Meu resumo preparado para o seminário, que sequer usei, pois falei muito menos do que está inscrito abaixo, mas que pode ser útil, para aqueles muito preguiçosos, e que não querem ler as 45 páginas do ensaio completo, que já foi informado aqui:
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/04/livro-sobre-varnhagen-ser-apresentado.html
Foi um prazer participar deste seminário, com as tiradas inteligentes do Embaixador Synesio Sampaio Goes, e as palestras altamente interessantes dos demais colaboradores: professor Arno Weling, embaixadores Seixas Corrêa e Carlos Cardim, ministro Luis Claudio Villafañe. Bom debate ao final.
Foi transmitido ao vivo, depois que eu souber do link k
Meu resumo está abaixo.
Paulo Roberto de Almeida
O pensamento estratégico de Varnhagen: contexto e
atualidade
Resumo
para Seminário
Paulo Roberto de Almeida
Não lido; texto disponível na plataforma
Academia.edu e remissão no meu blog:
Disponível na plataforma
Academia.edu (https://www.academia.edu/23891582/O_pensamento_estrat%C3%A9gico_de_Varnhagen_contexto_e_atualidade).
Questões
introdutórias e de organização do ensaio
Este é um ensaio de
aproximação intelectual ao pensamento estratégico de Francisco Adolfo de
Varnhagen, que pode ser enquadrado na categoria da história das ideias
políticas no Brasil. A temática principal, desdobrável em duas perguntas
vinculadas entre si, poderia ser apresentada da seguinte maneira:
(1) Varnhagen, seja
enquanto historiador, seja como diplomata, ou mesmo como “estadista
improvisado”, possuía, ou era dotado de, “um” pensamento estratégico? Em outros
termos, em que medida aderia ele a conceitos basilares das doutrinas
estratégicas do seu tempo, e como tais conceitos, se presentes efetivamente em
seu pensamento, se refletiram em sua vasta obra, tanto a de cunho
historiográfico – como a História Geral
do Brasil (1854-57) – quanto a de natureza mais política – como, por
exemplo, o Memorial Orgânico
(1849-1850) –, tal como se tentará aqui discutir?
(2) Existiam doutrinas estratégicas, ou de
natureza geopolítica, propriamente formalizadas, no período formativo do
pensamento de Varnhagen, e de que tipo seriam essas estratégias, ou
“geopolíticas”, em construção na primeira metade do século XIX, que se
desenvolveram mais para o final do século e que passaram a conhecer notável
florescimento na primeira metade do século XX?
(3) Quais os componentes principais
do pensamento estratégico de Varnhagen – se admitirmos que ele possuiu um – e
como este se apresentou em sua obra?
(4) Que consequências ou
efeitos teve esse tipo de pensamento no ideário, ou na ideologia, das elites
dirigentes brasileiras, em especial as militares e as diplomáticas, nas décadas
que se seguiram?
(5) Que legado produziu no
pensamento estratégico brasileiro do século XX, quais foram os seus porta-vozes
e qual o impacto desse tipo de pensamento na definição de políticas públicas nas
áreas da segurança nacional, do desenvolvimento econômico e do papel do Estado
na organização nacional? Como a vertente do pensamento propriamente
“estratégico” de Varnhagen se incorporou à, ou recebeu continuidade na, obra de
“geopolíticos” do século XX?
(6) Existe uma modernidade
em Varnhagen? Dito de outra forma, suas reflexões e propostas para os problemas
brasileiros de meados do século XIX poderiam ser transpostas, com as adaptações
de praxe, aos desafios brasileiros do início do século XXI? Qual seria o
pensamento estratégico, de inspiração varnhageana, que poderia impulsionar um
esforço similar, ou funcionalmente equivalente, para “civilizar” o Brasil,
quase 170 anos depois das propostas originais?
Historiadores: Arno
Wehling, Nilo Odália, e outros, além do próprio Varnhagen
1. Varnhagen
possuía um pensamento estratégico?
