Recebo, da Editoria Danúbio, de Curitiba, um enorme texto interpretativo, de Leandro Mello Ferreira, sobre o Rei Lear, grande peça, talvez a maior, de Shakespeare.
Essa peça já foi comparada ao Père Goriot, de Honoré de Balzac (o "de", aristocrático, foi introduzida por Balzac bem mais adiante em sua trajetória profissional, para que ele pudesse aparecer como aparentado à aristocracia do Ancien Régime, o que ele nunca foi).
A comparação não é despropositada, pois se trata, de fato, de dois personagens dramáticos, que interagem com muitos outros personagens, e que precisam tratar com o abuso que sobre eles exercem membros de sua própria família.
De fato, a peça dramática é grandiosa, como nos revela em sua longuíssima interpretação Leandro Mello Ferreira, da mesma forma como o drama de Balzac levanta interpretações densas sobre as relações entre o dinheiro e o destino dos atores.
Paulo Roberto de Almeida
O Bobo Lear
Por Leandro Mello Ferreira
Editora Danúbio (Curitiba)
Em novo ensaio publicado no blog da Editora Danúbio, Leandro Mello Ferreira oferece uma interpretação da peça Rei Lear.
Justificação de uma ousadia.
Entre o céu e a terra existem muitas coisas, de fato, mas não uma interpretação inédita, original, das peças de Shakespeare. Certamente tudo já foi dito, ainda que algo muito importante se encontre temporariamente esquecido na imensidão inabarcável dos seus admiradores. Isso vale mesmo para uma obra como “Rei Lear”, cuja variedade de personagens e temas é uma de suas características mais diferenciadoras, instigando interpretações e ênfases as mais variadas, e mesmo díspares, parecendo-me muitas vezes que estamos seus leitores a olhar para um horizonte de nuvens, cada um apreendendo o que mais lhe apraz da dinâmica dos elementos.
Em literatura, não há dúvida, o exercício da imaginação é uma de suas grandes funções pedagógicas, além de um deleite, chegando a reconhecer-se como critério positivo de uma obra sua capacidade de despertar a inteligência do leitor pelo incentivo à busca das suas intenções mais importantes, dos seus sentidos, mais ou menos disfarçados.
Porém, por mais que existam memoráveis exemplos, como a da traição de Capitu, é difícil aceitar que um autor ficcionista buscasse justamente criar um enredo completamente aberto à imaginação dos leitores, equilibrando as pistas em diversos sentidos. Na verdade, é só porque acreditamos existir “um” significado subjacente pretendido pelo próprio autor, instigando nosso espírito de Sherlock Holmes, que nos dedicamos ao estudo aprofundado de uma obra ou de um aspecto seu – ainda que cientes da provável frustração, antevendo que ao fim da jornada continuaremos no humilde reconhecimento de que encontramos apenas nossa própria interpretação. É natural, pois, a variação entre a euforia de um sentido descoberto, “o” sentido, e a melancolia de sua relatividade, seu subjetivismo.
Independentemente disso, se puder ressaltar uma perspectiva sobre “Rei Lear” que, a despeito de somente esquecida ou mesmo questionável, desperte no leitor verdadeiro interesse intelectual pela peça, por sua força formativa e significação histórica, estará plenamente justificada que venha a público o presente ensaio neste ano de celebração dos quatro séculos da morte de William Shakespeare[1].
Pois bem, o “eureka” com a interpretação que ora apresento só veio após uma sequência de decepções.
A decepção com as primeiras leituras: eu já havia me admirado com outras peças de Shakespeare; também me era familiar a apreciação geral dos seus méritos: profundo conhecedor das mais diversas experiências humanas e seu mais genial retratista – imaginem, então, minha empolgação quando li, num rápido relance sobre a apresentação do grande tradutor Carlos Alberto Nunes, estas suas incontidas palavras:
“O Rei Lear é, no consenso geral, a mais estupenda criação de Shakespeare, apesar de ser tecnicamente defeituosa e, como tal, inferior às outras grandes tragédias do mesmo autor: Hamlet, Macbeth e Otelo. A. C. Bradley justifica essa aparente contradição com observar que, ao concedermos a primazia a essa tragédia, não a consideramos, a rigor, como uma peça teatral, mas a igualamos às grandes criações do espírito humano, Prometeu acorrentado, A divina comédia, e também às grandes sinfonias de Beethoven e às estátuas da Capela dos Médicis.”
