Por Luiz
Henrique Mendes | De São Paulo
Valor Economico, 9/09/2013
O processo
de globalização da economia resultou em uma estrutura perversa no mercado de
commodities, em que pouco mais de uma dezena de tradings agrícolas controlam
bilhões de produtores rurais. Em escala global, as tradings atuam como um
oligopsônio na aquisição de produtos agrícolas, limitando o poder de negociação
dos agricultores, e como um oligopólio na venda desses produtos.
Para
equilibrar esse processo, o Estado, que de algum modo aceitou e até promoveu a
consolidação dessa estrutura, terá de agir e lançar mão de instrumentos de
regulação, tais como agências específicas para isso. Essa é a avaliação do
economista Antônio Delfim Netto, professor emérito da Universidade de São Paulo
(USP) e ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura.
Em
entrevista ao Valor, Delfim, aos 85 anos, diz que
a política de concentração dos frigoríficos brasileiros, capitaneada pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), foi um "grave
erro", e é parte desse processo global da oligopolização da produção
global de alimentos. "Mesmo quando há grandes economias de escala,
estruturas oligopsônicas e oligopolísticas são contra o aumento da
produtividade", afirma.
Na
entrevista, Delfim tratou de algumas das principais discussões da economia
agrícola. Em meio ao debate sobre a desaceleração da China, ele não crê que
haverá uma "debacle" nos preços agrícolas. O período de forte alta
nas cotações, porém, já passou e o Brasil, segundo Delfim, não soube aproveitar
o boom para investir em infraestrutura.
Sobre a
política agrícola nacional, o ex-ministro elogia o último Plano Safra, válido
para o ciclo 2013/14. De acordo com ele, o plano ataca aquele que talvez seja o
principal gargalo da agricultura atualmente: a política de seguro rural. Para
Delfim, a ausência de uma política de seguro agrícola consistente foi
responsável pela pecha de caloteiros - externada até mesmo pelo então
presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) - que os agricultores ganharam.
O
ex-ministro ressalta, ainda, o papel que a Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa) tem no desenvolvimento da agricultura nacional. Segundo
ele, a estatal continua a ser um elemento "distintivo" do país. Na
opinião de Delfim, a perda de participação da Embrapa em mercados cobiçados
como os de sementes de soja e milho não é um problema. "A Embrapa não foi
feita para substituir o setor privado", diz.
Na seara
política, Delfim diz que a bancada ruralista no Congresso Nacional também
cumpre sua função de maneira adequada. Em questões polêmicas, como a indígena e
a ambiental, o papel de árbitro cabe ao Estado, afirma. Nos casos de exploração
de trabalho análogo à escravidão no campo, não há como tergiversar, diz Delfim.
"Só pondo na cadeia", afirma. A seguir, os principais trechos da
entrevista:
Valor: O Brasil foi beneficiado na última década pelo explosão da
demanda chinesa. Esse ciclo acabou?
Antônio
Delfim Netto : A demanda por
produtos agrícolas depende, no fundo, do crescimento da população e da
urbanização. Mas eu não vejo que você vai ter uma redução muito importante da
taxa de crescimento da demanda de produtos agrícolas nos próximos anos. O que
vai mudar, seguramente, é a estrutura da demanda. Você vai caminhar mais para
produtos proteicos, porque o mundo está melhorando seu nível de renda. Mas não
vejo nenhuma razão para imaginar uma debacle nos preços agrícolas. Teremos, no
fundo, uma relativa estabilização. Os preços, provavelmente, vão voltar a
declinar lentamente como sempre acontece, o que não significa que a demanda
global vai diminuir.
Valor: Mas o maior salto já foi?
Delfim : O principal salto foi o avanço espetacular da China, que
não vai se repetir. Mas imaginar que a China vai reduzir a sua demanda
dramaticamente é um erro. Ela vai continuar crescendo 4,5%, 5% ao ano. E mais
importante: vai aumentar muito a urbanização, o que reduz a oferta de produtos
agrícolas de um lado e aumenta a demanda de outro, porque aumenta a renda.