Memorial Orgânico de 1849-50 não tinha sido divulgado
originalmente em seu nome, mas apenas oferecido às assembleias “por um
brasileiro”, ou “um amante do Brasil” –, Varnhagen não o lista entre suas obras
realizadas até aquele momento.
Mesmo reconhecendo em
Varnhagen um pensador estratégico – ou, então, um historiador dotado de visão
estratégica – cabe reconhecer que sua influência direta nas políticas de
Estado, ou nas ações de outros estadistas do Império, foi reduzida, limitada,
ou relativamente diminuta, e sua própria época, cabendo-lhe mais propriamente,
e a justo título, um papel preeminente no próprio pensamento histórico e
historiográfico...
2. Quais
tipos de pensamento estratégico existiam na época de Varnhagen?
A formulação de doutrinas
estratégicas certamente não emerge apenas a partir de Clausewitz, pensador
geralmente identificado com o nascimento formal das concepções táticas e
estratégicas quanto ao uso de forças militares para finalidades eminentemente
políticas. Mas é a partir da obra do militar e estrategista prussiano do começo
do século XIX que o pensamento estratégico começou a conhecer progressos
constantes, tal como estimulado pelas grandes guerras de movimento da era
napoleônica, que prenunciam os grandes conflitos globais do final do século XIX
e da primeira metade do século XX. O próprio Napoleão é autor da famosa frase
que pretende que todo Estado deve conduzir sua política a partir de sua
geografia.
Varnhagen reflete todas
essas ideias em vários de seus trabalhos, em especial no História Geral. A produção mais relevante nessa área é obviamente
posterior à vida ativa do historiador brasileiro, mas é inegável que trabalhos
de eminentes geopolíticos – do final do século XIX e início do XX – tomam como
ponto de partida o pensamento de naturalistas, geógrafos, geólogos e
antropólogos que haviam formulado suas teorias em décadas anteriores (Costa,
2008). Varnhagen não está alheio, bem ao contrário, ao que intelectuais de
relevo no cenário europeu produzem nesse contexto, como destaca Arno Wehling em
sua tese sobre Varnhagen e a Construção
da Identidade Nacional (1999).
Na correspondência de
Varnhagen, mas também em suas notas bibliográficas são inúmeras as referências
aos trabalhos de membros dessas academias, assim como a eminentes pensadores
(Tocqueville; Montesquieu, que havia formulado uma “teoria dos climas”),
juristas (Vattel), geógrafos e naturalistas (Humboldt), economistas
(Jean-Baptiste Say) ou historiadores (Guizot, Ranke).
3. Quais os
componentes centrais do pensamento estratégico de Varnhagen?
Foi no contexto de
redefinição das prioridades nacionais, quando a segunda geração de “pais da
pátria” começa a desenhar a arquitetura do Segundo Império – com a criação da
presidência do gabinete de ministros, em 1847, por exemplo –, que o ainda
relativamente jovem historiador (33 anos) empreende uma obra de reflexão e de
proposições políticas que o habilita (ainda que “clandestinamente”) a ser
considerado um pensador estratégico. Varnhagen identifica os problemas a serem
superados pelo país, e dispõe a propor um conjunto de reformas que ajudariam a
administração imperial na dura tarefa de “civilizar” o Brasil. A intenção,
explícita ou não, era a de dar ao país uma feição a mais próxima possível do
paradigma europeu, um modelo supostamente ideal de ordem política e de
organização econômica com o qual, não apenas o historiador de Sorocaba, mas também
diversos outros tribunos do Império, se identificavam plenamente.
Essa obra foi o Memorial Orgânico de 1849-1850,
divulgado inicialmente em duas etapas e sem indicação de autoria – a não ser o
genérico “Um Brasileiro” – e republicado uma única vez numa revista obscura de
meados do século XIX: essa pequena, mas densa obra permaneceu quase totalmente
desconhecida da inteligência nacional, uma vez que foi escassamente repercutida
na bibliografia subsequente e permaneceu ignorada até mesmo dos principais
autores que se ocuparam de questões geopolítica brasileira no decorrer do
século XX. Arno Wehling se encarregou de “redescobrir” a obra, e a ele devemos
esse revival de um trabalho relevante
na história das ideias no Brasil.
