-do-bicentenario-da-independencia-do-brasil

*IFTM


Um debate sobre as relações, sempre contraditórias, entre capitalismo e democracia - Tomas Guggenheim, Paulo Roberto de Almeida

 Parti da seguinte argumentação do colega e amigo Tomas Guggenheim, sobre a base de um artigo do Fareed Zakaria sobre as frustrações pelo fato de a China não se ter democratizado a partir de sua caminhada para a economia de mercado: 

Em 8 de out. de 2022, à(s) 10:41, Tomas Guggenheim escreveu:

Muito ilustrativo. Na fase de otimismo após o fim do império soviético, difundiu-se a versão de que a China se tornaria uma democracia com o avanço do seu setor privado e isso justificou até aprovar a classificação do país como "economia de mercado" na OMC, como se estivessem apenas adiantando uma realidade que se imporia "inevitavelmente".
Mas todos os líderes políticos, todos os interessados em política, história e até a torcida do Flamengo sabiam que o capitalismo é essencial para a preservação da democracia, mas a recíproca nunca foi verdadeira, ainda mais quando o capitalismo de estado domina os setores estratégicos da economia.
Não havia ilusão, apenas uma expectativa, que foi preservada nas manifestações dos dirigentes, grande mídia, lideres de opinião, etc porque crescia exponencialmente a terceirização, o off-shoring e a ânsia irrefreável de ter acesso ao mercado interno chinês - e são raros os que criticam um consenso que reflete interesses econômicos (e políticos) tão amplos, quase universais, se incluirmos os interesses por exportação de commodities e financiamentos dos países em desenvolvimento.
Agora, com os efeitos da COVID sobre as "cadeias de valor", a política crescentemente agressiva de Xi e a caracterização da China como uma ameaça (econômica, tecnológica e militar) aos Estados Unidos, tornou-se corrente reconhecer publicamente os riscos e inconvenientes de uma dependência excessiva daquele país e o discurso dominante mudou em consequência. 
 

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Comentário PRA: 

Os paradoxos da economia de mercado e as ambiguidades das relações entre capitalismo e democracia podem desafiar os argumentos dos melhores analistas. 

Nenhum é absolutamente condicional do outro, mas é um fato que economias não capitalistas e sistemas estatizados são pouco propensos à uma democracia de mercado, e portanto mais propensos a sistemas autoritários, quando não ditatoriais.
Em primeiro lugar é preciso distinguir entre economias de mercado e capitalismo, que é apenas uma de suas muitas formas, nem sempre a mais frequente. Capitalismo é apenas um forma de organizar a produção em massa, mas economias de mercado podem ter diversas outras formas. 
Vamos ver concretamente as coisas e nem preciso me referir ao livreto do Friedman de 1962, Capitalism and Freedom, no qual ele coloca que o capitalismo é uma condição necessária, mas não suficiente para uma democracia. Tem muitos senões entre um e outro.
A China é bem mais uma economia de mercado hoje do que jamais foi no passado, mas NUNCA foi uma democracia. Saiu de um império centralizado (com economia de mercado), para o caos da República, e depois mergulhou na guerra civil e no maoismo demencial, que nem criou um socialismo puro no modelo do Gosplan soviético. Pode-se dizer que os 70 anos de leninismo na Rússia realmente abalaram as bases da sociedade russa, fazendo a ficar muito pior do que sob o despotismo czarista, que estava industrializando a Rússia com base em fundamentos de mercado. Houve uma destruição de instituições de mercado, numa nação que tampouco tinha sido democrática, salvo aquilo que Weber chamou de “democracia de fachada” entre março e outubro de 1917.
Mas a China só teve uns 30 anos de maoismo demencial, que apenas desmantelou o que havia de economia natural e de mercado no país, mas conseguiu manter um sistema de governança leninista muito mais eficiente do que  o bolchevismo, pois que baseado num novo tipo de mandarinato, o do PCC. 
Em 2001, a China foi admitida no Gatt-OMC, mas tinha um prazo de 15 anos para provar que poderia ser uma economia de mercado, o que ela EFETIVAMENTE É, mas sob o controle do mesmo partido leninista-mandarinesco.
Em 2002, o G7 de Kananaskis reconheceu a Rússia (pós-leninista) como economia de mercado, apenas por razões políticas, sendo que a Rússia era muito menos de mercado do que a China leninista-capitalista. A Rússia só ingressou na OMC em 2015, e a China, que deveria ser admitida como economia de mercado em 2016 jamais o foi, apenas por causa de seu regime político, não pela falta de capitalismo.
Sintetizando: a China é um capitalismo com características chinesas – isto é, despotismo oriental, que atualmente é o partido leninista-meritocrático – e a Rússia é um crony-capitalism e uma cleptocracia. 
Independentemente dessas considerações baseadas em exemplos práticos, não cabe a acadêmicos teorizarem sobre aquelas relações apenas com base em suposições. Eu, por exemplo, considero o Brasil um país quase fascista no controle estatal não só da economia de mercado mas sobre a vida das pessoas. 
Mas, o Brasil vai ter um governo fascista se o Bozo ganhar? Não acredito nisso. Apenas terá um governo de direita, ou de extrema-direita, como muitos outros países, que são democracias de mercado.
Apenas acho que a nossa democracia é de baixíssima qualidade e nosso capitalismo é altamente controlado pelo Estado.
Ambiguidades e paradoxos, como disse ao início.
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Paulo R. de Almeida