Valor: O sr. acha que o Brasil aproveitou bem o boom da China?
Delfim : O Brasil não aproveitou bem o boom das commodities.
Durante dez anos, tivemos um crescimento das relações de trocas importante, o que
significa que a renda crescia mais do que o PIB. Teria sido o momento para
fazer as mudanças estruturais que nós precisamos. Mas optamos por um caminho um
pouco diferente. Usamos muito mais desses recursos na redistribuição de renda
do que no aumento da eficiência produtiva, o que é compensado por um aumento do
bem-estar visível. Mas um dos aspectos mais difíceis de entender é que você
sacrificou uma parte das vantagens da melhoria das relações de troca para
valorizar o câmbio e para combater inflação - ou seja, você jogou fora uma
parte desses recursos.
Valor: De algum modo, o Brasil é refém da "maldição"
dos recursos naturais, se é que ela existe?
Delfim : Não tem maldição nenhuma. O Brasil aproveitou esses
recursos e desenvolveu um setor agrícola extremamente eficiente. A
agroindústria, que talvez seja um quarto do PIB, é um setor altamente
eficiente. É um setor sofisticadíssimo, mas muito prejudicado por falta de
estrutura, de transportes, de portos, por falta de armazenagem e por falta de
uma política importante, que é a política de seguro de safra.
Valor: O último Plano de Safra avançou na questão do seguro?
Delfim : Evoluiu muito. Esse último plano de safra é dos melhores
que já foram produzidos no Brasil. Ele atentou para algumas coisas críticas. Está
começando a haver uma consciência de que o país não tem conseguido fazer chegar
a essa gente o progresso da tecnologia na pequena propriedade. No fundo, se
abandonou um sistema de assistência técnica que já foi muito eficiente no
Brasil e esse plano começou a reconstruí-lo. Se você conseguir mobilizar a
pequena agricultura com os avanços da tecnologia que estão na gaveta, vai
produzir uma revolução.
Se conseguirmos mobilizar a pequena
agricultura com os avanços da tecnologia, haverá uma revolução
Valor: Num artigo de 2004, o sr. dizia que, depois do completo
desastre que foi a política agrícola do governo Collor e da pecha de caloteiros
no governo FHC, o relação do governo com o setor começava a melhorar. Isso se
comprovou?
Delfim : Melhorou. O problema da agricultura é que ela é uma
atividade de altíssimo risco. A agricultura depende da vontade de São Pedro.
Como a agricultura precisa de crédito, o fato de a receita ser altamente
influenciada pelas variações climáticas coloca uma dificuldade gigantesca. Por
quê? Quando, por efeito do clima, há uma queda da oferta de produtos, os preços
não sobem para suprir a renda. O agricultor vê seu patrimônio desaparecer. Como
não há seguro de safra, ele fica devendo. Na próxima vez, você tem um acordo
com o governo. Mas o governo é pior do que o pior dos banqueiros. Cada
negociação de dívida é uma tragédia, ou foi uma tragédia no passado. Você
embutia custos espantosos, taxas de juros gigantescas. Desse ponto de vista,
houve uma avanço muito grande. Já começou no Fernando Henrique e veio
avançando. Para a agricultura funcionar tranquilamente, ela tem que ter seguro
de safra. Ou seja, se houver um acidente, a tua renda é complementada e você
pode honrar os seus compromissos.
Valor: Nesse sentido, qual é o papel do Estado na política
agrícola?
Delfim : Provavelmente, a pesquisa não se sustenta simplesmente
com financiamento privado. O Estado produziu, ou pelo menos divulgou, todas a
grandes invenções, da internet até a semente do milho transgênico.
Valor: Como o senhor vê a atuação da Embrapa. É natural que ela
perca participação nos mercados mais cobiçados como soja e milho?