Pode-se dizer que se trata
de um ensaio político de planejamento estratégico chamando a atenção da
Administração do Império – o opúsculo anônimo estava dirigido às assembleias
Geral e provinciais – para os principais problemas detectados pelo jovem
historiador como obstáculos conjunturais ou estruturais ao progresso da nação e
oferecendo, pragmaticamente, um conjunto de soluções pertinentes a cada
problema detectado. Os seis problemas nacionais, apresentados como “proposições
enunciadas” e “justificadas” no segundo capítulo do texto original (1849), são
os seguintes:
1) Limites
(ou seja, as fronteiras ainda incertas do Estado);
2) Situação
da capital (com a proposta de sua transferência para o interior);
3) Comunicações
interiores (isto é, transportes e mobilidade);
4) Divisão
atual em províncias (profunda restruturação territorial);
5) Defesa
[interna] (vale dizer, questões de estratégia militar e fortificações);
6) População
(imigração e cruzamento de raças, minimizando as “inferiores”).
Problemas
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Motivos
|
Solução
|
Limites por definir com nove países
|
Indefinição das fronteiras
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Negociações bilaterais
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Capital litorânea
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Deslocada em relação ao país, sem boas
fortificações
|
Capital interior
|
Escassez de comunicações internas/mercado
interno
|
Ausência de sistema (“plano combinado”)
de comunicações internas, insuficiente ação provincial e inexistência de ação
nacional
|
Articulação de comunicações e rotas
comerciais (ex.: tropeiros)
|
Divisão de províncias do Império
|
Desigualdade territorial “monstruosa”,
caráter inteiramente empírico, indefinição de limites, política joanina
errônea de enriquecer e fortalecer o litoral, sem desenvolver as províncias
do interior, pequenas províncias com carga tributária inviável
|
Redivisão territorial, com critérios de
equilíbrio e equivalência
|
Fragilidade da defesa do país
|
Ausência de pensamento estratégico para a
defesa nacional
|
Maior alocação de recursos, identificação
de pontos cruciais e criação de territórios militares
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Heterogeneidade da população
|
Extensão da escravidão africana e forte
contingente de indígenas não aculturados
|
Colonização indígena e europeia e
proteção ao cruzamento
|
Fonte: Wehling, 2013c: 160-201, cf. p. 174.
|
Cada uma das propostas, e
suas respectivas “soluções”, foram extensivamente comentadas pelo historiador
Arno Wehling (2013c), e não caberia, nos limites deste ensaio, retomar os
argumentos substantivos do historiador oitocentista e a apreciação que deles é
feita pelo historiador contemporâneo. Pode-se, no entanto, destacar os
elementos de caráter “estratégico” inseridas nessas questões, no que elas
possuem de relevância continuada para uma nova reflexão em torno da “construção
da Nação”, uma tarefa urgente nos tempos de Varnhagen, e aparentemente ainda
válida, hoje, em relação a quase todos os problemas selecionados no ensaio
original do brasileiro incógnito de 1849-50.
Restam, portanto, três
questões, das seis originais, que ainda possuem um forte caráter estratégico
tal como concebido por Varnhagen, e talvez nos mesmos termos que ele atribuiu
aos problemas (a) da infraestrutura (comunicações e transportes internos); (b)
da divisão regional do país e ao (c) da defesa (ou da segurança) da nação, tão
frágil, ou talvez tão insuficiente, quanto a de 150 anos atrás. As reflexões do
jovem historiador sobre essas questões permanecem tão relevantes quanto eram
importantes os problemas por ele detectados e discutidos em meados do século XIX;
suas “soluções” continuam igualmente válidas para essas insuficiências do
desenvolvimento nacional.
