Eu comentei este artigo preventivamente, e reproduzo abaixo o que rescrevi ao autor, e tambem, o que havia escrito a ele quando recebi a apresentação feita em SP.
Lembro que eu já havia postado neste mesmo espaço meu artigo feito quando soube de algumas afirmações do economista em SP. As referências seguem aqui:
2720. “Miséria do Capital
no Século 21: breve refutação não estatística de novas formas de criação da
miséria”, Hartford, 30 novembro 2014, 3 p. Considerações sobre os equívocos da
nova teoria do capital no século 21. Publicado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/11/miseria-do-capital-no-seculo-21-paulo.html)
Paulo Roberto de Almeida
Piketty e suas lições para o Brasil
Roberto Macedo *
O Estado de S. Paulo, 4/12/2014
Thomas Piketty é um economista francês famoso internacionalmente após publicar, em 2013, o livro O Capital no Século XXI, um dos mais vendidos em vários países. Já existe também em português (Ed. Intrínseca, 2014).
Tem 43 anos e, aos 22, já era doutor em Economia. No biênio seguinte ensinou no famoso Massachusetts Institute of Technology, dos EUA. Tem outros livros, muitos artigos em boas revistas acadêmicas e recebeu premiações importantes. Convence, portanto, como personagem.
Na semana passada conheci-o na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. Almoçou com professores e deu palestra em inglês para um auditório cheio. Resumiu então esse seu livro e a apresentação está disponível piketty.pse.ens.fr/en/files/piketty2014capital21csaopaulo1.pdf.
A obra é densa em números e análise. A versão em inglês tem 685 páginas e dela traduzi trechos citados abaixo. Raramente toca no índice de Gini, que domina a análise da distribuição pessoal de renda no Brasil. Tal índice varia de zero a 1, da distribuição igualitária para a totalmente concentrada, mas sem chegar a esses extremos nas suas aplicações. E abandonou Gini: "... é impossível resumir uma realidade multidimensional com um índice unidimensional sem indevidamente simplificar as questões e misturar coisas que não deveriam ser tratadas conjuntamente". Por essa e outras razões, concluiu ser "muito melhor analisar desigualdades em termos de tabelas de distribuição indicando as parcelas dos vários decis e centis na renda total e na riqueza total..." (pág. 266). Decis e centis são, por exemplo, os 20% ou 1% mais ricos e suas parcelas desses totais. E no livro há perto de cem gráficos que facilitam entender seus muitos números.
Estudos sobre o Brasil ganhariam com esse enfoque. Assim, o livro também convence pelo que informa e tem de metodologia. Sua tese principal: "Quando a taxa de retorno sobre o capital excede significativamente a taxa de crescimento da economia (como aconteceu por muito tempo na História... e provavelmente também acontecerá no século XXI), a consequência lógica é que a riqueza herdada cresça mais do que a produção e a renda... Nessas condições, é quase inevitável que a riqueza herdada dominará e por grande margem a riqueza amealhada por uma vida de trabalho, e a concentração do capital atingirá níveis extremamente altos e potencialmente incompatíveis com os valores meritocráticos e princípios de justiça social fundamentais às sociedades democráticas modernas" (pág. 26). Discordo, pois se uma economia seguir crescendo, com todos melhorando de vida, ainda que uns mais e outros menos, mesmo estes poderão não ver injustiça social no processo.
O livro não cita o Brasil uma vez sequer. A distribuição de sua atenção se concentra em EUA, Japão, Alemanha, França e Grã Bretanha. No nosso país a concentração de renda é muito alta e os dados existentes não permitem analisar adequadamente a distribuição de riqueza. Mas basta andar por aí para ver que também é fortemente concentrada.
Quanto ao que fazer, novas discordâncias. Piketty prega uma "tributação progressiva e global do capital", o que "exigiria considerável grau de coordenação internacional" (pág. 27). Na palestra: essa tributação "seria baseada na troca automática de informações bancárias". Ora, não há como ter a aprovação unânime dessa ideia. Mais países se tornariam paraísos fiscais para cidadãos insatisfeitos de países aderentes, como já ocorre hoje com relação a países de tributos mais altos.
Voltando ao Brasil, na apresentação recomendou: "... precisa de mais transparência quanto a (dados de) renda e riqueza; tributação progressiva sobre a renda, herança e riqueza seriam uma forma poderosa de produzir informação sobre como os diferentes grupos de renda e de riqueza se beneficiam do crescimento".
Ora, para avançar nessa direção é fundamental atentar para as condições locais. O.k. para maior transparência e tributação progressiva de renda e herança. Aqui há impostos sobre renda em geral, propriedade imobiliária e herança, chamados de diretos, e na Constituição há o Imposto sobre Grandes Fortunas, que carece de lei complementar e vai ficando no armário. Ademais, entre outras dificuldades esse imposto interferiria com o IPTU e o Territorial Rural. Ambos carecem de cadastros que reflitam melhor o valor das respectivas propriedades, o que também poderia levar a uma cobrança mais realista e progressiva.
Ademais, estudos mostram que impostos indiretos, como ICMS, IPI e outros, predominantes na arrecadação tributária, são regressivos, pois incidem sobre o consumo, cuja participação nos gastos das pessoas decresce com a renda. Entre outras distorções, pesam muito nos preços e levam muitos brasileiros a comprar no exterior. Caberia diminuir o gravame desses impostos e ampliar o dos diretos. Nossa tributação não tem caráter e prefere esconder impostos nos preços.
Pode-se também melhorar as condições dos mais pobres atuando sobre os gastos públicos, como os do Bolsa Família. E não dar tanto aos mais ricos, como nos financiamentos subsidiados do BNDES. Na mesma linha, permanece por enfrentar o ensino superior público gratuito, no qual predominam alunos cujos pais poderiam pagar por ele, gerando recursos prioritariamente para bolsas de estudo para estudantes pobres que sem elas têm de trabalhar. Ou seja, é preciso ir do ensino gratuito para o estudante pago.
