Paulo Roberto de Almeida
Janer Cristaldo
terça-feira, novembro 13, 2012
Me perguntei ontem se, com a desastrada aprovação pelo Congresso da obrigatoriedade de diploma para o exercício da profissão de historiador, quem não tivesse diploma poderia ou não produzir obras historiográficas. Paulo Paim, o autor do infame projeto, apressou-se a afirmar que não, que o projeto não impede que especialistas de outras áreas, como advogados, jornalistas e médicos, dêem palestras e escrevam livros sobre história. Mas que as aulas de história devem ser ministradas por um diplomado. "Naturalmente, não vou querer que arquiteto forme médico, por exemplo. Por que ia ser diferente no caso de historiador?"
Sofisma barato de quem não tem argumentos. É claro que não se pretende que um arquiteto forme médicos. Mas por que um historiador não poderia formar historiadores? Citei em minha crônica um caso emblemático, o de Hélio Silva. Proctologista de profissão, tornou-se um dos mais importantes historiadores do século passado. Além de escrever uma História da República Brasileira em 21 volumes, escreveu mais dezessete obras sobre o ciclo de Vargas e mais seis sobre o regime militar pós-64. O que Paulo Paim está dizendo é que este historiador, que escreveu nada menos de 44 volumes sobre a história do país, não pode ministrar aulas de história. Claro que Paulo Paim nada objetaria a um Darcy Ribeiro, que sem ter curso superior foi reitor.
No entendimento do senador, pode lecionar história, isto sim, um moleque que mal saiu dos bancos escolares e não tem seu nome publicado nem em listas de aniversário. Um homem que dedicou toda sua vida ao estudo de história é inepto para lecionar história. Em junho de 2006, Cláudio de Moura Castro falava de caso semelhante na Veja: "Na UFRJ, um aluno brilhante de física foi mandado para o MIT antes de completar sua graduação. Lá chegando, foi guindado diretamente ao doutorado. Com seu reluzente Ph.D., ele voltou ao Brasil. Mas sua candidatura a professor foi recusada pela UFRJ, pois ele não tinha diploma de graduação. Luiz Laboriou foi um eminente botânico brasileiro, com Ph.D. pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e membro da Academia Brasileira de Ciências. Mas não pôde ensinar na USP, pois não tinha graduação".
Estas peripécias, eu as conheço de perto. Já falei delas. Começo pelo início. Nunca me ocorreu lecionar na universidade. Eu voltara da Suécia, cronicava em Porto Alegre e fui tomado pela resfeber, doença nórdica que contraí na Escandinávia. Traduzindo: febre de viagens. Li nos jornais que estavam abertas inscrições para bolsas na França e me ocorreu passar alguns anos em Paris. A condição era desenvolver uma tese? Tudo bem. Paris vale bem uma tese. Tese em que área? Busquei algo que me agradasse. Na época, me fascinava a literatura de Ernesto Sábato. Vamos então a Paris estudar Sábato.
Mas eu não tinha o curso de Letras. O cônsul francês, ao me encontrar na rua, perguntou-me se eu não podia postular algo em outra área. Em Direito havia mais oferta de bolsas. Poder, podia, eu cursara Direito. Mas do Direito só queria distância. Mantive minha postulação em Letras. Para minha surpresa, recebi a bolsa. A França me aceitava, em função de meu currículo, para um mestrado em Letras, curso que eu jamais havia feito. Nenhuma universidade brasileira teria essa abertura. Aliás, os componentes brasileiros da comissão franco-brasileira que examinava as candidaturas, tentaram barrar a minha. Fui salvo pelos franceses.
Fui, vi e fiz. Em função de meu currículo, aceito para mestrado, fui guindado diretamente ao doutorado. Tive o mesmo reconhecimento que o aluno do MIT. Acabei defendendo tese em Letras Francesas e Comparadas. Menção: Très bien. Não me movera nenhuma pretensão acadêmica, apenas o desejo de curtir Paris, suas ruelas, vinhos, queijos e mulheres. A tese não passou de diletantismo. De Paris, eu escrevia diariamente uma crônica para a Folha da Manhã, de Porto Alegre. Salário mais bolsa me propiciaram belos dias na França. Foi quando minha empresa faliu. Conversando com colegas, fiquei sabendo que um doutorado servia para lecionar. Voltei e enviei meu currículo para três universidades, me propondo como professor-visitante. Sei lá que loucura me havia acometido na época: um dos currículos enviei para o curso de Letras da Universidade de Brasília.
Fui a Brasília acompanhar meu currículo. Procurei o chefe do Departamento de Letras. Ele me cobriu de elogios, o que só ativou meu sistema de alarme. Que minha tese era brilhante, que meu currículo era excelente, que era um jovem doutor com um futuro pela frente. Etc. Mas... eu tinha apenas os cursos de Direito e Filosofia, não tinha o de Letras. Me sugeriu enviar meu currículo ao Departamento de Filosofia, já que a tese tinha alguns componentes filosóficos.
