Ibn Khaldun: Uma explicação do funcionamento da sociedade humana
Por Beatriz Bissio
Correio do Instituto de Cultura Árabe, ano 5, n. 221, de 30.10 a 5.11.2009
O Magreb do século XIV, que deu ao mundo uma personalidade como o historiador Ibn Khaldun (Túnis, 1332- Cairo, 1406), um dos mais brilhantes exemplos do pensamento islâmico de todas as épocas, não era nem foi nunca o coração dos domínios muçulmanos, e sim uma região periférica. Porém, Ibn Khaldun teve oportunidade de conhecer e morar nos grandes centros de poder, que também eram os polos de efervescência cultural, notadamente o Cairo, sob controle mameluco, onde exerceu a função de cádi (juiz) e lecionou na Universidade de al-Azhar.
No período compreendido entre os séculos XIII e XIV, as fronteiras do mundo muçulmano mudaram substancialmente. Na área oriental, uma dinastia mongol, vinda da Ásia Oriental, conquistou o Irã e o Iraque, e colocou um fim ao califado abássida em Bagdá, em 1258. Convertidos ao Islã, os mongóis foram freados na sua tentativa de marchar para o oeste pelo exército egípcio formado por escravos militares (mamelucos). Oriunda do Cáucaso e da Ásia Central, a elite militar mameluca governou o Egito por mais de dois séculos (1250-1517); também governou a Síria a partir de 1260, e controlou as cidades santas da Península Arábica. Na parte ocidental, o declínio da dinastia almôada deu lugar a vários estados; no Magreb, entre eles, o dos marínidas no Marrocos (1196-1465) e o dos hafsidas, na Tunísia (1228-1574). A maior parte de Al-Andalus, a Península Ibérica muçulmana, de onde provinha a família dos Beni Khaldun, caiu nas mãos dos reinos cristãos do Norte e, em meados do século XIV, do antigo esplendor muçulmano só restava o reino de Granada, no sul.
As guerras e lutas internas que caracterizaram todo o século XIV provocaram a ruína de muitos centros urbanos e o empobrecimento das finanças públicas no mundo islâmico. Mas, no Magreb nesse século se consolida uma identidade cultural, com características singulares dentro do mundo islâmico. Afastado longos anos da sua terra natal, à qual nunca regressou depois de partir num auto-exílio, Ibn Khaldun cultivou até o fim da vida as raízes magrebinas e, sempre que possível, mostrou orgulho em pertencer ao entorno geopolítico e cultural forjado sob a influência de al-Andalus, terra de seus antepassados.
Abdesselam Cheddadi, responsável pela mais recente e completa tradução comentada da obra do sábio muçulmano para o francês, afirma que Ibn Khaldun foi testemunho de uma época de transição, na qual os países muçulmanos trataram de preservar o conhecimento do período clássico nos planos jurídico e religioso, assim como nos domínios científico, artístico e literário. Nesse momento histórico, o Islã estava mais voltado para o passado do que para o futuro.
Quando Ibn Khaldun assume a tarefa de sistematizar todo seu conhecimento e sua experiência em um livro – missão que se impõe durante quatro anos de reclusão em uma fortaleza do interior da Argélia, como destaca na sua autobiografia – ele busca dar uma resposta radical ao desafio vivido pelo Islã: fazia-se necessária uma nova ciência, que fornecesse leis universais capazes de explicar o funcionamento das sociedades humanas. É essa ciência que ele pretende fundar com sua mais importante obra, a Muqaddimah, pela qual passou à posteridade. O esforço não foi em vão: esse livro – na verdade os Prolegómenos a uma História Universal em vários volumes - é considerado há mais de um século uma obra clássica do pensamento histórico, a primeira tentativa conhecida de criar uma ciência das sociedades independente da teologia e da filosofia. Afastando-se da tradição, Ibn Khaldun chegava aos limites possíveis, na época, da independência de pensamento.
Islã: Divisão política, unidade cultural e religiosa
Se o mundo islâmico apresentava no século XIV um cenário convulsionado, com a economia e a política em fase crítica, a instabilidade nesses terrenos não conseguiu destruir a unidade cultural; ao contrário, ela tornava-se mais profunda à medida que novos contingentes humanos se convertiam à fé muçulmana. De fato, a essa altura, seguindo o vale do rio Nilo e a costa oriental africana, a religião islâmica continuava a sua expansão, ao longo das rotas comerciais, levada muitas vezes pelos próprios mercadores e indiferente aos conflitos políticos e militares. O avanço continuou pelo Sahel e pela margem sul do deserto do Saara, chegando ao coração da África.
Ibn Khaldun não observa a conflitiva situação do Magreb e do mundo islâmico com a perspectiva de um progresso linear, mas no contexto de uma evolução cíclica: uma fase negativa que põe fim a um ciclo do poder será seguida necessariamente de uma fase positiva, de reconstrução. Assim, o século XIV se apresentaria como um período de espera de um novo ciclo da civilização (umram) sob a égide de um novo povo – que ele identifica, perto do fim da sua vida, com os turcos. É alicerçado nessa concepção da história que Ibn Khaldun, apesar das dificuldades e desafios desse momento – incluindo os horrores da devastadora peste negra, que vitimou seus pais e seus primeiros mestres e dizimou a população do mundo árabe-islâmico tanto quanto a da Cristandade - não desenvolve uma visão pessimista. Na verdade, ele acredita que a ordem humana, uma vez atingida a maturidade, é essencialmente estável, quase imutável. E, na sua avaliação, essa maturidade tinha sido atingida pela civilização islâmica.
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Beatriz Bissio é jornalista, socióloga e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Foi fundadora e diretora da revista “Cadernos do Terceiro Mundo”.
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