Também é indispensável ponderar que o Brasil ainda não é rico. Os países que Piketty observou mais têm renda por habitante com valor perto de quatro vezes a do Brasil. Assim, os brasileiros precisam ser estimulados a estudar, trabalhar, poupar e investir mais, acumulando mais capital nas suas várias formas, sem que a insaciável sede tributária do governo os desvie desse caminho.
*Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard),
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Comentários Paulo Roberto de Almeida"
1) Em 3/12/2014:
Gostei do artigo, mas minha observação, mais de ordem metodológica do que prática, focaliza num aspecto.
Piketty faz um amalgama com o que chama de capital (que parece ser tudo o que não deriva diretamente do trabalho ou de fontes não diretamente monetárias), e acha que isso paira acima das gerações, sem cuidar de quem está fisicamente na posse desse capital e de como isso vai sendo utilizado no curso de uma vida e intergeracionalmente.
Ou seja, no processo de reprodução do capital -- que parece para ele a mesma entidade metafisica com que se preocupava Marx, transformando-o num deus ex machina -- ele não se pergunta quantos empregos e renda adicional foram criados com e para outros que não os detentores diretos do capital nesse processo.
Não sei se se pode admitir facilmente que a taxa de retorno do capital sempre vai exceder o crescimento da economia, uma vez que a valorização de ativos pode sofrer setbacks muito frequentes.
Quem tinha ações da AOL antes da crise das dot.com, em 2000, pode ter vendido e se aposentado precocemente com milhões na conta, mas quem comprou na alta, pode estar sofrendo até hoje.
Quem comprou ações da Petrobras a 40, usando seu FGTS, se pergunta hoje quando é que vai recuperar o seu capital com uma ação a menos de 13 atualmente.
Enfim, eu posso estar errado, mas não consigo conceber esse amalgamento artificial de riquezas de diversas origens nessa categoria imanente chamada capital, e isso me parece ser um problema conceitual e de classificação de ativos que tem de ser resolvida pelos economistas.
Agora volto a insistir num ponto. Ainda que tudo isso seja correto, ou seja, que existe realmente essa tendência inevitável dos mercados livres de fazer concentração da renda, a menos de medidas corretivas pelos governos, ou grandes desastres humanos e acidentes naturais, não veja nada de economicamente racional na decisão de tomar esse dinheiro dos detentores do capital para distribuir entre os detentores do trabalho. Tudo isso é uma decisão política, que pode resultar numa taxa ainda menor de crescimento e nesse caso todos perderiam.
Meu ponto é: o francês fica propondo fórmulas para empobrecer os muito ricos, que são poucos, em lugar de encontrar maneiras de enriquecer os muito pobres, que são muitos...
2) Em 2014-11-30 20:35, Paulo R. Almeida escreveu:
Roberto,
Muito grato pela remessa da apresentação do Piketty em SP. Creio, pessoalmente, que ele parte de um bom case — a concentração crescente de renda e riqueza nos estratos superiores — para tirar as conclusões erradas: a de que é preciso um bom Estado distributivista para melhorar o perfil da distribuição e caminhar para uma situação de maior justiça fiscal e, supõe-se, de maior igualitarismo distributivo.
Todo mundo sabe e todos concordariam em que os EUA apresentam maior dinamismo em seu sistema econômico, e um perfil distributivo mais desigual. Não se trata de opinião, ou de doutrina, são apenas fatos, baseados em dados reais. A Europa, justamente, por ser mais distributiva, tende a crescer menos, e portanto só poderá distribuir menos riquezas, cumulativamente ao longo do tempo. A China também, vem retirando um número impressionante de pessoas de uma miséria execrável e colocando-as numa situação de pobreza aceitável, em muitos casos até de relativo bem-estar. Isso com base num sistema igualmente dinâmico, e altamente concentrador de renda, o que provavelmente vai ser atenuado no futuro, com base em políticas fiscais corretivas e investimentos adequados nos equipamentos sociais, como mostrou Thomas Ballogh para os países avançados no decorrer do século 20.
Creio que Piketty bate no gato errado: ele está tentando empobrecer os ricos, em lugar de usar toda a sua expertise analítica para enriquecer os pobres. É uma via que não se sustenta, tendo em vista a experiência já acumulada.
Poucos ouviram falar na "Estratégia de Lisboa", um exercício prospectivo conduzido em meados dos anos 1990 pelos eurocratas e professores brilhantes da UE, que foi formalizado em 2000 (quando Portugal estava na presidência da UE. Se tratava de converter a UE, em 2010, na região mais avançada do mundo com base na economia do conhecimento. Bem, já em 2005 (bem antes da crise, portanto) era posssível perceber que a Europa demoraria muito para alcançar os EUA, e de fato está ficando para trás.
Com base no seu dinamismo econômico, e um pouco na desigualdade, a renda per capita dos EUA mantém-se bem à frente da média europeia, inclusive dos países mais avançados. Não vale mencionar os casos do Luxemburgo, Lietchenstein ou Monaco, com renda superior a 120 mil dólares, pois essa é exatamente a renda de um morador de NY, e esses países são ricos supostamente porque também seguem bem mais um padrão americano, ou de Manhattan (serviços financeiros), do que europeu.
Acho que cabe um esforço de despikettização mental sobre os verdadeiros problemas do mundo, que não estão no fato de existir um punhado de super-hiper-megabilionários, e sim a evidência de que existem muitos pobres ainda. Acho que os economistas fariam um melhor serviço para a humanidade se tentassem diminuir o número de pobres, não o de ricos.
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