Ingênuo, fui até o Departamento de Filosofia. O coordenador me recebeu muito bem, analisou minha tese, cobriu-a de elogios. Mas... eu não tinha o Doutorado em Filosofia. Apenas o curso. Considerando o grande número de artigos publicados em jornal, sugeria que eu fosse ao Departamento de Comunicações. Besta atroz, fui até lá. O coordenador considerou que meu currículo como jornalista era excelente. Mas... eu não tinha o curso de Jornalismo.
Na Universidade Federal de Santa Catarina abriu um concurso para professor de Francês. Já que eu era Doutor em Letras Francesas, me pareceu que a ocasião era aquela. Duas vagas, dois candidatos. Fui solenemente reprovado. Uma das alegações foi que eu falava francês como um parisiense, e a universidade não precisava disso. A outra, e decisiva, era a de que eu tinha doutorado em Letras Francesas, mas não tinha curso de Letras.
Já estava desistindo de procurar emprego na área, quando fui convidado para lecionar Literatura Brasileira, na mesma UFSC que me recusara como professor de francês. Convidado como professor visitante, o que dispensa concurso. Mas o contrato é por prazo determinado, dois anos. O curso precisava de doutores para orientar teses e eu estava ali por perto, doutor fresquinho, recém-titulado e livre de laços com outra universidade. Fui contratado.
Acabei lecionando quatro anos, na graduação e pós-graduação. Findo meu contrato, foi aberto um concurso para professor de Literatura Brasileira. Me inscrevi imediatamente. Uma vaga, um candidato. Me pareceram favas contadas. Ledo engano. Eu não tinha o curso de Letras. Após ter lecionado Literatura Brasileira por quatro anos, na Graduação e Pós-Graduação, fui de novo solenemente reprovado.
Na mesma época, abriu um concurso na mesma universidade para professor de espanhol. Ora, eu já havia traduzido cerca de vinte livros, entre eles doze obras dos melhores autores da América Latina e Espanha (Borges, Sábato, Bioy Casares, Robert Arlt, José Donoso, Camilo José Cela). Vou tentar, pensei. Tentei. Na banca, não havia um só professor que tivesse doutorado. Pelo que me consta, jamais haviam traduzido nem mesmo bula de remédio. Mais ainda: não tinham uma linha sequer publicada. Novamente reprovado. Minhas traduções poderiam ser brilhantes. Mas eu jamais havia feito um curso de espanhol.
Melhor voltar ao jornalismo. Foi o que fiz. Anos mais tarde, já em São Paulo, por duas vezes fui convidado para participar de uma banca na Universidade Federal de São Carlos, pelo professor Deonísio da Silva, então chefe de Departamento do Curso de Letras. Uma das bancas era para escolher uma professora de Literatura Espanhola, outra uma professora de Literatura Brasileira. Deonísio sugeriu-me participar, como candidato, de um futuro concurso. Impossível, eu não tinha o curso de Letras. Quanto a julgar a candidatura de um professor de Letras, isto me era plenamente permissível.
Na universidade brasileira, nem um Cervantes seria aceito como professor de Letras, afinal só teria em seu currículo o ofício de soldado e coletor de impostos. Um Platão seria barrado no magistério de Filosofia e um Albert Camus jamais teria acesso a um curso de Jornalismo. Van Gogh ou Dali estariam proibidos de dar aulas de pintura. Renan não poderia lecionar História.
No fundo, a universidade ainda vive no tempo das guildas medievais, que cercavam as profissões como quem cerca um couto de caça privado. Aqui, professores casam com professoras e geram professorinhos. Na Espanha e na França, desde há muito se discute publicamente a endogamia universitária. No Brasil, nem um pio sobre o assunto. E ainda há quem se queixe quando os melhores cérebros nacionais buscam reconhecimento no Exterior.
Um escritor do porte de Erico Verissimo jamais poderia lecionar literatura, afinal não cursou Letras. Não poderia neste Brasil corporativista, pois lecionou Letras nos Estados Unidos, onde ninguém lhe perguntou se tinha formação na área. Falei ontem da pretensão do medíocre escrevinhador Mário Prata, que queria regulamentar a profissão de escritor. No que dependesse de Prata, nem Erico poderia ter sido escritor.
De acordo com o texto aprovado, apenas quem tem diploma de graduação, mestrado ou doutorado pode exercer a profissão, em atividades como o magistério, a pesquisa e a organização de documentos e informações históricas. Ou seja, se me agrada pesquisar história, tenho de ter diploma para pesquisar. Se tenho em mãos um grande acervo de documentos e informações históricas, tenho de chamar um moleque diplomado para organizá-los? Elio Gaspari, que teve acesso aos arquivos do general Golbery do Couto e Silva, incorreria em exercício ilegal da profissão ao organizar esta documentação para escrever os quatro volumes de A Ditadura Envergonhada?
O projeto precisa ainda ser aprovado pela Câmara de Deputados. Onde obviamente vai passar. Graças ao furor legislativo de nossos parlamentares, a universidade brasileira avança rapidamente à condição de fortaleza inexpugnável dos medíocres.
O senador gaúcho acaba de confirmar definitivamente o dito popular: quem sabe faz, quem não sabe ensina.
Um comentário:
Texto excelente! Realidade triste, tudo muito bem fundamentado.
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