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Carta aberta ao Sr. Presidente da República - Paulo Roberto de Almeida

 Carta aberta ao Sr. Presidente da República:

Senhor presidente,

Como deve ser de seu conhecimento, o atual presidente russo, Vladimir Putin, invadiu, sem qualquer provocação ou ameaça, um país soberano vizinho à Rússia, a Ucrânia, em fevereiro de 2022, com milhares de tropas fortemente armadas, matou e destruiu patrimônio de milhares de ucranianos, levou milhões ao refúgio, fuga, exílio e emigração, fez alertas  quanto ao uso de armas de destruição em massa e incorporou ilegalmente territórios da Ucrânia à soberania russa.

Como todos esses atos violam o direito internacional, assim como diversos artigos da Carta da ONU, eles foram duramente criticados por vários países, que aplicaram sanções previstas nesse instrumento multilateral, ao qual o Brasil solenemente aderiu na conferência de San Francisco, realizada em 1945, ao cabo da mais horrenda conflagração militar em toda a História, da qual nosso país participou.

Nossa diplomacia, como também é do seu conhecimento, sempre defendeu o Direito Internacional e especificamente a Carta das Nações Unidas. Nossa Constituição exibe, entre as cláusulas internacionais do Art. 4, a solução pacífica das controvérsias, assim como a não intervenção nos assuntos internos de outros Estados.

Assim sendo, como diplomata, mas sobretudo como cidadão brasileiro, indago quando o Brasil confirmará tais tradições diplomáticas e o simples acatamento a prescrições constitucionais e do direito internacional, e adotará a postura que se espera de um país que segue o seu próprio ordenamento constitucional e as obrigações multilaterais de um tratado internacional integralmente incorporado à nossa própria ordem legal.

Pela petição, estritamente amparada na Constituição e na Carta da ONU, subscreve, esperançoso de ver o país juntar-se às nações amantes da paz e do Direito Internacional, este cidadão que serviu às nobres tradições da diplomacia nacional durante várias décadas.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 7 de outubro de 2022

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Acesso à OCDE pelo Brasil: Memorando inicial

 Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Imprensa 

Nota nº 162

6 de outubro de 2022

 

Nota conjunta do Ministério das Relações Exteriores, da Casa Civil, do Ministério da Economia, da Secretaria-Geral da Presidência e da Secretaria de Governo - Conselho Brasil-OCDE

governo brasileiro tem a satisfação de informar o cumprimento de mais um importante passo no âmbito de suas relações internacionais, com o encaminhamento à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), transmitido por carta datada de 30 de setembro, do "Memorando Inicial" brasileiro, cuja entrega estava prevista no Roteiro de Acessão do Brasil à Organização.

O Memorando avalia o grau de alinhamento das legislações, das políticas e das práticas nacionais do país candidato aos padrões estabelecidos pela OCDE em 32 diferentes áreas ─ incluindo comércio, investimento, economia digital, saúde, educação, meio ambiente, concorrência, turismo, energia nuclear, entre outras.

A avaliação resultou de intenso trabalho das áreas competentes do governo e foi feita individualmente para cada um dos 230 instrumentos normativos definidos pela Organização para o processo de acessão do Brasil.

A entrega do documento antecede as discussões técnicas no âmbito dos 26 comitês e grupos de trabalho designados pela OCDE para examinar as informações submetidas pelo Brasil e todas aquelas que serão ainda fornecidas ao longo da negociação.

O Conselho Brasil-OCDE entende que a convergência aos padrões da OCDE é parte da estratégia de fortalecimento da inserção internacional do Brasil, aprimoramento de nossas políticas públicas e estímulo a reformas estruturais. 

[Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-imprensa/nota-conjunta-do-ministerio-das-relacoes-exteriores-da-casa-civil-do-ministerio-da-economia-da-secretaria-geral-da-presidencia-e-da-secretaria-de-governo-conselho-brasil-ocde]

Brasil continua desafiando o Direito Internacional no caso da Ucrânia - Guilherme Waltenberg (Poder 360)

 Diplomatas aumentam pressão para Brasil condenar referendo russo

Em reunião na embaixada do Reino Unido, União Europeia e 8 países condenaram referendo que anexou partes da Ucrânia à Rússia

GUILHERME WALTENBERG
Poder 360, 05.out.2022 (quarta-feira) - 18h46

Diplomatas da União Europeia, dos Estados Unidos e de outros 7 países condenaram, nesta 4ª feira (5.out.2022), o referendo russo que anexou 4 áreas da Ucrânia à Rússia.