4. Como o
pensamento de Varnhagen se refletiu no Estado imperial?
Varnhagen moldou o
pensamento histórico, antropológico e político das elites dirigentes do Brasil
desde o Segundo Reinado até a era Vargas, e talvez até a República de 1946. Ele
se fez presente em todos os cursos de história dos liceus e das faculdades de
Direito, e nas demais instâncias da educação nacional durante mais de três
gerações completas, o que representa um bem sucedido fenômeno editorial e de
impregnação ideológica raramente visto por outros autores no campo da história
nacional até os “fundadores” das modernas concepções historiográficas no
pós-guerra.
Varnhagen era politicamente
conservador, preferindo um sistema de representação restrita, perfeitamente
adequada ao sufrágio censitário que vigia sob o Império (Wehling, 1999: 84). A
melhor síntese sobre o seu pensamento político é, mais uma vez, oferecida por
esse historiador:
Recusando o absolutismo e temendo a
revolução jacobina, em tese, e preocupado, no caso brasileiro, com a massa
escrava potencialmente explosiva e com eventuais focos de insatisfação popular
das camadas urbanas Varnhagen foi partidário do afunilamento da representação
política e desejava concentrá-la na propriedade rural, no comércio e na alta
burocracia. Defendeu sempre um censo alto para o alistamento eleitoral e o
sufrágio indireto [no Memorial orgânico],
mas, como já ressaltou Américo Jacobina Lacombe, propugnava o voto secreto. Sua
ética não permitia coonestar eleições fabricadas. (p. 84-85)
Continua o historiador,
atual presidente do IHGB:
No Memorial
orgânico, na obra historiográfica e na Correspondência,
inclinou-se claramente para a filosofia política, conservadora, mas não
reacionária, como um liberal da primeira metade oitocentista, isto é,
antidemocrático. Aliás, apenas endossava a opinião dominante da época do
Regresso e limitava-se a defender a própria regra constitucional.
(...) Suas inclinações antidemocráticas o
levariam mesmo, em torno a 1850, a considerar seriamente a possibilidade de
abandonar o constitucionalismo liberal... (p. 85)
(...) [A ideologia do Regresso assumia]
papel semelhante ao das ideias liberais que circulavam na Europa após a
restauração: um Estado do laissez-faire
no plano econômico, mas efetivamente gendarme
no plano social e político, isto é, mantenedor do statu quo institucional, assegurado pelo controle do poder político
pelos proprietários através do sufrágio censitário e indireto. (p. 87-88)
(...) Para Nilo Odália [1979; 1997], que
neste ponto acompanharemos, Varnhagen foi um dos intérpretes mais qualificados
do projeto político conservador que definiu o Estado imperial e que se
caracterizava por: (a) atribuir ao Estado um papel não só político, mas de
organização social; (...) (b) constituir uma nação branca e europeia; (c) criar
um Estado forte e centralizado que, por sua vez, constituiria a nação. (p. 88)
Esse era o universo
conceitual, o quadro mental, e a ideologia política no qual se moviam amplos
setores das elites patrimonialistas do Império, sobretudo no estamento
burocrático no qual se situava Varnhagen, cuja principal preocupação era a
manutenção da ordem política, motivo pelo qual, mesmo liberais de fachada
tendiam a favorecer e promover um Estado forte como garantia da continuidade da
obra de “construção da Nação”, que eles concebiam como unicamente possível von Oben, pelo alto, como faria Bismarck
logo mais adiante. Esse conjunto de concepções estatizantes e nacionalistas
moldaram o pensamento de Varnhagen, o que fazia com que sua obra histórica se
ajustasse perfeitamente aos “instintos” políticos e intelectuais de amplas
frações das elites dirigentes do país, tanto do Império quanto do período republicano.