Delfim : A Embrapa não foi feita para substituir o setor privado.
Ela é um instrumento de pesquisa. O mundo se aproveita das pesquisas da
Embrapa. Quando você diz que a Embrapa reduziu participação, ela não reduziu o
seu papel. Ela está se sofisticando e é claro que os ganhos são menores, na
margem. A base é muito mais alta. Mas a Embrapa foi e é um instrumento
distintivo, que distingue a economia brasileira do resto do mundo. O que você
não pode é pensar que essas coisas acontecem por acaso. E não é só no Brasil,
não. A soja nos EUA também dependeu do departamento de agricultura [USDA]. O
Estado é um fator importante no processo de desenvolvimento.
Valor: O sr. acha que o Estado deve intervir nos preços
agrícolas?
Delfim : O Estado precisa de um estoque regulador por causa da
flutuação da agricultura, da oferta. A política de estoques é fundamental. Não
para perturbar, mas para regular o mercado quando há um acidente climático.
Valor: O Estado brasileiro incentivou uma concentração entre
frigoríficos? O sr. concorda com isso?
Delfim : Isso é um grave erro, porque cria organismos que são um
oligopsônio na hora de comprar e oligopólios na hora de vender. Você não pode
ter milhões de produtores e dois sujeitos comprando tudo o que eles produzem.
Aliás, essa é uma tragédia que está acontecendo no mundo. O número de empresas
que transacionam commodities se reduziu dramaticamente. O monopólio é muito
ruim. Estruturas oligopsônicas e oligopolíticas são contra o aumento da
produtividade, mesmo quando se diz que há grandes economias de escala. A
estrutura em que você reduz a quantidade de oferta ou reduz a quantidade de
compradores é uma estrutura perversa.
Valor: Mas uma das alegações, no caso dos frigoríficos, é que a
concentração ajudaria a melhorar a sanidade da cadeia produtiva.
Delfim : A política sanitária é coisa do governo. Você não
precisa de gente grande para comprar gado bom. Você pode ter gente pequena comprando
gado da melhor qualidade do ponto de vista da sanidade.
Valor: E o que fazer para combater esse processo de concentração?
Delfim : O Estado não pode deixar que se formem monopólios.
Quando existir um monopólio, ele tem que ter uma agência reguladora
independente e que ele não possa se apropriar dela.
Valor: No caso do Brasil, o Estado escolheu os vencedores?
Delfim : Isso não importa. A política em si é que está
equivocada. Não é que se escolheu A ou B. Pode até ter escolhido pessoas ou
empresas que vão progredir. Mas o que está errado é a política.
Valor: Na área política, como o sr. vê o papel da bancada
ruralista? Existem polêmicas na questão ambiental, na questão indígena...
Delfim : A bancada ruralista faz o seu papel. A questão indígena
está definida na Constituição. Sempre há dois lados. Se você entrega tudo para
antropólogos, vai para um lado. Se você entrega para empresários agrícolas, vai
para o outro. É por isso que tem que ter o Estado para arbitrar.
Valor: E como conciliar produção agrícola e preservação
ambiental?
Delfim : Não há contradição entre a preservação do meio ambiente
a agricultura. Só um agricultor muito burro não preserva o meio ambiente. O que
há é uma certa contradição entre algumas pessoas que gostariam muito de voltar
para a Idade da Pedra e aqueles que acham que não têm que tomar conhecimento de
nada, e querem colocar um trator onde puder. De novo: por isso é que existe o
Estado, Deus meu!
Valor: E o que fazer com os frequentes casos de exploração de
trabalho análogo à escravidão?
Delfim : Pondo na cadeia.
Valor: O que o senhor acha da proposta de expropriar a terra de
quem fizer esse tipo de exploração?
Delfim : Não é uma solução, mas seguramente é uma forma de
impedir que isso aconteça. Tem que ser uma punição draconiana.
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