sábado, 30 de agosto de 2014

Eleicoes 2014: a bolha Marina, depois das bolhas Collor, Lula, etc - Jose Augusto Guilhon de Albuquerque


No meio do caminho tinha uma bolha chamada Marina
José Augusto Guilhon de Albuquerque
Chegamos a um momento sem retorno da eleição presidencial, impossível de ter sido previsto, mas com consequências previsíveis. O curtíssimo prazo da campanha, tal como a conhecemos – centrada no palanque eletrônico e nas alianças estaduais – não poderá reverter a bolha de encantamento que ora favorece a candidatura de Marina Silva.
Já não estamos no reino da política, mas da psicologia das massas. Independente de seus talentos, que são inúmeros, e de seus defeitos, que podem ser devastadores, o desgaste inevitável da vida real dificilmente se fará sentir senão a médio ou longo prazo. A curtíssimo prazo, somente outro fator estranho à política, seja nova fatalidade, seja o completo desmascaramento deste mais recente fenômeno messiânico em nosso país - provocado por imputações verdadeiras ou por falsos dossiês - poderia impedi-la de chegar ao segundo turno, provavelmente, à frente da disputa eleitoral.
E ai de quem ousar desnudar o Rei, pois, tal como um mensageiro de más notícias, será abatido junto com sua vítima. Em teoria, parece restar aos ex-protagonistas do pleito, o PT e o PSDB, demonizados pela profeta como a encarnação da “velha política”, mudar o foco de suas respectivas táticas eleitorais, poupar-se mutuamente e tentar polarizar com Marina. Na prática, um jogo de soma zero como esse apenas reforçaria seu papel de vítima e a levaria ainda mais perto de uma vitória no primeiro turno.
Em teoria Marina também poderia sucumbir a uma luta entre Titãs, caso outro ungido dos deuses se alevantasse mais alto para salvar o próprio legado – o PT e o lulismo. Mas, que se saiba, Lula não entra em bola dividida e, como se sabe também, nada tem a ver com as derrotas dos padilhas e dilmas, ou com o mau desempenho dos haddads e gleydes da vida. Portanto, a bola da vez está nas mãos dos dois candidatos ainda competitivos, para resgatar ou não seu próprio destino e a relevância de seus respectivos partidos e coligações, e isso implica ter como prioridade chegar ao segundo turno.
Para Marina, tendo chegado ao segundo turno na frente, e em curva ascendente, como é provável, será uma questão de administrar a própria bolha e não cometer erros irreparáveis. Por maior que seja o desgaste da polarização inerente ao segundo turno, será eleita e, por maior que seja o desgaste da transição e da partilha do botim, o encantamento deverá permitir uma coroação retumbante, à la Lula 2003. O trágico é o que irá ocorrer, num eventual governo Marina, quando, inexoravelmente, a bolha murchar de vez ou explodir.
Para o PT e o PSDB é vital chegar ao segundo turno porque, fora do páreo, seus respectivos eleitorados migrarão para Marina independentemente de qualquer arranjo de cúpula que, de todo modo, não é compatível com o perfil voluntarista e onipotente de Marina. E a única via para Aécio ou Dilma chegarem a um eventual segundo turno é, repito, continuar polarizando entre si sem, entretanto, deixar Marina correr solta.
Para o PT, polarizar com o PSDB seria menos arriscado do que polarizar com Marina, que implicaria poupar Aécio. Mas o desgaste do PT é amplo, geral e irrestrito. Conquistar votos tucanos não será fácil após mais de uma década de hostilidade implacável. Reintegrar ex-eleitores lulistas que estão migrando para Marina, seria ainda mais difícil. Paciência: corrigir doze anos de desmandos não é fácil mesmo. Além disso, é provável que o PT, devido a sua paixão pela hegemonia, e Dilma – por ressentimento pessoal – descarreguem suas baterias preferencialmente contra uma trânsfuga como Marina.
Ainda que tente conter os danos, o PT como partido, a julgar pela hostilidade generalizada que vem sofrendo, sairá enfraquecido. Quanto a Dilma, se não chegar ao segundo turno, pode encomendar o pijama.
Quanto ao PSDB, a falta de empolgação com a candidatura presidencial não parece afetar seu desempenho nos Estados. Mas uma derrota no primeiro turno comprometerá não apenas o futuro de Aécio, mas também a relevância nacional do partido. Entretanto, sendo um candidato menos rejeitado do que Dilma, e se lograr capitalizar o bom desempenho dos candidatos tucanos ao governo dos grandes colégios, Aécio poderá conter a atual sangria polarizando com Dilma. Se for bem sucedido em expor os graves defeitos de Marina sem agressões – ou seja, desqualificando-a “com classe” ou levando-a a desqualificar-se por ela mesma – ainda poderá recuperar parte do eleitorado migrante, além de eventualmente aumentar o desgaste da adversária estratégica, isto é, Dilma.