O mesmo molde geral também se refletia nas suas concepções em relações
internacionais, como destaca, mais uma vez o mesmo historiador especialista no
sorocabano:
Embora defendesse soluções diplomáticas
[aos conflitos externos com Estados limítrofes, com os quais existiam
territórios fronteiriços mal delimitados], Varnhagen realmente encarava a
guerra ao estilo de Clausewitz... (p.
93)
Após resumir os principais
pontos do Memorial na sua tese de
1999, e examinar a natureza das “soluções” propostas, o mesmo Wehling sintetiza
de modo feliz o pensamento de Varnhagen, neste curto parágrafo e em passagens
subsequentes:
Percebe-se aqui quanto de ancien régime subsistia na concepção de
Varnhagen e como sua ideia de monarquia aristocrática chocava-se com os novos
tempos do liberalismo e da monarquia constitucional.
(...) Em todas as medidas propostas por
Varnhagen no Memorial orgânico
ressalta a atuação direta do Estado. Centralizar a capital, definir limites,
redividir o país, criar sistemas viários e de defesa e redefinir a composição
étnica da população eram soluções que necessariamente passavam pela presença
estatal. A esse patrimonialismo hobbesiano não ocorreriam as soluções, por
exemplo, do liberalismo clássico, como as de Adam Smith ou, mais radicais, as
de seu contemporâneo Herbert Spencer. Oscilando entre a nostalgia da monarquia
tradicional portuguesa da época do Renascimento e o voluntarismo político
pombalino, Varnhagen considerava tais propostas ainda exequíveis em meados do
século XIX. (p. 99-100)
Não surpreende, assim, que
armado de todas essas concepções, que podem ser descritas como ativamente
conservadoras, Varnhagen continuasse a atrair os favores de toda uma elite e de
gerações de litterati que não lhe
eram muito distantes, seja no pensamento político, seja nas propostas sociais,
já bem entrado o século XX. Será preciso esperar o entre-guerras, e a
emergência de uma nova teoria social brasileira – com, entre outros, o marxista
Caio Prado Jr., o historiador weberiano Sérgio Buarque de Holanda e o
antropólogo cultural Gilberto Freyre –, para que esse edifício conceitual do
conservadorismo liberal de fachada começasse a ser substituído por uma nova
ciência social e historiográfica mais conforme aos tempos de ascensão das
camadas médias liberais. Os tempos de Varnhagen, enquanto figura dominante na
historiografia brasileira, chegavam ao final, com a ascensão de outros
pesquisadores nesse terreno, entre eles um crítico contundente daquela
historiografia, que foi o historiador José Honório Rodrigues.
5. Qual o
legado desse pensamento na construção do Estado brasileiro moderno?
Varnhagen impactou
diretamente o pensamento historiográfico nacional durante mais de meio século,
e residualmente bem além disso. Pode-se dizer que todos os homens de Estado,
parlamentares, magistrados, diplomatas, acadêmicos e os membros cultos da
sociedade, ou seja, praticamente a integralidade da elite brasileira, passou a
oferecer um relato da história do Brasil com base no seu magnum opus de pesquisa historiográfica.
Esses legados de que
compartilhavam tanto Varnhagen quanto Paranhos Jr. – o da defesa da primazia do
Executivo em momentos de debates acirrados no seio do corpo parlamentar, o da
estabilidade institucional, os da união nacional e da integridade territorial da
pátria – são os mesmos que penetraram nos corações e mentes dos principais
líderes nacionais, civis e militares, ao longo das décadas e décadas que se
seguiram à estabilização do país, desde o final do período regencial. Os
militares, mais até do que os civis, serão bem mais ciosos na defesa desses
princípios e valores, e eles o demonstraram diversas vezes, com suas
intervenções recorrentes na vida política, desde antes do final do Império e no
decorrer da República até 1985. De certa maneira, eles constituem uma espécie
de “pensamento estratégico” que vai se refletir nas obras e nas ações de
diversos agentes públicos desde essa época de transição do Império para a
República, independentemente dos partidos ou das filosofias políticas a que se
vinculavam esses líderes e estadistas da nação.