Eles disseram que seus países não reconhecem a decisão e vão tentar aprovar outra resolução contra o conflito na próxima sessão do Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas), marcada para a próxima 4ª feira (12.out.2022).

Em evento na embaixada do Reino Unido, os diplomatas disseram que vão aumentar a pressão sobre o Brasil para que o país rejeite formalmente a anexação russa. Na última sessão, realizada na 6ª feira (30.set), o Brasil se absteve da resolução. O Brasil ocupa assento rotativo no conselho. A Rússia vetou a resolução.

“Vamos conversar com o Brasil. Para nós, é muito importante esse desafio. Levaremos todos os elementos dessa nova resolução que será votada na semana que vem [ao governo]“ , disse Ignácio Ibañez, embaixador da União Europeia no Brasil. Eis a lista dos diplomatas presentes:

Anatoliy Tkach – encarregado de negócios da Ucrânia;
Melanie Hopkins – encarregada de negóciosdo Reino Unido;
Ignacio Ybáñez – embaixador da União Europeia;
Douglas Koneff – encarregado de negóciosdos Estados Unidos;
Odd Magne Rudd – embaixador da Noruega;
Marc Bogdahn – encarregado de negócios da Alemanha;
Grant Morrison – encarregado de negócios da Austrália;
Simon Cridland – ministro-conselheiro do Canadá;
Richard Prendergast – embaixador da Nova Zelândia.

Segundo ele, serão feitos contatos com o Itamaraty e com a Presidência. A meta é que o Brasil se posicione contra a Rússia. Além do Brasil, China, Índia e Gabão se abstiveram.

Eleições 2022: contribuição para uma campanha antifascista - Marcos Rolim (Sul 21)

 

Sul 21

Opinião
|
5 de outubro de 2022
|
20:54

Contribuição para uma campanha antifascista (por Marcos Rolim) 

Marcos Rolim (*)

Após os resultados eleitorais do 1º turno, as pessoas com um mínimo de noção perceberam que havia algo muito assustador ali. Não porque a possível vitória de Lula no 1º turno não veio, mas porque os votos alcançados pela extrema-direita sinalizaram que teremos uma disputa acirradíssima pela frente e que os riscos são enormes. Diante dessa realidade, houve rapidamente a produção de conteúdos com a tese do “copo cheio”. Passou-se a repetir que, sim, a extrema-direita demonstrou força, mas a votação de Lula foi extraordinária, há uma vantagem de 6 milhões de votos e a esquerda cresceu no Parlamento, elegendo também bancadas mais diversas etc. O sentido da percepção do “copo cheio” é inequívoco: apesar dos pesares, estamos no caminho certo e a vitória virá, com certeza, algo que situa o 2º turno como uma “prorrogação”, para usar a expressão de Lula, o que é o mantra para não mudar os rumos da campanha. No mesmo sentido, muitas das lideranças da esquerda passaram a repetir discursos na base do “vamo-que-vamo”, parecendo mais torcedores do que dirigentes. Essa condução tende a se manter na medida em que as pesquisas indiquem vantagem para Lula, mas penso que esse caminho é o que agrega os maiores riscos e que, pelo contrário, a frente democrática precisa fazer uma campanha muito diferente no 2º turno, porque estamos diante de uma ofensiva bolsonarista que poderá, inclusive, virar votos dados a Lula pela ativação do antipetismo. 

Uma mudança a ser assegurada é a necessidade de politizar a disputa com propostas de reformas, que tenham o efeito de demarcação e que permitam que Lula passe à ofensiva. Um dos problemas até agora é que a campanha de Lula não foi centrada em propostas. Tudo se passa como se ele, Lula, fosse a proposta. Cada um pode lembrar de um compromisso ou outro mencionado, mas não há propostas centrais para repetir todo o tempo e para que todos saibam do que se trata. Isso não foi construído, porque Lula deu atenção prioritária aos acordos políticos e à busca de alianças, de uma forma tal que a campanha foi sendo construída “por cima”, por dentro das instituições tradicionais, sem uma estratégia de mobilização por reformas. 