Marcaram-me vivamente nessa primeira leitura os excessos de Lear, que já me pareciam quase cômicos, mas também seu intenso sofrimento de efeitos cósmicos, as reflexões e maldades de Edmundo, a defesa da sinceridade por Cordélia e Kent, a repetição da tragédia em Gloster – tudo muito interessante. Faltava, contudo, o arrebatamento, aquela admiração boquiaberta ante o “Davi” de Michelangelo, que mantive a fé de que viria até a leitura do último verso. Ao final, senti-me enganado como Gloster por Edgar – a cada cena me imaginava estar escalando o mais alto cume literário, aguardando ansiosamente para o grande momento, tudo preparado para minha exclamação triunfante: “genial! Shakespeare é inigualável!”
O que aconteceu, porém, foi justamente o contrário – após a “cura” de Lear e sua derrota, tudo começou a se desarticular, perder o sentido que parecia unir progressivamente os acontecimentos até o embaraçoso final. Antes de fazer esquentar as orelhas de Shakespeare, retornei diversas vezes às passagens principais, depois fui avidamente à referida apresentação do Carlos Alberto Nunes, esperando um alento. Em vão: ele via a suprema perfeição em tudo o que eu não entendia.
Estrategicamente, resolvi ler “Macbeth”, deixando no fértil “subconsciente” aquelas inquietações. Que diferença! Tudo, em “Macbeth”, é claro e imediatamente impactante. Os famosos níveis de interpretação de Dante podiam ser explorados quase concomitantemente ao ritmo da leitura. O contraste fez-me retornar a “Rei Lear”, não sem antes me munir da crítica mais consagrada- ela, sem dúvida, não me deixaria ao relento.
A decepção com a crítica: fiquei feliz ao ver Otto Maria Carpeaux apontar e aderir ao “consenso” em torno da primazia de “Macbeth” – contrariando o referido “consenso” do Carlos Alberto Nunes -, pois significava a possibilidade de minhas dificuldades com “Rei Lear” não serem exclusividade minha. Entretanto, o que se destacava para o grande crítico austro-brasileiro em “Rei Lear” não me satisfazia de modo algum: “King Lear é a peça de dimensões cósmicas, na qual a Natureza inteira começa a girar em torno da crueldade incompreensível da existência humana.” [2]Northrop Frye, mesmo mostrando as fraquezas de Lear, reiterava sua “figura gigantesca” [3]. Nessa mesma linha Harold Bloom, que via no desgraçado Rei a manifestação do sentimento do bem e da “grandeza patriarcal” na luta contra a maldade fria encarnada em Edmundo[4].
Nem mesmo uma leitura esotérica quebrou o tom de unanimidade em torno da admiração a Lear. Pelo contrário, Martim Lings concluiu que Lear, após passar por um processo iniciático de purgação, atingiu ao final a bem-aventurança, cuja visão do outro mundo estaria expressa nas suas aparentemente despretensiosas últimas interjeições: “Vede, vede, seus lábios…” [5]. Já a historiadora Francis Yates, embora trabalhando também com as correntes esotéricas à época influentes na Europa, não vê glória celeste alguma no final de “Rei Lear”, se interessando mais em encontrar nessa tragédia um análogo intencional com a ascensão e queda do “cabalista cristão” John Dee, influente na sociedade elisabetana e contemporâneo de Shakespeare[6].
Renné Girard, como sempre sagaz e muito mais realista, denuncia as mortes e a guerra como decorrência da vaidade inicial de Lear, que manipulara perigosamente as filhas, mas, também como frequentemente o faz, o genial antropólogo peca na insistência em reduzir os demais acontecimentos à mecânica do contágio mimético[7].
Todos esses epítetos em torno de Lear, acompanhadas de minuciosas análises do texto, me pareceram inspiradores, mas simplesmente não conseguiam dar à obra, quando observada a dinâmica dos personagens determinada por seu autor, um sentido, isto é, um nexo que resolvesse ao menos algumas patentes contradições, como aquela, para ficarmos por ora num único exemplo, nas palavras de Lear na última cena, quando uma profunda e colérica dor pela morte da filha é interrompida por uma nostálgica lembrança de suas habilidades guerreiras.
