Um historiador já disse que “la ley del odio ha sido una constante en la Historia de los argentinos”. No século XIX, a guerra civil entre unitários e federales dividiu o país vizinho entre Buenos Aires e o interior. No começo do século XX, o choque entre uma aristocracia que se vangloriava de acompanhar as grandes tendências da Europa — então o centro do mundo — e uma classe operária que começava a se fazer presente com força gerou alguns episódios sangrentos, com destaque para a “semana trágica” de 1919, com sua sequela de centenas de mortos. Anos depois, a eclosão do peronismo foi marcada desde o início pelo rancor profundo entre peronistas e antiperonistas, com os bombardeios a Buenos Aires de 1943. Depois, houve a implantação de um governo com claros traços autoritários nos dez anos da Presidência de Perón; os fuzilamentos — na época da Revolução Libertadora que proscreveu o peronismo — de José León Suárez, que Rodolfo Walsh imortalizaria no livro “Operación Masacre”; e, já no “segundo peronismo” nos anos 70, o sequestro e morte do ex-presidente Aramburu pelos Montoneros; os assassinatos em massa em Ezeiza (200 mortos) no dia do retorno de Perón ao país; e a origem da Aliança Anticomunista Argentina (a temível “Triple A”) tramada nos gabinetes oficiais naqueles anos de horror.
Esse banho de sangue foi a culminação de uma tendência à crispación que foi num crescendo ao longo de décadas e que se espelhava em ações que não se limitavam aos conflitos resolvidos a bala. A leitura da biografia de Raúl Prebisch — talvez o argentino mais ilustre aos olhos do resto do mundo por algumas décadas, mas figura abominada por muitos na sua própria terra — oferece um panorama de como, na raiz do fracasso de nosso vizinho como país, encontra-se a incapacidade de convivência com a diferença, do reconhecimento do dissenso, do direito à existência de quem pensa de outra forma.
O escritor Octavio Paz, tentando extrair algo de graça de uma história no fundo lúgubre, dizia com humor que “pensei que não havia nada mais apaixonante que uma corrida de touros, até que vi dois argentinos discutindo sobre política”.
Talvez as expressões emblemáticas mais representativas de certo jeito de ser da política local sejam os símbolos de dois partidos que eram, teoricamente, forças que ocupavam o centro político argentino nos anos 70: a União Cívica Radical — o radicalismo — e o partido que foi criado a partir de uma dissidência do antiperonismo. O lema da UCR era “se rompe pero no se dobla”, fazendo alusão a um galho que pode ser “quebrado, mas não vergado”, toda uma apologia da inflexibilidade, que é o oposto do que se espera do diálogo — ou seja, flexibilidade! Por sua vez, a agremiação criada pelos dissidentes tinha como nome “Partido Intransigente”, o que carregava no nome a própria negação da política. Por isso, Nicolás Schumway, diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade do Texas e autor de “La invención de la Argentina”, concluiu depois de uma longa reflexão que “no imaginário dos argentinos, a intransigência converteu-se num valor moral”. Quem tiver visto alguns filmes da safra argentina dos últimos 20 anos identificará essa cizânia até nos atos mais singelos, como uma reunião de um clube de bairro. A base da argumentação é sempre a desqualificação do interlocutor.
Os anos de Alfonsín e, de certa forma, também de Menem tinham ajudado a mitigar esse tipo de espírito, tornando o país um pouco mais normal e gerando um debate político mais assemelhado ao de outras nações, em que pesem os problemas econômicos da época, alguns bastante dramáticos. Já as três Presidências do casal Kirchner — a de Néstor e as duas de Cristina — reintroduziram essa polarização da política, talvez a herança mais nefasta que deixam esses anos para a Argentina. As questões econômicas, por mais difíceis que sejam, podem ser resolvidas. Porém, quando um filho julga que seu pai é um “oligarca”, um parente que o seu primo é “entreguista” ou alguém faz o pior dos julgamentos morais do seu amigo de infância porque ele pensa diferente, um país é bem mais difícil de consertar. A Argentina de hoje é uma Síria sem sangue. Pacificar os espíritos será o desafio mais difícil para quem vencer as eleições em 2015.
Fonte: O Globo, 08/12/2014.
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