Enquanto isso, Bolsonaro trabalha “por baixo” amalgamando sua militância em torno de uma pauta simples e manipulatória, via redes sociais e aplicativos, mas muito eficiente. A síntese é a tríade criada pelo Integralismo brasileiro “Deus, Pátria e Família” que se dissemina em um magma de significados onde a esquerda é acusada de “não ser cristã”, “não ser patriota” e querer “o fim da família”. Não há qualquer efeito em assinalar que o lema é fascista e desprezar ou xingar eleitores de Bolsonaro só cristaliza suas posições.

O fato é que, com a estrutura imagética criada, o fascismo foi ampliando seus espaços e ganhando o apoio de eleitores que não são, em sua ampla maioria, fascistas, mas que compartilham valores conservadores e autoritários e que foram radicalizados por um discurso de ódio que tem anos de acúmulo e que tem se valido dos recursos mais avançados da tecnologia de informação manipulada pela far-right mundial. Bolsonaro é tosco, mas o bolsonarismo é uma estratégia sofisticadíssima de guerra cultural. 

Em síntese, o bolsonarismo conquistou uma hegemonia, no sentido gramsciano, sobre a direita, o que levou ao quase desaparecimento do centro democrático no Brasil. É preciso compreender que esse resultado foi facilitado pela ausência de uma plataforma de valores contraposta pela esquerda e por ambiguidades e silêncios persistentes em torno dos seus próprios erros.

Uma parte expressiva da votação de Lula no 1º turno sequer se deu em torno de expectativas programáticas sobre seu governo, sendo expressão do compreensível e legítimo pavor diante da hipótese da reeleição de Bolsonaro, o que se traduz também por um baixo engajamento militante e por uma “paixão fria”. Não é por acaso, aliás, que Bolsonaro tenha realizado mobilizações muito mais amplas que a esquerda nos últimos anos e tampouco se pode explicar o fenômeno pela presença de incentivos como o financiamento de grandes empresários. Há um engajamento político-ideológico nas mobilizações de rua do bolsonarismo que traduz uma adesão mais profunda. 

Nesse quadro, adesões de personalidades e apoios de entidades e grupos a Lula têm o seu papel, mas não produzirão o ambiente necessário para a derrota do fascismo. Aqui, o tema mais complicado é como enfrentar as acusações de corrupção e as peças de campanha da extrema-direita que com fakes news, montagens e outros artifícios, tentam identificar Lula com o crime.  Primeiro, é preciso romper a ambiguidade sobre o tema e ressaltar que todos os governos, nos diversos países, mesmo os mais evoluídos, apresentam casos de corrupção, mas, no Brasil, há uma corrupção endêmica e estrutural e uma forte noção de impunidade disseminada socialmente. Essa bandeira segue nas mãos da extrema-direita, o que é também resultado da opção equivocada de não tratar o tema ou mesmo considerá-lo um “falso problema”, expressão de manipulação midiática. Em verdade, a corrupção é uma praga e enfrentá-la é um dos maiores desafios civilizatórios no Brasil. 

Ato contínuo, Lula deveria apresentar propostas claras anticorrupção, promovendo um fato de alto poder simbólico que poderia ser, por exemplo, o anúncio de alguém com a estatura de Joaquim Barbosa como futuro ministro da Justiça. Barbosa foi duro nos processos do mensalão que condenaram lideranças do PT. Sua indicação para um posto destacado no governo Lula caracterizaria a proposta de um governo de salvação nacional – porque é disso que se trata, expressão de uma frente democrática e não de um “governo do PT”. 

Esse movimento permitiria que a campanha abordasse com mais propriedade temas como a indicação para a Procuradoria Geral da República (PGR). Quando perguntado a respeito, na entrevista ao Jornal Nacional, Lula preferiu não se comprometer sequer com a escolha via lista tríplice. Deveria anunciar que seu governo elaborará uma PEC para que a indicação à PGR seja, necessariamente, feita a partir de lista tríplice, critério respeitado por ele e por Dilma e ignorado por Bolsonaro. Lula deveria se comprometer com a ideia de que decisões pelo arquivamento de denúncias feitas pela PGR fossem examinadas por instância revisora, a exemplo das Procuradorias de Justiça nos Estados. Poderia anunciar que enviará projeto de lei ao Congresso proibindo a compra de bens acima de um determinado valor com dinheiro em espécie e anunciar a constituição de um “Conselho Nacional de Promoção da Integridade” formado por figuras sem filiação partidária, reconhecida idoneidade moral e notável conhecimento, encarregado de formular uma política para a promoção de condutas éticas no serviço público. Sem propostas contra a corrupção – esse é o ponto, Lula seguirá na defensiva, explicando que é inocente e relatando o que seus governos fizeram, o que não exigirá deslocamento no discurso de Bolsonaro.  

Ao mesmo tempo, a campanha deve definir como sua maior prioridade a qualificação do Ensino fundamental no Brasil ao invés de se referir apenas às universidades. Nesse tema, o Governo Federal pode atuar em auxílio aos gestores estaduais e municipais, fixando parâmetros de avaliação, viabilizando uma revolução tecnológica nas escolas e enfrentando o déficit educacional agravado por dois anos de pandemia que compromete o futuro de uma geração. 