Voltei ao texto, fazendo um esforço para imaginar o que representava à época de Shakespeare a posição de um Rei, quase divina, de modo que eu sentisse alguma simpatia com os atos de Lear, sua revolta contra as filhas, suas obsessões, sua dor. Assisti, graças à internet, algumas encenações e filmes, aceitando, sem pudores, a impotência de minha imaginação. Foi-me bastante valioso conferir essas produções para ter certeza que meu problema com “Rei Lear” não era um problema com suas traduções (além da do Carlos Alberto Nunes, aqui utilizada, consultei a do Millôr Fernandes e excertos da Barbara Eliodoro, bem como sondei o original em Inglês), porque essas produções ressaltam ainda mais as proporções cósmicas do sofrimento de Lear, elevam à beatitude o seu reencontro com Cordélia e apresentam seu final como uma inexplicável tragédia, sem qualquer questionamento. Enquanto isso, eu, como diria Cordélia: nada! Quanto mais buscava ver a “grandeza” ou a evolução espiritual nos atos de Lear, mais sentia violentar o que me vinha do texto, a peça inteira se desarticulava, pois nenhum dos outros personagens tampouco poderia unificá-la.
Foi quando resolvi aceitar minhas próprias impressões, anacrônicas e preconceituosas que fossem, e aprofundá-las. O resultado foi a descoberta de “o” tal sentido de “Rei Lear”: a implacável vaidade de Lear, o apego obsessivo a uma autoimagem gloriosa que não mais se afirma na realidade dos seus atos e que o impede de se arrepender de suas faltas.
Antes que você desista de continuar a leitura deste ensaio, carregado que está da sensação de que foi ludibriado, pois a vaidade de Lear é um lugar-comum – e dos óbvios!, escancarado que está logo na cena inicial, com o velho exigindo a bajulação das filhas -, deixe-me fazer duas considerações, que talvez refreie seu impulso, caro leitor: as primeiras frases que escrevi aqui me inocentam de qualquer acusação de propaganda enganosa, pois ali abdiquei de qualquer pretensão de originalidade; segunda, creio que a vaidade de Lear tem de ser explorada com mais atenção do que a habitual, pois estou convencido, sendo o que pretendo mostrar aqui, que a peça toda é desenvolvida em torno de sua explicitação e de seus efeitos, estando seus principais acontecimentos diretamente relacionados com ela, inclusive seu final.
Assim como se considera “Hamlet” a peça da vingança, “Macbeth” ficaria bem com o epíteto cobiça e “Medida por medida” poderia ser vista, mais do que uma sátira do puritanismo sexual, como um maravilhoso elogio ao perdão – “Rei Lear” é o retrato da vaidade, levada aos mais absurdos extremos[8].
A esta altura, será oportuno esclarecer que a noção de vaidade aqui referida é bem elástica, englobando tanto a de soberba – que é a fascinação desmedida pelos próprios méritos, isto é, uma vaidade qualificada pela realidade das virtudes que, por autoglorificadas, acabam sendo corrompidas -, situação bastante pertinente a Lear, admirado pelos melhores personagens provavelmente em razão do seu histórico de bom Rei; como a acepção mais moderna de egocentrismo -expressão que, apesar do anacronismo, bem expressa esse fenômeno percebido e explorado por Shakespeare: o eu que se absolutiza, seja para se exaltar, adulando-se, seja para se defender, apiedando-se.
Também merece ser destacado que em nenhum momento pretendo reduzir a complexidade de temas que compõem “Rei Lear” ao egocentrismo, seria risível. Quem poderia negar o trabalho de Shakespeare, por exemplo, para abordar os problemas da senilidade e da loucura? Mas se essas questões fossem as determinantes da peça, Lear deixaria necessariamente de ser o personagem principal, passando a tragédia exclusivamente para o lado dos bons personagens (como Kent e Gloster), os quais, então, imprudentemente teriam se mantido subservientes a um Rei condenado desde o início à incapacidade. Enfim, creio que o Bobo bem resolveu como enquadrar a senilidade e a loucura no sentido geral da peça nesta admoestação a Lear: “Não devias ter envelhecido antes de ficares sábio.”[9]Assim, o que apresento como o sentido unificador da obra é justamente a ausência de sabedoria em Lear, não no seu aspecto mais superficial sugerido pelo Bobo (erro em partilhar as posses com as filhas), pois esse é mero efeito da relutância do Rei em reconhecer suas próprias injustiças e veleidades como causa dos males que sucedem – sem essa sincera confissão e arrependimento, de nada adianta clamar aos céus a salvação da loucura.
