A privatização cotidiana
Rolf Kuntz
Blog do Estadão, 11 de maio de 2011
O brasileiro terá subido um degrau na vida quando for somente esfolado por um Fisco voraz para sustentar governos incompetentes e perdulários. Sua situação, neste momento, é pior que essa. Ele é espoliado também para sustentar os interesses privados de partidos políticos, parlamentares, aliados do governo e uma porção de lucrativas entidades – fajutas ou não – oficialmente descritas como sem fins lucrativos. Mas não há sinal de upgrade. Por enquanto, o mais provável é o destino oposto, porque é quase certa a oficialização do financiamento público de campanhas. Com isso, a política brasileira continuará tão indecente quanto é hoje e o nariz de palhaço do contribuinte ficará mais ostensivo.
O Fundo Partidário distribuirá este ano R$ 301,5 milhões. Desse total, R$ 265,3 milhões correspondem à dotação orçamentária básica. O resto provém de multas cobradas pela Justiça Eleitoral e destinadas aos partidos, como determina a Lei n.º 9.096, de setembro de 1995. A dotação básica foi inflada com R$ 100 milhões, em janeiro, em manobra da Comissão Mista de Orçamento. Esse acréscimo servirá para cobrir dívidas de campanha do ano passado. A história pode ser escandalosa e, segundo o Estado, a presidente Dilma Rousseff chegou a examinar a possibilidade de um veto e foi dissuadida por auxiliares. Mas a manobra de socorro aos partidos endividados foi facilitada por uma aberração legal, o Fundo Partidário.
Não há justificativa política ou moral para a obrigação, impingida ao contribuinte, de financiar partidos, entidades privadas. Não se trata, nesse caso, de subsídios ou auxílios concedidos com base em considerações de interesse estratégico ou destinados a sustentar serviços essenciais, como aqueles prestados pelas Santas Casas. Falar em promoção da democracia para defender essa mamata é abusar das palavras.
Partidos políticos são legalmente definidos como pessoas jurídicas de direito privado. Cidadãos podem criá-los, fundi-los e extingui-los livremente, segundo o artigo 17 da Constituição Federal. Mas, segundo o mesmo artigo, os partidos “têm direito a recursos do Fundo Partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei”.
A garantia de dinheiro público a entidades privadas – e vinculadas à defesa de interesses corporativos, econômicos, ideológicos etc. – é uma das aberrações abrigadas na Constituição Federal. Algumas, como a limitação dos juros, no artigo 192, foram corrigidas. Outras, como a divisibilidade dos juízes, implícita no artigo 106, permanecem no texto. Segundo esse artigo, “os Tribunais Regionais Federais compõem-se de, no mínimo, sete juízes”, sendo um quinto recrutado dentre advogados com mais de dez anos de efetiva atividade, etc. Um quinto de 7 é 1,4.
Muito mais importante que essa curiosidade anatômico-aritmética é a confusão entre o público e o privado. A presença dessa geleia política na Constituição não deve ser casual. É característica da história brasileira e manifesta-se na rotina das instituições e dos organismos públicos. As chamadas “verbas compensatórias” servem a interesses particulares de senadores e deputados. São usadas, por exemplo, para o custeio de escritórios e de seus contatos com as bases eleitorais. Por que diabos deve o contribuinte financiar a carreira política de cada parlamentar? Por que não deixar cada um cuidar de suas despesas, com recursos próprios ou, talvez, com auxílio de seus aliados ou de seu partido? Esse custo lançado na conta do pagador de impostos é simplesmente mais um abuso, cometido, como tantos outros, em nome da democracia.
Sindicatos também são entidades privadas e representam interesses privados. Mas são beneficiados pelo imposto sindical, agora dividido também com as centrais, graças ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pode-se até discutir se o imposto sindical tem algum sentido, mas o uso desse tributo, no Brasil, tem servido principalmente para alimentar distorções na organização trabalhista e para sustentar um peleguismo cada vez mais escancarado. É, novamente, dinheiro cobrado compulsoriamente e usado para distribuir benefícios a particulares – incluídos os grupos políticos aliados aos pelegos.
O empreguismo e a distribuição de postos a aliados são formas tradicionais de privatização não declarada. Seu uso se acentuou nos últimos oito anos. A novidade recente é a disputa entre o PT e os partidos da base, motivada pelo apetite excepcional exibido neste ano pelos petistas.
Pulverizar verbas orçamentárias por meio de emendas para atender a interesses eleitorais e beneficiar entidades amigas – e às vezes fraudulentas – é prática tradicional. Também nesse caso as atenções de suas excelências passam longe do interesse público. Diante de todos esses fatos, a manobra para pagar as dívidas de campanha é quase rotineira.
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