Quando Norberto Bobbio estaria fazendo 100 anos, em 18 de outubro de 2009 (ele morreu cinco anos antes), eu fiz a minha homenagem a ele, selecionando um trecho de um livro de coletânea de obras suas sobre a liberdade, e seus inimigos.
Como temos muitos inimigos da liberdade, em nosso próprio pais, agora mesmo, creio que seria útil transmitir outra vez essa minha postagem de seis anos atrás.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 4 de setembro de 2015
A liberdade de destruir a liberdade: um aviso preventivo vindo do passado
Paulo Roberto de Almeida
Norberto
Bobbio, o maior intelectual italiano do século 20, nasceu em Torino no
dia 18 de outubro de 1909, e teria, portanto, neste dia 18 de outubro de
2009, exatamente cem anos, o que ele ‘falhou’ em completar em
aproximadamente cinco anos, tendo falecido em Torino em 9 de janeiro de
2004. Retomo esses dados da excelente cronologia elaborada sobre sua
vida e obra por Marco Revelli, no volume que adquiri recentemente em
Veneza tão pronto ele foi publicado:
Norberto Bobbio
Etica e Politica: Scritti di impegno civile
Progetto editoriale e saggio introduttivo di Marco Revelli
(Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2009, 1718 p.; ISBN: 978-04-57314-2)
(Paguei
55 euros, o que representa 3 centavos de euro por página, cada uma bem
mais valiosa em sabedoria e conhecimento do que o seu estrito valor
monetário)
O volume é uma compilação de seus escritos mais importantes, divididos em cinco partes, começando por sua Autobiografia intellettuale: Compagni e Maestri
(seus colegas de colégio, de universidade e de lutas políticas,
sobretudo antifascistas e pela liberdade e democracia na Itália
republicana do pós-guerra); Valori Politici e Dilemmi Etici (escritos e conferências sobre a ética e a política, sobre a liberdade e a igualdade, sobre a paz e a guerra); Le Forme della Politica (seus textos mais famosos de polêmica: Democrazia e dittatura, Socialismo e comunismo e Destra e sinistra); e, ao final, Congedo (seus escritos da idade senil: De senectute e A me stesso).
O livro é precedido por uma introdução magistral de Marco Revelli (Nel labirinto del Novecento),
de uma cronologia e notas a esta edição, do mesmo autor, que também
complementa o livro por notas sobre os textos, por uma bibliografia
completíssima e por um índice dos nomes (não, infelizmente não existe um
índice de ideias, que teria sido um instrumento muito útil ao
pesquisador).
O livro é um tesouro de trouvailles
(como os textos sobre os amigos, homenagens publicadas em revistas,
para nós obscuras, geralmente por ocasião da morte de cada um deles; e
Bobbio sobreviveu à maior parte dei suoi compagni),
assim como um instrumento poderoso de referências sobre todos os seus
trabalhos publicados, aqui apenas selecionados. Bobbio tem, segundo
Revelli, 4.803 escritos catalogados, em todas as categorias – livros,
artigos, conferências, entrevistas – o que daria 128 volumes, com 944
artigos, 1.452 ensaios, 457 entrevistas, 316 palestras). Ufa!: vai ser
preciso alguém tempo para ler tudo, por isso mesmo este volume é um
achado.
Na impossibilidade de falar aqui de todos, ou
sequer dos mais importantes textos selecionados neste volume, prefiro
fazer uma transcrição de um dos escritos compilados por Revelli, que
talvez guarde alguma similaridade com a situação política do Brasil
atual. Ele foi escrito por Norberto Bobbio em 1969 e fazia parte de uma
homenagem prestada ao seu colega de colégio Leone Ginzburg, intelectual
de origem russa, judeu, lutador antifascista, assassinado pela Gestapo
em Roma, em 1944. No 25o. aniversário de sua morte, Bobbio publicou uma
carta numa edição especial, Dialogo con Leone Ginzburg, na revista Resistenza
(a. XXXIII, n. 4, aprile 1969), na qual dizia o seguinte (transcrevo o
original italiano, e depois tento a minha tradução improvisada):
Oggi,
sappiamo che la libertà si può usare per il bene e per il male. Si può
usare non per educare ma per corrompere, non per accrescere il proprio
patrimonio ideale ma per dilapidarlo, non per rendere gli uomini più
saggi e nobili, ma per renderli più ignoranti e volgari. La libertà si
può anche sprecare. Si può sprecarla fino al punto di farla apparire
inutile, un bene non necessario, anzi dannoso. E a furia di sprecarla,
un giorno o l’altro (vicino? lontano?) la perderemo. Ce la toglieranno.
