sábado, 22 de outubro de 2016

Juridismo legalista - Augusto de Franco


Nenhuma Lava Jato resistiria ao legalismo

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O discurso legalista contra as prisões preventivas decretadas por Sergio Moro não pode esconder a realidade: quem está sendo preso cautelarmente obstruiria as investigações se solto estivesse. Alguém duvida?

Os legalistas argumentam com o óbvio: a lei está errada, mas não pode ser mudada pelo judiciário e sim, somente, pelo legislativo. No entanto, o parlamento atual não mudaria a lei a desfavor de seus membros. É mais ou menos como mudar a lei da prerrogativa de função: os que têm foro privilegiado não vão abrir mão dele e correr o risco de serem presos por um juiz qualquer de primeira instância.

O problema é que, enquanto não se mudam essas leis que afetam o processo penal – o que é praticamente impossível no curto prazo (posto que são os interessados em manter seus privilégios que vão votar) – a impunidade continua, os crimes prosseguem sendo cometidos pelos privilegiados e a justiça continua paralisada.

Segundo os legalistas, deve-se esperar as próximas eleições para eleger um novo parlamento que aceite as mudanças e permita a atuação eficaz da justiça (pois que uma justiça ineficaz é injusta, não justa: logo não é justiça e, assim, desconstitui-se o próprio legalismo). Mas nada indica que um parlamento parido por novas eleições modifique ponderavelmente a composição atual ou o caráter corporativo da casa legislativa. Até porque os criminosos que continuam impunes ou serão reeleitos ou terão capacidade de eleger seus próprios comparsas para manter tudo como está. É esta – e não outra – razão que inviabiliza há tantos anos qualquer reforma política democratizante (e moralizante: pois uma moralização ao estilo Leônidas de Esparta, que não decorra de maior democratização, não interessa aos democratas).

A natureza do impasse dita a impossibilidade da solução legalista. Porque o impasse tem a ver com a impossibilidade de manter o espírito das leis dentro das regras atuais. A letra das regras atuais inviabiliza a manifestação do seu espírito. O legalismo é um apego à letra, em detrimento do espírito. É, no sentido mais geral, uma subordinação da democracia como ideia (no sentido que John Dewey conferia à expressão) às formas transitórias e contingentes que assume a democracia representativa reduzida a modo de administração política da formen Estado-nação. Ora, essas formas mudam. Não é hoje exatamente igual à forma que brotou no século 17, após a reinvenção da democracia pelos modernos, a partir da paz de Westfalia, quando foi necessário domar o Leviatã – com a fórmula do Estado democrático de direito – para proteger o cidadão do seu próprio Estado.

Hoje esse modelo está em crise, não apenas porque se descobriu que o Estado democrático (sempre em devir) – posto que a sociedade mudou a sua morfologia e a sua dinâmica – não cabe inteiramente dentro do Estado de direito (remanescente), mas também porque esse modelo não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia (a célebre pergunta de Sir Ralph Dahrendorf: e se os caras errados são eleitos?). Assim, o império da lei favorece mais ao império da vontade coletiva corporativa dos representantes do que aos desejos difusos dos representados. A corporação se encastela na letra das leis para matar o seu espírito. O legalismo é uma demora em perceber as mudanças. Pior, é um alentecimento (no sentido em que essa expressão é usada na teoria da relatividade restrita) no movimento real e concreto do emaranhado de relações que constitui o que chamamos de sociedade (que fica congelado ao ser capturado em uma forma piramidal de Estado, conspirando contra os fluxos interativos da convivência social e a horizontalidade do viver comum).

Os legalistas não percebem isso. Eles têm medo do fluxo, quer dizer, de tomar a democracia pelo que ela é geneticamente: um processo de democratização (na verdade, de desconstituição de autocracia) e, assim, preferem se entrincheirar em uma forma pretérita, para “não jogar fora a criança junto com a água suja do banho” (os conservadores adoram repetir esse dito, jamais aventando que o bebê em questão pode ter virado o de Rosemary). Por isso o legalismo é apenas mais uma ideologia conservadora, não necessariamente democrática (a não ser em casos especiais em que o império da lei está na iminência de ser convertido em império da vontade de um soberano, como ocorre nos processos agudos de autocratização da democracia).

Ao tomar consciência do impasse, os legalistas poderão perguntar: mas então vamos apagar as letras das leis? Isso não será o caos? Não representará uma regressão capaz de desconstituir todo o sistema, aí sim ameaçando a continuidade da democracia, nos jogando na guerra de todos contra todos, onde predominará a lei do mais forte ao arrepio de qualquer direito? O argumento – hobbesiano (o legalismo tem uma raiz hobbesiana na medida em que não é somente a ameaça às liberdades que o mobiliza, mas o perigo da quebra da ordem) – quer nos assustar com o horror de um cenário líbio.