Os geopolíticos
brasileiros do século XX partilham com Varnhagen as mesmas preocupações
fundamentais dessa categoria especial de pensadores: a segurança e o
desenvolvimento da nação, com base numa atuação específica do Estado dirigida
ao território (defesa, organização espacial, infraestrutura) e população
(capacitação técnica, formação educacional, elevação dos padrões de
produtividade). Mas, paradoxalmente, foram poucos os pensadores dessa vertente
que se referem diretamente a Varnhagen, ou tomam apoio no Memorial Orgânico de 1849 para elaborar a respeito do conjunto de
tarefas que o historiador oitocentista havia concebido como parte de uma missão
para “civilizar” o Brasil. No período anterior à Segunda Guerra Mundial, a
preocupação maior desses pensadores é a questão da “projeção continental” do
Brasil...
O desconhecimento da obra
precocemente “geopolítica” de Varnhagen, ou seja, basicamente do seu Memorial de 1849, por esses eminentes
pensadores da geopolítica brasileira do século XX, se explica provavelmente
pelo fato de que o texto original e a sua “reedição” improvisada numa revista
relativamente marginal do Segundo Império permaneceram ignorados da maior parte
da intelligentsia brasileira na era republicana, com exceção dessas rápidas
referências à transferência da capital, provavelmente feitas a partir de
remissões secundárias. No entanto, vários dos componentes conceituais do
pensamento de Varnhagen aparecem nas reflexões dos pensadores do século XX, a
começar pelo primeiro grande geopolítico, Mário Travassos, que já se
preocupava, desde os anos 1930, como fez Varnhagen, quase um século antes, com
as interligações entre as bacias hidrográficas do vasto interior brasileiro, e
a construção de uma rede de comunicações que assegurasse ao Brasil a posse
efetiva desse grande espaço territorial.
Essa ignorância, ou esse
desconhecimento da obra do mais “geopolítico” dos historiadores brasileiros do
século XIX pelos pensadores estratégicos do século XX pode ser frustrante para
o estudioso que se debruça sobre a contribuição, a todos os títulos meritória,
do historiador de Sorocaba para uma reflexão bem informada sobre os principais
problemas brasileiros atinentes ao território, ao seu povo, à defesa da nação.
Não obstante essa ausência de menção a Varnhagen, cujo pensamento propriamente
“estratégico” não foi, assim, devidamente incorporado, ou não recebeu
continuidade na obra dos geopolíticos brasileiros do século XX, cabe destacar
que todos os elementos relevantes da doutrina e da metodologia geopolítica
contemporânea, em geral e do Brasil, estavam seja em germe, ou se manifestavam
explicitamente, na obra pioneira de Varnhagen, de forma mais sistemática no Memorial de 1849, mas também de modo
esparso, e bem presentes, no História
Geral.
6. Existe
uma modernidade em Varnhagen?
Varnhagen foi refutado em
várias de suas “opiniões” sobre os grandes problemas brasileiros, e algumas de
suas soluções – em relação aos índios, por exemplo – já não eram “politicamente
corretas” mesmo numa época de hegemonia do homem branco, europeu, sobre todas
as demais “raças”. Que algumas de suas propostas tenham ressurgido de forma
modificada nos anos e décadas transcorridos desde então apenas prova a
resiliência dos problemas e, provavelmente, a importância de sua reflexão
pragmática para o encaminhamento de alguma solução para eles.
Mas, pergunto, as
reflexões e propostas de Varnhagen, notadamente no Memorial, para os problemas brasileiros de meados do século XXI
poderiam ser transpostos, com as adaptações de praxe, aos problemas brasileiros
do início do século XXI? Seria possível tomar inspiração no pensamento
estratégico do jovem historiador de 33 anos para impulsionar esforço similar,
de oferecer soluções a vários problemas que não parecem ser muito diferentes,
hoje, do que eram para o Brasil em construção de 170 anos atrás?