É preciso também propostas para se comunicar com públicos específicos. Por exemplo, as polícias brasileiras, onde a adesão a Bolsonaro é muito ampla. O que, de fato, Bolsonaro está assegurando aos policiais? A resposta é: nada desde uma perspectiva material, mas muito em termos simbólicos. Ele é quem, afinal, aparece como um “defensor dos policiais” diante de uma tradição da esquerda de estranhamento diante das polícias e de denúncias das arbitrariedades e abusos cometidos por elas. Bem, o que Lula poderia assegurar aos policiais em uma perspectiva republicana? Muitas coisas, a começar pelo compromisso em favor da mudança no modelo de polícia, sustentando, entre outros pontos, a introdução da carreira única em cada instituição. Ou seja, fazer com que valha no Brasil a regra de todas as polícias do mundo: uma só porta de entrada em cada polícia (e não duas, como temos hoje, uma para os que devem mandar, outra para os que devem obedecer), o que asseguraria aos policiais uma carreira de verdade em que todos os chefes de polícia e comandantes gerais um dia tenham sido agentes ou patrulheiros. As cúpulas policiais não apoiam essa proposta, mas a base das polícias apoia e teria nela uma reforma capaz de mudar suas vidas. Um detalhe, Bolsonaro não tem a menor condição de propor algo do tipo. Com essa proposta, se teria algo muito concreto para fazer campanha nas corporações onde cada voto conquistado vale dois. O mesmo raciocínio vale para muitas outras áreas onde se necessita, urgentemente, de um discurso propositivo.   

A radicalização da disputa integra a estratégia de ruptura com a democracia desejada por Bolsonaro. Sem uma plataforma de reformas pelas quais se deva lutar, a disputa eleitoral tende a ser mais agressiva e pessoalizada e os espaços de racionalidade se tornarão cada vez mais rarefeitos. A saída diante do fascismo exige, em síntese, criação política para a mobilização nacional. 

(*) Marcos Rolim é Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

Eleições 2022: comportamento do brasileiro - E se for isto?! - Ivann Lago

 E se for isto?!

Ivann Lago

Professor e Doutor em Sociologia Política

“O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Capitão do Exército expulso da corporação por organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.

Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. (...)

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício. 

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo?”

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

UE acerta novo pacote de sanções contra Rússia (DW)

 UE acerta novo pacote de sanções contra Rússia

Deutsche Welle, 5/10/2022

Oitavo conjunto de retaliações contra Moscou é resposta do bloco à anexação ilegal de territórios ucranianos e inclui limite a preço do petróleo russo.

Os países integrantes da União Europeia chegaram nesta quarta-feira (05/10) a um acordo sobre novas sanções contra a Rússia. O novo pacote, o oitavo desde o início da invasão russa à Ucrânia em fevereiro, passará por um processo de aprovação formal e, caso não haja objeções, entra em vigor nesta quinta-feira.

"Acabamos de chegar a um acordo político sobre novas sanções contra a Rússia: uma resposta contundente da UE à anexação ilegal de territórios ucranianos por Putin", informou no Twitter o governo da República Tcheca, que ocupa a presidência rotativa da UE.

Limite do preço do petróleo

O pacote inclui o compromisso para estabelecer um teto para o preço do petróleo russo se o valor for acordado com o G7 (grupo de países mais industrializados do mundo) e outros países. O teto do preço do petróleo consiste em só permitir o transporte do petróleo russo e seus derivados para países fora da UE se Moscou vendê-lo a um preço igual ou inferior ao fixado, para reduzir, dessa forma, a receita de que Moscou dispõe para financiar a guerra contra a Ucrânia e também limitar os impactos na crise energética.

O acordo foi alcançado após a aceitação da exigência de Grécia, Chipre e Malta de que a proposta só iria adiante se implementada por uma coalizão mais ampla de países, temendo que suas companhias marítimas percam participação de mercado para concorrentes.

Contra a propaganda do Kremlin

A nova rodada de sanções também atingirá indivíduos, acrescentando à lista de sanções individuais os responsáveis pró-russos nas regiões ucranianas de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporíjia, ocupadas pela Rússia. 

As retaliações proíbem ainda os cidadãos europeus de participarem dos conselhos de administração de empresas públicas russas.

A UE também incluirá na lista de russos sancionados Alan Lushnikov, o maior acionista da fabricante de armas russa JSC Kalashnikov Concern, além de artistas ou músicos que participaram de atos de propaganda do Kremlin.