Eles teriam alguma razão se a sociedade não passasse de um epifenômeno, incapaz de substituir por si mesma e de se constituir como um modo de agenciamento autônomo (como pensava Margaret Thatcher, quando disse em 1987: “And, you know, there is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families”). Eles teriam razão se o mundo fosse a Somália, mas não teriam razão se o mundo fosse a Noruega. Em países como o Brasil, que estão no meio do caminho entre a Somália e a Noruega, eles também não têm razão. Nem os noruegueses, nem os brasileiros, se engalfinhariam numa guerra fratricida em razão de novas interpretações da lei de processo penal (capazes de aggiornar sua interpretação literal para permitir a manifestação do seu espírito).

O fato é que, mantidas as leituras tradicionais, não há espaço para mudança, quer dizer, para a continuidade do processo de democratização (que é o que devemos entender pela palavra democracia) e, consequentemente, para a tão almejada moralização dos nossos costumes políticos. Na Noruega há menos corrupção do que na Somália, mas não em virtude da sanha punitiva do Estado ou de uma ultra-ortodoxa interpretação da letra das leis por parte do judiciário e sim da não-aceitação desse tipo de comportamento pela sociedade (ou seja, do nível do seu capital social), o que é diretamente refratado pelo sistema político lá vigente e delimita um campo de legitimidade para a ação dos seus representantes.

O impasse é o seguinte. Não podemos esperar que o nível do nosso capital social seja semelhante ao da Noruega para combater a corrupção endêmica no sistema político realmente existente aqui. Inclusive porque um dos principais exterminadores de capital social é, justamente, o nosso sistema político do modo como está organizado e funciona.

E há um agravante que torna o impasse ainda maior: surgiu entre nós (em razão da via neopopulista adotada pelo PT no governo na última década) um novo tipo de corrupção, sistêmica, com objetivos estratégicos de poder. Uma corrupção que se caracteriza não apenas pelos desvios de conduta de indivíduos para se eleger, reeleger, eleger um parente, amigo ou correligionário, financiar uma caciquia ou grupo político, auferir vantagens pessoais de toda ordem, enriquecer e se dar bem na vida, mas uma corrupção como estratégia de tomada do poder (a tal “revolução pela corrupção”, percebida pelo poeta Ferreira Gullar), para financiar um esquema paralelo ao Estado, comprar ou alugar parlamentares, aparelhar a administração pública e saquear as empresas estatais transformando-as em instrumentos de sua atuação, sustentar uma rede suja de veículos de comunicação, neutralizar ou eliminar inimigos e, inclusive, financiar regimes antidemocráticos em outros países (ditaduras, como Cuba, Angola e Venezuela e regimes em transição autocratizante, como Bolívia, Equador e Nicarágua, que adotam a via neopopulista).

 

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Este segundo tipo de corrupção é, especialmente, exterminador de capital social, numa velocidade e intensidade que jamais seriam alcançadas pela corrupção tradicional, o que inviabiliza ainda mais a espera pelo amadurecimento de uma cultura cidadã apta a combatê-la. Porque é uma conspiração contra a formação do commons, é uma privatização partidária da esfera pública, que se apoia no corporativismo das instituições da democracia formal, sobretudo no parlamento e no judiciário, que passam a usar a letra das leis para se defender das mudanças capazes de coibir seus privilégios. Basta ver que, manietado pelas leis, o Supremo Tribunal Federal, após dois anos de Lava Jato, não condenou nenhum político: só dois parlamentares são réus.

O neopopulismo é muito perigoso para o processo de democratização justamente porque consegue colocar as velhas instituições da democracia formal a seu favor. Foi por isso que o PT depositou os seus ovos dentro da carcaça podre do velho sistema político, criando um cinturão de ferro de impunidade. Não há como quebrar essa barreira a não ser que a sociedade pressione o parlamento para que modifique as leis. Mas, como vimos, isso não é possível sem flexionar a interpretação das leis com o apoio da sociedade. Se tal processo não estivesse em curso, não haveria Lava Jato (e a mais importante operação da década já teria sido consumida nas malhas de justiça, tal como ocorreu com várias de suas congêneres, como a Castelo de Areia), Dirceu não teria sido condenado (pelo contrário, teria sido perdoado pela Corte Suprema também pelo petrolão, assim como já o foi pelo mensalão, juntamente com todos os seus comparsas petistas), Palocci e Vaccari não teriam sido presos e Lula não estaria na iminência de responder à justiça. Ou seja, nada de relevante teria acontecido, não somente em relação à nova corrupção praticada como estratégia de tomada de poder, mas também no que diz respeito ao combate à corrupção tradicional de um Cunha, de um Collor (igualmente inocentado pelo STF dos crimes que cometeu no governo) e, quem sabe, de um Renan e de um Sarney.

 

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