3. Negociações comerciais internacionais e percepções externas nessa área
As negociações birregionais entre o Mercosul e a União Europeia constituem um dos mais patéticos equívocos da estratégia comercial do bloco dos últimos dez anos. A despeito de terem sido feitas aproximações desde o início do Mercosul por parte da União Europeia – que sempre demonstrou certo paternalismo em relação ao bloco, como se este devesse seguir o seu modelo integracionista – as negociações para um acordo de liberalização comercial (e não de livre comércio) só foram de fato engajadas depois que os Estados Unidos propuseram o seu projeto de uma área de livre comércio hemisférica, a Alca, lançada na Cúpula de Miami de dezembro de 1994 (aliás, aceita pelo então chanceler do presidente Itamar Franco, que veio a ser o mesmo do governo Lula, durante os seus dois mandatos).
Desde antes de assumir o poder, Lula e o PT já tinha caracterizado a proposta da Alca como um projeto, não de integração – o que, estrito senso, ele não era – mas de “anexação”. Governo e partido se empenharam, desde o início, na implosão do projeto americano, do qual o Brasil participava de modo muito relutante, por sinal. De modo explícito, as preferências estavam com as negociações multilaterais da Rodada Doha e com as birregionais com a UE, ingenuamente creditadas de algum mérito superior que não poderia existir no esquema hemisférico. Aqui ocorreu notoriamente um enorme erro de avaliação, o que levou a um equívoco ainda maior no plano estratégico. Os fluxos de comércio do Brasil com o hemisfério sempre tiveram um grande componente de produtos manufaturados, ao passo que o intercâmbio com a zona europeia sempre foi mais caracterizado pelo padrão Norte-Sul de intercâmbio comercial, cujos fluxos eram, aliás, claramente prejudicados pelo subvencionismo e protecionismo europeus na área agrícola. Parecia claro, aos olhos de observadores isentos, e de economistas sensatos, que os interesses do Brasil estariam melhor contemplados se consolidado um acesso garantido ao enorme mercado norte-americano, que aliás tinha outras características do que a abertura de mercados (igualmente difícil no setor agrícola). A Alca, do ponto de vista do Brasil seria basicamente um acordo de investimentos, uma vez que o Brasil passaria a atrair a implantação de empresas americanas interessados nos mercados do Mercosul e da América do Sul.
Parece claro que a implosão da Alca, pelos estrategistas do governo Lula, serviu para diminuir amplamente o entusiasmo, ou a propensão, dos europeus por um acordo com o Mercosul, que para eles serviria, essencialmente, para compensar as esperadas desvantagens que teriam surgido com a eventual constituição da Alca. Eliminada esta possibilidade, de maneira completamente ideológica diga-se de passagem (pela ação combinada de Chávez, Kirchner e Lula, na Cúpula de Mar del Plata, em novembro de 2005), um observador atento, ou minimamente racional, poderia chegar à conclusão de que diminuiria proporcionalmente o entusiasmo europeu pela liberalização comercial com o Mercosul (cuja demanda de acesso agrícola continua a sofrer obstinada resistência de diversos membros da UE). Pois bem, dez anos se passaram sem qualquer perspectiva de progressos nas negociações, a despeito de declarações cosméticas sobre sua importância nas relações das duas regiões entre si.
As negociações birregionais entre o Mercosul e a União Europeia constituem um dos mais patéticos equívocos da estratégia comercial do bloco dos últimos dez anos
Chegamos ao momento atual, sem Alca, sem muita esperança do lado da Organização Mundial do Comércio e sem qualquer outro acordo bilateral ou regional de importância (ou mesmo sem muita importância) que tenha sido concluído pelo Mercosul. Alguns dos seus dirigentes – mas não da Argentina, certamente – voltam a depositar grandes esperanças num eventual acordo comercial (de qualquer tipo) com a UE. Seria ele possível, factível, provável? Duvido, mesmo com toda a agitação diplomática que se desenvolve ocasionalmente em torno dele. As razões se devem apenas parcialmente à oposição argentina a um maior grau de liberalização e de abertura de seus próprios mercados na mais que hipotética possibilidade de se chegar a bom termo nesse processo. O fato é que a maior parte dos parceiros, em maior ou menor grau, não estão efetivamente comprometidos com novos esquemas de liberalização, na ausência de poderosas alavancas que poderiam conduzir a um acordo de um tipo qualquer (como a Alca poderia ter sido, por exemplo).
Ainda que a atitude Argentina seja um claro indicador de que não existe, de fato, unidade negocial no âmbito do Mercosul – e isso destrói uma de suas principais características enquanto bloco alegadamente funcional, enquanto união aduaneira – o fato é que não existem prejuízos que possam ser por ela causados ao Brasil que já não tenham sido causados pelas próprias autoridades econômicas brasileiras pela sequência de medidas impensadas, claramente defensivas, quando não abertamente protecionistas, tomadas em defesa de alguns dos seus mais influentes lobbies empresariais – como os da indústria automotiva, por exemplo, aliás todo ele estrangeiro – e de alguns sindicatos de trabalhadores muito ligados à CUT, ao PT e ao próprio Palácio do Planalto. O Brasil vem sendo questionado, na OMC e bilateralmente por alguns grandes parceiros, de recuo nos compromissos de stand-still (neutralização de qualquer nova medida em defesa dos mercados nacionais) e de não recurso ao protecionismo explícito que todos os participantes de uma rodada de negociações assumem quando de seu desenrolar.
A reputação do Brasil enquanto parceiro comercial confiável foi de certo modo arranhada pelas medidas tomadas desde 2009 pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e pela Fazenda, não apenas no âmbito comercial, mas igualmente financeiro e fiscal-tributário. Um exemplo precoce da inversão de prioridades já tinha sido revelado quando da “denúncia” unilateral pelo Brasil do acordo automotivo com o México: enquanto ele produziu saldos favoráveis às empresas brasileiras engajadas no intercâmbio, ele foi plenamente aceito pelo governo brasileiro; bastou haver reversão nos fluxos, que ele se tornou repentinamente negativo e objeto de renegociação forçada. Registre-se, por importante, que a parte mexicana não é, nem nunca foi, em nada responsável pela trajetória aleatória do câmbio brasileiro, influenciado por uma série de outros fatores que não os sucessos ou frustrações do acordo automotivo bilateral.
Agora, a Argentina resolve fazer exatamente o mesmo contra os automóveis brasileiros. Resta saber qual será a atitude do governo brasileiro neste particular. A experiência dos dez ou onze anos passados no trato bilateral do Brasil em relação ao protecionismo e às arbitrariedades comerciais do maior sócio no Mercosul não prenunciam nada de muito diferente do que já ocorreu até aqui. Talvez aqui se aplique o conhecido ditado sobre o feitiço e o feiticeiro. Em resumo, quando se trata da Argentina, um país que conheceu uma trajetória espetacular ao longo da história econômica do século 20 (qualquer que seja o sentido que se dê ao termo espetacular), nunca se corre o risco de ser surpreendido por novas surpresas ainda mais surpreendentes do que as anteriores e conhecidas até aqui. Inacreditáveis argentinos…
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