Também é destaque a inclusão da empresa russa Alrosa, uma das maiores produtoras de diamantes do mundo. Além disso, também fazem parte da lista a empresa JSC Goznak, responsável, entre outras coisas, pela impressão dos passaportes que Moscou distribui nas regiões ocupadas de Donbass, e outras empresas relacionadas ao fornecimento de armas ao exército russo e uma envolvida em pesquisas nucleares para uso civil.

A UE também vetará a exportação de tecnologia nos setores de aviação, eletrônicos e produtos químicos e siderúrgicos, entre outros, para privar o Kremlin de tecnologias-chave para a máquina de guerra russa.

"Kremlin continuará pagando"

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, saudou o acordo sobre o pacote de sanções. "Nunca aceitaremos os falsos referendos de Putin nem qualquer tipo de anexação na Ucrânia. Estamos determinados a continuar fazendo o Kremlin pagar", escreveu ela no Twitter.

Uma resposta mais reservada veio do ministro das Relações Exteriores da Lituânia, Gabrielius Landsbergis, que criticou o número de isenções incluídas no último pacote. "O tempo para pacotes fortes acabou e, ao ler os documentos apresentados, às vezes tem-se a impressão de que há mais exceções do que sanções", disse ele a uma rádio lituana na quarta-feira. "No entanto, é melhor do que nada, do que nenhum pacote", disse ele, acrescentando: "Estamos progredindo, embora de forma bastante fraca".

md/rk (Reuters, DPA, EFE, AFP, Lusa)


terça-feira, 4 de outubro de 2022

O futuro do Brasil, 1: declínio da democracia brasileira? - Paulo Roberto de Almeida

 futuro do Brasil, 1: 

declínio da democracia brasileira?

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

Notas sobre o primeiro dos dois destinos do Brasil em 30/10/2022: a via antidemocrática. 

 

Sumário: 

1. Axiomas preliminares

2. A História não se repete, nem mesmo como farsa

3. Uma nova Idade das Trevas?

 

1. Axiomas preliminares

Não há, nem haverá “fascismo brasileiro”, mesmo que vença as eleições de 30 de outubro de 2020 aquele candidato que proclama ter um torturador confirmado, e condenado, como seu herói pessoal. No máximo, o que teremos será uma espécie de lumpen-fascismo, nem novo. nem velho, e que, na verdade, nada mais representará, a exemplo de vários outros países tomando esse mesmo caminho tortuoso da direita extrema, do que um mero governo de extrema-direita, mas sem qualquer organização partidária ou fundamentação doutrinal: um quase fascismo puramente instintivo que representa a mais notável agregação de ignorância, truculência e estupidez capaz de se concentrar num único “comandante” sem qualquer qualidade, sequer carisma próprio. Um contraste, contudo, com os partidos ou movimentos de extrema direita desses outros países: bem diferente dos partidos ideológicos europeus, da sua vertente direitista mais extrema, ou dos ultraconservadores americanos, a extrema direita brasileira não tem líderes reconhecidos, não tem pensadores reputados, não tem sequer uma organização própria. Ela é um ajuntamento de oportunistas, que, em sua grande maioria, trocariam facilmente seu extremismo por alguma outra tendência momentânea de conveniência, enquanto durar essa oportunidade de subir ao topo do poder. O poder, para a maioria deles, não é um objetivo preciso, uma finalidade voltada para a construção de qualquer coisa organizada no Brasil, e sim, apenas um meio para capturar recursos públicos, ou seja, os da coletividade.

Este é o objetivo que os une verdadeiramente: a apropriação de fundos estatais, por quaisquer canais e ferramentas. A ideologia, se ela existe, vem num distante quinto lugar, se por acaso entrar em linha de conta, o que é muito pouco provável. Esse agrupamento de sanguessugas predatórios encontra-se na melhor situação possível: poder apropriar-se desses recursos sem ter a responsabilidade, ele mesmo – ou seja, o conjunto de “representantes do povo” –, pela gestão efetiva das contas públicas, que fica entregue aos burocratas do Executivo. Não se trata de um grupo novo, nem mesmo inédito na política brasileira, mas ele foi se firmando desde aproximadamente uma década atrás. Parece ter construído um sistema que se poderia chamar de “parlamentarismo de fachada”, ou “parlamentarismo fake”: os representantes do povo manipulam a seu bel prazer os fundos existentes – partidário e eleitoral –, manipulam como querem as emendas parlamentares, até inventaram emendas secretas, que representam o ideal para todos, pois que circulam impunemente por canais obscuros da burocracia governamental e pelas comissões e dutos do Congresso.

