A vinda a Brasília esta semana do secretário do Tesouro dos EUA, Jack Lew, e da secretária de Estado adjunta para o Hemisfério Ocidental, Roberta Jacobson, marca a retomada, por iniciativa americana, de uma relação truncada desde o ano passado, quando revelações sobre espionagem da National Security Agency (NSA) no Brasil levaram a presidente Dilma Rousseff a postergar visita de Estado que faria a Washington.
Alarmado com o dano causado pelo episódio, no momento em que os laços bilaterais pareciam prestes a ganhar conteúdo e qualidade, o dirigente de uma grande empresa americana ligou no início do ano para Valeria Jarret, amiga pessoal de Barack Obama e sua conselheira sênior na Casa Branca, para pedir que o presidente fizesse um gesto capaz de reabrir o diálogo. Ciente da preocupação do setor privado brasileiro com as malparadas relações com os EUA, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse à embaixadora americana no Brasil, Liliana Ayalde, na mesma época, que se empenharia para resolver a crise. Deu trabalho.
No final de janeiro, o ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, afirmou, depois de se encontrar com a conselheira de Segurança da Casa Branca, Susan Rice, que a solução dependia de Dilma e de Obama. "Não é uma conversa no meu nível e no nível dela que levará a uma melhoria das relações", afirmou ele.
Segundo diplomatas brasileiros, Figueiredo esperava ouvir um pedido formal de desculpas, algo que o presidente americano já havia descartado em discurso no qual respondera às críticas suscitadas nos EUA e no mundo pela revelação das atividades da NSA. A insistência do Itamaraty no assunto tornou-se insustentável, porém, diante da postura pragmática de outros governos cujos líderes também foram espionados pela NSA.
No mês passado, o presidente da França, o socialista François Hollande, que estrilou ao saber que havia sido grampeado, deu o caso por superado e fez uma visita de Estado a Washington. No início de maio, a líder da Alemanha, Angela Merkel, que reagiu à bisbilhotice da NSA suspendendo acordos de cooperação em inteligência com Washington, fará visita de dois dias à capital americana. No topo da agenda, a ofensiva da Rússia na Crimeia. A Alemanha e a Europa, dependentes do petróleo e do gás russos, divergiram dos EUA sobre como reagir aos movimentos do presidente Vladimir Putin. Mas, a exemplo do mal-estar causado pela espionagem, a discordância não paralisou o diálogo nem impediu uma resposta conjunta.
O agravamento de crises regionais, em particular da confrontação em curso entre governo e oposição na Venezuela, reforçou a apreensão em Washington sobre o estado das relações com o Brasil. Pesam, no caso, dúvidas sobre se Brasília estaria deixando para trás a tradição de pragmatismo de sua diplomacia, balizada na promoção de interesses reais e na afirmação dos valores democráticos que alicerçaram a transformação interna e a projeção internacional do País nos últimos 20 anos, em benefício de uma política externa orientada por preferências ideológicas que geram incerteza sobre as intenções brasileiras. A expectativa, no caso da Venezuela, é de que o Brasil atue, via Unasul, guiado por seu interesse na estabilidade interna do País e da região, como fez na Bolívia, em 2008. Há ainda o caso do algodão, que pode levar o Brasil a adotar medidas de retaliação contra os EUA, com aval da Organização Mundial do Comércio.
A esses desafios se soma a apatia, no governo americano, dos que apostaram em laços mais fortes com o Brasil e que a visita de Jacobson tenta, agora, superar. "Não é que as pessoas estejam zangadas", disse um ex-alto funcionário próximo da administração. "Elas simplesmente não querem se envolver, pois lidar com o Brasil resulta sempre em frustração." Frustrações, de ambos os lados, e dois graves desencontros marcaram as relações bilaterais, no governo Obama: em maio de 2010, quando Lula protagonizou uma mal executada tentativa de aproximação entre o Irã e a comunidade internacional na questão nuclear, e, agora, no episódio da espionagem.
Diante disso e tendo ficado para trás o momento, no início deste ano, em que a visita de Dilma a Washington poderia ter sido reprogramada, as viagens de Lew e Jacobson a Brasília mostram que prevalece em Washington o interesse na retomada do diálogo, a despeito do ceticismo reinante na burocracia americana em relação ao Brasil. A pergunta é se haverá em Brasília, no período final de um enfraquecido governo Obama, disposição para um engajamento com os EUA que leve a laços mais robustos e resistentes aos inevitáveis acidentes de percurso.
Os sinais são favoráveis, mesmo nas questões derivadas do caso Snowden. O governo brasileiro convidou e o governo americano aceitou participar do comitê de coordenação de uma conferência internacional sobre governança da internet que Dilma convocou em reação ao episódio da espionagem. Washington, por sua vez, manifestou agrado à decisão do Brasil de não dar asilo a Edward Snowden e sugerir a países vizinhos que façam o mesmo. Os cumprimentos afetuosos que Dilma trocou com Obama, no funeral de Nelson Mandela, e com o vice-presidente Joe Biden, na posse de Michelle Bachelet, e a esperada presença de Biden na abertura da Copa ajudam a desanuviar a tensão e a renovar a aposta na aproximação entre as duas sociedades, que independe dos governos, e no interesse manifesto do empresariado brasileiro numa relação mais produtiva com os EUA, na esperança de que ambos levem a mudanças, nos dois países, que permitam tornar efetiva a sempre proclamada, mas frequentemente sabotada, construção de uma parceria estratégica entre as duas maiores economias e democracias do continente.
*Paulo Sotero é jornalista e diretor do Brazil Institute do Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington.
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