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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Reserva de mercado para "istoriadores": um tema em debate (Ivan da Costa Marques)

O artigo do professor, pesquisador, cientista, historiador Ivan da Costa Marques é preciso, abrangente, elegante. Acho que ele escreveu bem e tem razão em todos os seus argumentos substantivos.
Talvez, no entanto, não precisasse de tanto: bastava dizer que os "istoriadores"  da Anpuh só estão atrás de uma reserva de mercado para exercitarem aquilo que menos sabem fazer: pesquisar, de maneira aberta, divulgar, num ambiente sadio de diálogo com todas as correntes das humanidades, desfazer-se de comportamentos corporativos.
Paulo Roberto de Almeida

Desacordo entre associações acadêmicas
Jornal da Ciência, 19/08/2013

Artigo de Ivan da Costa Marques* para o Jornal da Ciência aborda os posicionamentos discordantes em torno do projeto de lei que regulamenta a profissão de historiador

O Projeto de Lei 4699/2012 trouxe à tona um forte desacordo entre as comunidades acadêmicas brasileiras cujas atividades podem ser atingidas pela palavra "história". Ao estipular que "o exercício da profissão de historiador é privativa (sic) dos portadores de diploma de curso superior, mestrado ou doutorado em História" o projeto propõe um divisor formal entre quem pode e quem não pode legalmente ensinar, divulgar, pesquisar o passado e fazer historiografia no Brasil. Ou seja, o Projeto de Lei 4699/2012 adota um indicador radicalmente simplificado e reduzido - a posse de um diploma - para quem poderá, caso a lei seja aprovada nos termos propostos, legalmente exercer a "profissão de historiador." De tão radical pode-se duvidar que este indicador se afirme, mesmo que eventualmente amparado em Lei. Vários profissionais, com diferentes diplomas e matizes ideológicas (ao que vi, José Murilo de Carvalho, Renato Janine Ribeiro, Francisco Marshall, mas certamente há outros) vieram a público argumentando que o projeto é, no mínimo,ameaçadoramente tosco.

O projeto traz para um primeiro plano um problema de fronteiras. Onde estaria o reduto "puro" do historiador, um reduto bem delimitado por um indicador simples e reduzido? O historiador que pesquisa o passado vive o presente e seu próprio agir acontece em meio às categorias do presente. Seu mundo é formado e informado não só pela historiografia feita pelos que o precederam, mas também pela sociologia, pela filosofia, pela antropologia e, não menos, pela tecnologia do presente. Que historiador atualizado poderia deixar de reconhecer que não só o ensino da história mas talvez ainda mais o fazer da historiografia, a construção do conhecimento histórico, mudou radicalmente, não se precisa dizer de 50 ou 100, mas de 30 anos para cá? Mesmo os mais empedernidos reconhecem que não se escreve da mesma maneira depois dos processadores de textos e não se pesquisa da mesma forma depois da Internet. Não mais se duvida que as condições e as ferramentas usadas na obtenção de um conhecimento condicionam e conformam o próprio conhecimento. Hoje acumulam-se as evidências de que a compreensão das entidades de conhecimento (objetos, fatos e teorias) não se completa dentro das fronteiras das disciplinas que as estabelecem. E isto vale, felizmente, inclusive para as ciências ditas naturais. A constatação de que as histórias temáticas são limitadas enquanto forem "história de" é um resultado crucial para os historiadores que, por décadas intimidados pela suposta falta de cientificidade do fazer historiográfico, podem agora dizer que os conhecimentos científicos, eles próprios, também têm historicidade. Mas este resultado crucial não só não foi obtido só por historiadores (com ou sem diploma) como também tem seu preço epistemológico.

Ao tornar históricos, e portanto impuros ou de fronteiras problemáticas,os próprios conhecimentosda Química, da Biologia, da Física e da Matemática, ao fazer histórias das ciências e não só histórias dos cientistas ou das ideias nas ciências, o historiador também abre mão da possibilidade de ter para si um reduto "puro", um reduto de entidades de conhecimento que ele possa legitimamente considerar só suas. Hoje o historiador vê-se na contingência de situar-se, ele próprio e seu fazer, em uma rede interdisciplinar. Daí o retumbante fracasso operacional do Art. 4 do projeto de Lei 4699/2012, ao não ir além de uma tautologia ao definir as "atribuições do historiador". A leitura do Art. 4 mostra que,nos termos do Projeto de Lei 4699/2012, são "atribuições do historiador" simplesmente todas as atividades atingidas pela palavra "história". Ou seja, os próprios proponentes da Lei acabam por deixar claro que não há limites estabilizados para o que vem a ser "atribuições do historiador".