Ora, não se tem fascismo quando existe um parlamento funcionando, até dotado de muita liberdade de movimentos, quando se trata de organizar o saque e a rapina do Estado. Essa modalidade híbrida de governança não é uma doença de pele, que poderia ser eventualmente extirpada por alguma pomada eleitoral em 2022, ou mesmo mais adiante. Ela já penetrou fundo no corpo do Estado, mesmo sem deixar muitos traços na epiderme da sociedade brasileira. Ou seja, ela persistirá por mais tempo do que um ou dois períodos de mandatos presidenciais, e é completamente indiferente se essa governança da rapina se apresenta sob forma de populismos de esquerda ou de direita. Esse fascismo instintivo é indiferente a ideologias progressistas ou reacionárias, tanto que partidos supostamente sociais, ou progressistas, também aprovaram os desvios de verbas públicas. Não foi apenas por puro acaso que esquerda e direita se juntaram nesse “fascismo pecuniário”. 

 

2. A História não se repete, nem mesmo como farsa

Nas condições reais do caso brasileiro, pode-se, talvez, estabelecer o seguinte: não cabe atribuir qualquer intenção fascista ao “bolsonarismo” atualmente no poder, e disputando um novo mandato, pois não se lhe reconhecem nem liderança própria, nem doutrina, nem movimento, nem alguma coerência no estabelecimento de qualquer projeto para a nação, mesmo que seja um puramente destrutivo. Pode-se, no entanto, reconhecê-lo como mero fenômeno, mas com “b” minúsculo, capaz de mobilizar os frustrados dispersos da sociedade brasileira, assim como Trump reuniu os frustrados do declínio industrial do país. Nos dois casos, os órfãos da crise econômica ainda são muitos, e não apenas em função da recessão provocada pela pandemia, ou antes pela recessão deixada pelo último mandato petista, lá atrás, e que abriu as portas ao atual mandatário. Tais circunstâncias podem significar tanto a derrota quanto a sobrevivência de cada um desses projetos profundamente antidemocráticos. 

A ocorrência de eventual sucesso eleitoral não concede, porém, ao vencedor uma organicidade maior do que essa fugaz vitória nas urnas, nem será capaz de alavancar um verdadeiro movimento, en bonne et due forme, na ausência dos elementos próprios ao regime fascista: 1) a liderança carismática, como de fato possuíam Mussolini, Hitler, Perón, Chávez, mas não Trump ou Bolsonaro; 2) o partido, guiado por uma doutrina explícita: i fasci, das Volk, Justicialismo, Bolivarianismo, o que falta tanto ao “trumpismo”, quanto, e menos ainda, ao “bolsonarismo”; 3) uma dinâmica política capaz de sufocar as instituições em direção de um regime autocrático, como fizeram aqueles caudilhos, no seguimento de um amplo uso de mentiras de todos os tipos, o que, aliás, também vem sendo feito pelos dois presidentes. 

Mas, não cabe enredarmo-nos num inútil debate terminológico sobre se existe, ou não, qualquer tendência fascista na atual conjuntura brasileira. O mais importante seria reconhecer uma realidade puramente prática, e que tem a ver com o momento presente da vida política brasileira: o país encontra-se numa encruzilhada, entre declínio de sua democracia, que foi representado pela vitória do “bolsonarismo”, desde 2018, e o reforço da antidemocracia, eventualmente a partir de 2023, em caso de vitória neste 30 de outubro de 2022. O desenlace dessa encruzilhada e os possíveis caminhos a serem seguidos a partir de agora dependem de como sejam encarados os desafios colocados aos protagonistas principais e incontornáveis da sociedade brasileira: seus eleitores e cidadãos ativos. 

A dúvida ainda não respondida é esta: e se a sociedade não for nada do que gostaríamos que ela fosse: aberta, tolerante, progressista, acolhedora das causas das minorias, pacifista, solidária, “cordial”, enfim, democrática e educada. E se tudo isso não corresponder aos simples fatos da vida? No sentido contrário: e se ela for realmente conservadora, saudosista e propensa a aceitar algum “salvador da pátria”: Vargas, Jânio, Lula, Bolsonaro. Ela é fundamentalista, armamentista, intolerante, racista, autoritária, ignorante e tosca? 

Ficamos decepcionados com essa segunda perspectiva? Provavelmente sim, mas apenas pesquisas qualitativas dotadas de certo refinamento metodológico poderiam responder a essas dúvidas. Finalmente, a aparente popularidade do presidente – depois das muitas denúncias que afastaram parte da classe média que o tinha eleito – pode estar restrita a uma franja popular que temporariamente beneficiada pela ajuda emergencial, além daquelas categorias também favorecidas pela política oficial: agronegócio, alta finanças, capitalistas. A continuidade das políticas de inclusão social em formato ampliado pode redundar no reforço das chances eleitorais do atual presidente, o que implica, de fato, a deterioração continuada do ambiente democrático no Brasil. 