Inspirado, portanto,
naquele primeiro esforço de reforma da nação, e adotando a forma sintética
elaborada pelo historiador Arno Wehling, vejamos que tipo de esforço racionalizador
poderia ser feito hoje, para encaminhar alguns dos grandes problemas pendentes
da nacionalidade.
Memorial
pragmático para a reforma da Nação (2016)
|
||
Problemas
|
Motivos
|
Solução
|
Retrocesso econômico, desorganização
produtiva
|
Desindustrialização, exportações de
commodities
|
Esforço concentrado em ganhos de
produtividade
|
Descolamento dos mercados internacionais
|
Perda de competitividade por excesso de
tributação
|
Reforma tributária, redução da carga
fiscal, globalização
|
Deficiências de infraestrutura
|
Inexistência de ação estatal por inépcia
e falta de recursos
|
Privatização extensiva em todas as áreas
de logística
|
Desigualdades regionais persistentes
|
Políticas de “desenvolvimento regional”
baseadas em induções equivocadas
|
Atendimento das vantagens comparativas
ricardianas nas especializações regionais
|
Fragilidade da defesa do país
|
Inadequações do pensamento estratégico
para a defesa; autonomia sem base no PIB
|
Maior alocação de recursos, mas busca de
sinergias na cooperação com aliados
|
Heterogeneidade da população em termos de
capacitação profissional
|
Deficiências graves na qualidade da
educação de base; professores ineptos
|
Reforma radical do ensino público;
acolhimento de imigrantes
|
Fonte: Elaboração de Paulo Roberto de Almeida, inspirado no Memorial Orgânico de Varnhagen
(1849-50), tal como sintetizado por Wehling (2013c: 174).
|
Registre-se, desde logo,
que as três questões centrais são praticamente as mesmas – infraestrutura de
comunicações e transportes, desequilíbrios regionais e deficiências na defesa
nacional –, ao passo que as duas primeiras – limites com os vizinhos e
transferência da capital – já se completaram, por assim dizer, enquanto que a
última – heterogeneidade da população – adquire hoje características
essencialmente sociais, e não mais raciais (a despeito dos esforços atuais de
militantes negros para, com o apoio do governo, separar de modo artificial a
cultura dominante a pretexto de uma “dívida histórica” de gerações passadas ou
de particularismos raciais ou étnicos).
Varnhagen, se pudesse revisitar o Brasil neste momento
de crises estruturais que o país vive – economicamente, institucionalmente,
moralmente – talvez encontrasse motivos para reescrever o seu Memorial de 1849. Como vimos, ele
precisaria mudar algumas coisas, talvez importantes, mas de todo modo
suscetíveis de incorporação a um pensamento estratégico tão ágil, e aberto às
mais diversas inteligências, quanto era o seu. Em outros aspectos, sua
identificação de problemas e suas propostas de soluções permanecem válidas no
todo (infraestrutura, por exemplo, ou mesmo acolhimento de imigrantes) ou
parcialmente (defesa, desequilíbrio regional), necessitando apenas as
adaptações metodológicas ou substantivas tal como foram apresentadas em nossa
tabela de “reformas pragmáticas”. Um pensador estratégico como era ele saberia
identificar rapidamente os novos problemas (vários, aliás, muito velhos, como é
o da educação) e propor algum consenso político em torno de reformas
modernizadoras.
O que ele se propunha, no seu Memorial de 1849, finalmente, era nada mais, nada menos que as
elites nacionais empreendessem um grande projeto para “civilizar” o país, e
enriquecer a nação. A missão permanece válida nos dias de hoje, inclusive
porque, visivelmente, vários dos atuais problemas do Brasil parecem ser quase
os mesmos de 170 anos atrás; as soluções também podem ser relativamente similares,
ou pelo menos, funcionalmente equivalentes. Talvez Varnhagen reclamasse apenas
da falta de estadistas com os quais dialogar e para os quais propor soluções...
Paulo
Roberto de Almeida
1/04/2016
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