Quanto ao segundo turno – provável na hipótese de Marina continuar crescendo, mas sem uma queda acentuada dos demais – ela se beneficiará dos votos lulistas, e de esquerda em geral, para derrotar os tucanos, ou dos votos de centro e de direita contra Dilma. O eleitorado do PMDB é vinculado localmente às lideranças regionais mas, nas eleições presidenciais, segue as linhas do eleitorado em geral e não as orientações partidárias. O PMDB se guardará para o “terceiro turno”, isto é, para pesar decisivamente no momento de garantir uma transição sem demasiados traumas e um início de governo sem impasses decisórios.
Se esse quadro se revelar correto – desde que a bolha de encantamento não murche nem exploda sozinha – Marina deveria sair vitoriosa. Porém, mais cedo ou mais tarde a bolha irá se desfazer no ar, pois é isso que as bolhas fazem. Por motivos distintos, foi assim com Collor, foi assim com Lula, será assim com Marina.
No caso específico de Marina, o esvaziamento da bolha resultará de uma combinação de fatores pessoais e estruturais, estes ligados à dinâmica da democracia representativa que pode ser sumariamente descrita da seguinte maneira. Nos regimes presidencialistas o Executivo e o Legislativo são eleitos por colégios distintos, dando origem a duas maiorias não necessariamente coincidentes e, portanto, potencialmente divergentes. Para governar num sistema multipartidário como o nosso, a dinâmica democrático-representativa obriga o chefe do Executivo a negociar a criação de uma maioria parlamentar governista. Isso implica concessões de parte a parte ou o emprego dos chamados métodos “não-republicanos”. Entre estes se inclui o emblemático “mensalão” ou o apelo a forças extra institucionais, como a intimidação mediante a mobilização das ruas, o emprego da polícia, do judiciário ou da força militar para fins políticos.
A opção entre sacrificar seus ideais e seu programa com concessões, ou sacrificar seus princípios corrompendo ou intimidando os interlocutores, depende de inclinações pessoais do presidente – como sua habilidade para negociar e sua atitude conciliatória ou, ao contrário, seu grau de voluntarismo e prepotência. E de fatores institucionais – como a cultura partidária de sua coalizão ou de sua facção. Porém, enquanto a escolha entre métodos é uma opção, governar com o apoio efetivo ou, pelo menos, com o consentimento da maioria da representação nacional, legalmente eleita, é uma lei de ferro da democracia representativa. O resto pode ser um regime corrupto, um regime policial, um regime militar, um regime teocrático, ou todos os acima. Não é um regime de democracia representativa.
É essa lei de ferro que Marina chama de “velha política”, e já deixou claro e explícito que não pretende respeitá-la. Em entrevista ao telejornal da Globo News, confrontada com o fato de que, se for eleita, não disporá de maioria para governar, alternou entre várias respostas, ora que é a “sociedade” quem vai governar, ora que ela vai governar com “os melhores”, ora que a “sociedade” vai nomear “os melhores”. Mas não admitiu sequer que terá que governar com a maioria nacional legitimamente eleita para tal.
O que a leva Marina a vilipendiar a lei de ferro da democracia representativa tachando-a de “velha política”, em proveito de uma “nova política” tão velha como a Sereníssima República de Veneza – aquela do tempo dos Borgia -  não é apenas uma opção racional baseada em seu desconhecimento da História e da Política. Trata-se de uma crença enraizada em suas inclinações pessoais e na cultura política de sua facção – certamente não na cultura política da Esquerda Democrática que deu origem ao Partido Socialista. Frases como “o presidente não tem que ser prisioneiro do partido”, “um homem de bem não pode deixar de colaborar com o (meu) governo”, mostram que, para ela, e certamente para sua “rede”, negociar é uma coisa corrupta, fazer concessões é aprisionar-se. Em contrapartida, a virtude de seus ideais, e dos poucos homens justos que ela reconhece, bastaria para garantir o bom governo e até o fechamento das contas nacionais – se necessário, com a ajuda divina.
Pobres de nós, pecadores, que teremos pela frente um longo calvário de crises e desgoverno. Mas assim como sobrevivemos ao ippon de Collor, ao mensalão de Lula e aos apagões de gestão de Dilma, sobreviveremos a um eventual marinaço.
[Recebido em 29/08/2014, sem indicação de publicação]

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