Na ausência de uma definição não tautológica de "atribuições do historiador", isto é, uma definição que permita dizer o que é e o que não é parte delas, ou seja, uma definição operacional, restará à Lei, se aprovada, para atuar, unicamente o recurso ao diploma, um instrumento formal que ela mobiliza, radicalmente simplificado, para separar o que é e o que não é legal na construção de conhecimentos históricos. Um perigo! Pois tem-se então a legalização do que é feito baseada exclusivamente no privilégio formal, na prática quase sempre exorbitado, de quem está fazendo. Voltamos à "carteirada" ou ao "sabe com quem está falando?".É claro que os vícios da tradição cartorial mobilizam-se em surdina (talvez nem tanto) para fazerem-se valer pela Lei.

Isto parece-me claro e até mesmo mero fruto do bem senso em meio ao saber sobre o saber que hoje detemos na interdisciplinaridade. A situação se complica quando lembramos que muitas vezes o apego a interesses específicos é maior do que a propensão a preservar o bom senso. Então, buscando uma atitude propositiva e conciliadora, o que fazer? Como buscar um acordo com a ANPUH (Associação Nacional de História), proponente e defensora do Projeto de Lei 4699/2012? Como chegar a uma estabilização provisional, uma vez que hoje nem mesmo as ditas leis da Natureza são eternas, muito menos as leis do homens? Parece-me que a busca de fronteiras disciplinares bem definidas na pesquisa, isto é, nas atividades de construção do conhecimento histórico, é não só indesejável mas também impossível, conforme sugeri acima. Tampouco cabem delimitações disciplinares, e muito menos de posse de diplomas, nas atividades de formação dos historiadores. Isto exclui a possibilidade de uma fronteira aceitável que delimite as "atribuições do historiador" nos estabelecimentos do ensino superior. Restaria então as atribuições no ensino fundamental e médio como área para uma negociação possível entre as diversas associações descontentes e a ANPUH.

Apresso-me a dizer que esta proposta não decorre da crença de que as atividades no ensino fundamental e médio são de menor complexidade e importância. Ou que elas caracterizariam um espaço de mera replicação de conhecimentos, como se isso fosse possível.Acreditar que atividades tidas como "mais técnicas" são desprovidas de imaginação e criatividade, como alguns muito equivocadamente chegam a sugerir no seu afã comparativo entre os historiadores, engenheiros e médicos, por terem estes últimos profissões rigidamente regulamentadas, é, além de preconceito arrogante, um grave erro analítico. Já há décadas provaram-se equivocadas as visões de mundo que retiravam da execução os atributos de imaginação e criatividade para concentrá-los na concepção. Um exemplo emblemático da superação deste equívoco foi o abandono da tradição fordista-taylorista como paradigma na organização da produção.

Feito este esclarecimento, insisto que minha atitude aqui é aquela de sugerir uma negociação de caráter político explícito e realçado- isto é, uma negociação em que será preciso ceder algo para se obter um acordo, uma situação em que o ótimo cede ao bom. Ou, alternativamente, mobilizar-se para impedir a regulamentação. Ponto.

Sabidamente, no quadro político brasileiro, a força dos interesses diretos das associações acadêmicas é limitada no âmbito do Congresso Nacional. O risco de modificações e emendas feitas à margem das associações acadêmicas, seja da ANPUH ou das descontentes, existe. Segue daí que apostar que as decisões sejam tomadas exclusivamente em função de interesses imediatos e que nossos deputados e senadores não sejam capazes de apreciar uma argumentação conceitual é perigoso. As associações acadêmicas deveriam se esforçar para mostrar que o que defendem é o que é atualizado, o que é melhor para a produção de conhecimentos históricos, melhor para o Brasil e melhor para os historiadores brasileiros, já alvo de um espanto que pode ser conferido nas manifestações de entidades internacionais contra o Projeto de Lei 4699/2012 na forma em que está. Felizmente, ao que parece, não há unanimidade na ANPUH quanto a até que ponto a própria ANPUH deve defender a aprovação da Lei nos termos propostos. Isto abre o espaço para a negociação de uma proposta alternativa, em vez de deixar para o Congresso Nacional julgar o que é melhor diante do desacordo nas comunidades acadêmicas.

Ivan da Costa Marques é professor associado e vice-voordenador do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, presidente da ESOCITE.BR (Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias), membro do Conselho Consultivo da SBHC (Sociedade Brasileira de História das Ciências).

O Jornal a Ciência publica matéria sobre o assunto na página 4, o que rendeu a manchete e a charge da primeira página.

Link para acesso à publicação: http://www.jornaldaciencia.org.br/impresso/JC743.pdf

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