 

3. Uma nova Idade das Trevas?

A despeito do alerta anterior contra o mau uso de analogias históricas, o título desta seção parece incorrer no mesmo pecado venial. A designação, entretanto, não tem tanto a ver com um recuo absoluto da nação, sua economia e governança, para o estado de anomia geral das instituições e estruturas produtivas como na sequência das invasões bárbaras no império romano do Ocidente, e sim com o fato de os novos bárbaros brasileiros serem, precisamente, pessoas ignorantes no amplo espectro da gestão governamental e no campo especializado da política externa e da diplomacia do Estado. No terreno artístico-cultural e no das instituições científicas de pesquisa e desenvolvimento, o barbarismo dos atuais governantes  já foi mais de uma vez demonstrado, podendo se afirmar que já existe um fosso profundo separando as entidades universitárias e as autoridades do governo, de modo geral, e as da educação em particular. No meio ambiente e na negação da pandemia, a imagem internacional do país já foi praticamente soterrada, como ocorreu no caso do obscurantismo antivacinal.

Tal Idade das Trevas não cobre unicamente os temas mais evidentes de costumes e assuntos culturais, mas se estende a vários outros terrenos das políticas públicas, com destaque para o meio ambiente e para a diplomacia, que concentram o essencial das reações negativas da opinião pública internacional com respeito ao presidente e seus principais auxiliares nessas áreas. A suposta racionalidade de militares integrados ao governo, assim como a presença de alguns tecnocratas de boa formação não foi capaz de compensar a má imagem do Brasil no cenário internacional, a ponto de o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero ter afirmado claramente que o Brasil se converteu em “pária internacional”. De fato, o Brasil encontra-se isolado como nunca na esfera internacional, por ações e omissões do presidente e do seu ex-chanceler acidental, e de uma política externa como nunca antes tinha sido experimentada no decorrer da história bissecular da diplomacia profissional. 

Mas a política externa ocupa uma parte muito pequena das preocupações dos vários grupos políticos articulados basicamente em termos de questões domésticas. Ela ocupa uma parte ainda menor da atenção da grande maioria do eleitorado e deve ser totalmente ignorada pela população mais pobre, cuja única angústia encontra-se na sobrevivência diária, assim como na sustentação familiar. Essa mesma população, grande parte do eleitorado, não tem a menor ideia de porque alguns indivíduos de linguagem incompreensível começam a falar de uma coisa chamada fascismo, que eles ignoram completamente o que seja. Não parece haver preocupação maior, igualmente, com o noticiário sobre a corrupção da família presidencial, uma vez que a população mais pobre sabe que os políticos são corruptos e ela não espera que seja de outra forma. O que a população pobre quer saber é se o político, ladrão ou não, vai efetivamente se preocupar com a sua sorte, em matéria de renda, emprego, segurança e futuro dos filhos. As acusações de “rachadinha” ou alertas sobre ameaças às instituições de Estado pelas ações e omissões do presidente passam muito longe de suas preocupações diárias. 

Em outros termos, enquanto não ocorrer algum desastre econômico, causado pelo esgotamento completo das finanças públicas, com mais desemprego e perda de renda, a popularidade do governo e da figura do presidente deve continuar em níveis satisfatórios, o que quer que façam as oposições políticas ou as deste núcleo desimportante de acadêmicos destacados da realidade da população mais humilde. O mais provável, portanto, é que continue essa Idade das Trevas, que só o é para nossa frágil percepção da realidade da maioria do povo. 

O que ocorrerá em caso de vitória da atual quadrilha no poder? Se não houver alternância política em 30 de outubro de 2022, com base numa plataforma democrática, com propostas economicamente sustentáveis, a atual Idade das Trevas pode continuar no Brasil, não como construção de algum fascismo de novo tipo, mas como continuidade do velho fascismo pecuniário que já ficou consagrado nas práticas orçamentárias do parlamentarismo de fachada. Sou bastante pessimista no tocante a qualquer uma dessas perspectivas, de vitória ou de derrota dos novos bárbaros. O caráter predatório do estamento político parece ser uma qualidade muito bem partilhada pela maior parte dos políticos profissionais, de quaisquer tendências. Como eles não parecem exibir muita virtù, não cabe sequer esperar que possam ser bafejados pela fortuna. Eles estão bem focados em construir sua própria fortuna pessoal, no sentido mais vulgar da palavra. Em outros termos, minha aposta, nesta primeira nota sobre nosso futuro imediato, é sobre o declínio irresistível da atual democracia de baixa qualidade do Brasil, qualquer que seja o vencedor no pleito de 30 de outubro de 2022. Uma segunda nota tratará do improvável salvamento da democracia pelo afastamento dos novos bárbaros, uma possibilidade que ainda figura no horizonte das escolhas de um eleitorado fragmentado por todos os tipos de propaganda mentirosa.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4248, 4 de outubro de 2022, 5 p.