Non sappiamo ancora chi: se coloro che abbiamo lasciato prosperare alla
nostra destra, o coloro che stanno crescendo tumultuosamente alla nostra
sinistra. Abbiamo comunque il sospetto, alimentato da una continua
severa lezione durata mezzo secolo, che la differenza non sarà molto
grande. (p. cviii-cix)
(tradução não autorizada, e sobretudo não competente, de Paulo R. de Almeida:)
Hoje,
sabemos que a liberdade pode ser usada para o bem e para o mal. Ela
pode ser usada não para educar, mas para corromper, não para aumentar o
próprio patrimônio ideal [mental], mas para dilapidá-lo, não para tornar
os homens mais sábios e nobres, mas para torná-los mais ignorantes e
vulgares. A liberdade pode inclusive ser desperdiçada. Pode-se
desperdiçá-la até o limite de fazê-la parecer inútil, um bem não
necessário, aliás prejudicial. E nessa fúria de desperdiçá-la, um dia ou
outro (próximo? longínquo?) nós a perderemos. Vão tirá-la de nós. Não
sabemos ainda quem: se aqueles que deixamos prosperar à nossa direita,
ou aqueles que estão crescendo tumultuosamente à nossa esquerda. Temos
de toda forma a suspeita, alimentada por uma contínua e grave lição que
perdurou por meio século, que a diferença não será muito grande.
Acredito,
pessoalmente, que esta advertência de Bobbio, feita no seguimento das
convulsões estudantis que agitaram a Europa, e um pouco todo o mundo, a
partir de 1968, com seu cortejo de atos libertários, bastante
criatividade e espontaneidade, mas também com muitas exibições de
irracionalidade anticapitalista e de comportamentos antidemocráticos –
basta dizer que a Revolução Cultural chinesa, um exemplo extremo de
irracionalidade obscurantista, era saudada pelos revoltosos de “maio de
1968” como se fosse a libertação final da exploração capitalista e da
democracia burguesa –, se aplica inteiramente à conjuntura presente no
Brasil, com seu cortejo de ataques velados à liberdade de imprensa, seu
festival de banalidades políticas e de irracionalidades econômicas,
enfim suas ameaças latentes a uma liberdade duramente conquistada em
algumas décadas de lutas democráticas (hoje enganosamente apropriadas
por aqueles mesmos que queriam esmagar a liberdade no altar de suas
crenças ultrapassadas).
Bobbio nasceu numa Itália pré-fascista,
cresceu na crise política do pós-primeira guerra, atravessou todo o
período de totalitarismo mussoliniano (tendo inclusive, por razões
familiares, flertado com o movimento em sua juventude), se fez homem na
luta antifascista dos anos 1930 e 40, participou da construção
constitucional da Itália liberada e republicana do pós-segunda guerra, e
deu sua imensa contribuição intelectual para os debates do seu tempo:
as difíceis escolhas entre liberdade e igualdade, entre democracia
representativa e seus simulacros pela via direta ou plebiscitária – um
cenário que infelizmente ressurge de maneira irracional na América
Latina – e faleceu sem ter visto o sistema político italiano expurgado
das pragas da corrupção e do loteamento das instituições estatais por
políticos fisiológicos.
A sua Itália era – e é – muito parecida
com o Brasil em seus “costumes” políticos. Pena que não ostentemos
(ainda?) nenhum Norberto Bobbio entre nós.
Minhas homenagens a Norberto Bobbio em seus ‘100’ anos de vida...
Brasília, 2051: 17.10.2009
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