A coragem de um diplomata
27
de agosto de 2013 | 2h 15
Editorial O Estado de S.Paulo
A diferença entre a teoria e a prática pode ser eliminada
por um ato de desassombro. Foi o que aconteceu no fim da semana, quando um
diplomata brasileiro resolveu aplicar, por sua conta e risco, os princípios
humanitários dados como indissociáveis da política externa do País. Em toda
parte, o Itamaraty exorta a comunidade internacional a dar prioridade aos
direitos humanos. Faltou fazer o mesmo dentro da própria casa - a embaixada em
La Paz. A omissão levou o encarregado de negócios da representação, ministro
Eduardo Saboia, a tomar uma iniciativa inédita. Ela pode ter salvado a vida do
senador boliviano Roger Pinto Molina, de 53 anos, que completaria na última
sexta-feira 452 dias de confinamento numa dependência da embaixada onde se
asilou, em maio do ano passado.
Eleito pela Convergência Nacional, partido de oposição ao
presidente Evo Morales, ele tem contra si uma vintena de processos por alegados
delitos que incluem corrupção, desacato (ao acusar Evo de proteger o
narcotráfico), dano ambiental, desvio de recursos e até assassínio. O asilo foi
concedido pela presidente Dilma Rousseff dias depois. Evo criticou a decisão,
recusou-se a dar ao asilado o salvo-conduto para viajar ao Brasil e acusou o
então embaixador brasileiro de "pressionar" o país. À medida que o
impasse se arrastava, mais evidente ficava que o Itamaraty não só não
pressionava o líder bolivariano, como o tratava com um descabido temor
reverencial. Essa política de luvas de pelica foi inaugurada, como se recorda,
pelo então presidente Lula.
No Primeiro de Maio de 2006, começando o seu primeiro
mandato sob uma barragem de protestos pelo não cumprimento de promessas
eleitorais, Evo nacionalizou o setor de gás e petróleo, e mandou invadir
militarmente uma refinaria da Petrobrás. Em plena sintonia com o à época
chanceler Celso Amorim e com o assessor de relações internacionais do Planalto,
Marco Aurélio Garcia, Lula só faltou cumprimentar o vizinho pela violência.
Mudaram os nomes, mas a tibieza persiste. Na conturbada história do continente,
asilo político e salvo-conduto representam uma tradição secular - uma ou outra
exceção apenas confirmam a regra. Mas a diplomacia brasileira não há de ter
tido a coragem de invocar essa realidade para mostrar a Evo que a sua atitude
era insustentável, além de ofensiva à política brasileira de direitos humanos.
Salvo prova em contrário, o Itamaraty não se abalou nem ao
ser informado dos exames que constataram a deterioração física e mental do
senador - que falava em suicídio. Não era para menos. Como Saboia desabafaria
numa entrevista à Rede Globo, "eu me sentia como se tivesse um DOI-Codi ao
lado da minha sala de trabalho", em alusão ao aposento em que vivia o
asilado. "E sem (que houvesse) um verdadeiro empenho para solucionar o
problema." Duas vezes ele foi a Brasília alertar, em vão, o Itamaraty.
Chegou a pedir para ser removido de La Paz. Enfim, diante do "risco
iminente à vida e à dignidade de uma pessoa", agiu. Acompanhado de dois
fuzileiros navais que serviam na embaixada, em dois carros com placas diplomáticas,
ele transportou Roger Pinto a Corumbá, do lado brasileiro da fronteira, numa
viagem de 22 horas iniciada na sexta à tarde.
No final da noite de sábado seguiram para Brasília, a
bordo de um avião obtido pelo senador capixaba Ricardo Ferraço, presidente da
Comissão de Relações Exteriores da Casa, mobilizado pelo diplomata. Apanhado no
contrapé, o Itamaraty anunciou que tomará "as medidas administrativas e
disciplinares cabíveis". Melhor não. No clima que o País anda respirando,
Saboia pode virar herói - e o governo, carrasco. De seu lado, La Paz pediu que
o Brasil recambie o "fugitivo da Justiça" - o que ele não é, porque
em momento algum deixou tecnicamente território brasileiro. Autoridades
bolivianas ressalvaram que o caso não afetará a relação bilateral. Mas, para
Evo, provocar o Brasil sempre serviu para fazer boa figura junto às suas bases,
a custo zero.
Cabe ao Itamaraty, até para se penitenciar da dignidade
esquecida durante o confinamento do senador, reagir com dureza a uma nova
bravata de Evo. E aprender com o seu diplomata a ser mais coerente com o que
apregoa.
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