Seria tedioso transcrever todas as passagens que suscitam minha tese. Se puder demonstrar sua pertinência nos momentos reconhecidamente cruciais de “Rei Lear”, qualquer um poderá explorá-la por conta própria numa completa releitura. Embora analisadas separadamente, estão as passagens destacadas, obviamente, interligadas, o que alguma vez exigirá repetições. Seguindo a ordem da peça, analisarei os seguintes momentos: a) a bajulação como condição para divisão do reino; b) a revolta contra as filhas; c) a tempestade na Charneca; d) o reencontro de Lear e Cordélia e suas prisões; e) o drama paralelo de Gloster; f) a cena final; g) valerá, ainda, sondar as relações de Lear com o Bobo.
Por fim, peço a gentileza dos leitores de me permitirem justificar o título deste ensaio mais ao final, evitando antecipar em demasia as conclusões que pretendo sejam vistas emergir da obra-prima de William Shakespeare.
Dividir para aparecer.
Lear organiza um campeonato de bajulação entre as filhas, supostamente para decidir como dividir seu reino. O paradoxo entre o interesse no prêmio prometido e a contrapartida esperada pelo cansado pai – a manifestação do amor delas por ele -, denuncia a falsidade da disputa, pois o amor é, como nada mais neste mundo, desinteresse ao bem próprio pela dedicação ao bem de outro. É também a tese de Shakespeare, materializada em Cordélia, cuja resistência em participar da encenação revela seu pudor pela sinceridade dos seus sentimentos – pudor no sentido de Max Scheler, isto é, a proteção de algo tido como valioso da sua banalização.
Também ilustra a farsa o fato de que antes da manifestação de Cordélia já ser anunciado o resultado: o reino estava programado para ser dividido em três partes, a melhor para a caçula e preferida, as outras duas, iguais em “renda, graça e extensão”, para Regane e Goneril. O teatro é montado, pois, apenas para Lear afagar o seu ego – coerentemente, ele pretende reter, após abdicar de seus deveres, nada menos que o nome e as dignidades de Rei, além de um ocioso séquito a sua disposição.
Ante a primeira resistência, Lear insiste com Cordélia, qualquer pequeno agrado seu será suficiente para manter a querida encenação pública. Mas nem mesmo a espirituosa justificativa de Cordélia[10] é capaz de aplacar a frustração de Lear – não lhe interessa saber que é amado, ele quer ouvir, ainda mais diante de tão excelsos convidados, a exaltação de sua pessoa.
Kent, corajosamente, mesmo ameaçado, diz claramente o que vê: “Que estás fazendo, velho? Acaso pensas/ que o dever tenha medo de falar,/ quando o poder se abaixa até a lisonja?” Contra esse rebaixamento moral do Rei, não receia em se sacrificar.
Cordélia não tem vergonha de sua sinceridade, com a qual conquistará o respeito de França, e sabe muito bem o que lhe falta para ser bem quista pelo pai: “o olhar adulador/ e língua que não ter muito me alegra/muito embora essa falta seja a causa de me fazer perder vossa amizade”. Nisso Lear concorda: “Melhor te fora nunca ter nascido,/ do que deixares de agradar-me agora”. [11]
Ante esse triste espetáculo, não é sem razão, pois, que as até então amorosas Regane e Gorneril já se imaginem virem a ser prejudicadas pelos caprichos do velho Lear.
Meu orgulho por um afago.
Cordélia sabia que Lear precisaria de um asilo verdadeiramente amoroso para recuperar-se, mas que dificilmente o encontraria nas maliciosas irmãs.
Contudo, Shakespeare tem bastante cuidado em evitar que elas, ante o público, absorvam a culpa do que aconteceu, e também do que sucederá, e o faz de forma magistral, por duas vias. Por um lado, dá-lhes justificativas (expressadas sempre de forma polida, equilibrada) bastante razoáveis para seus atos. Por outro, destrói o último resquício de nobreza que Lear possuía, ainda que deturpado, e que sustinha nossa simpatia com sua dor – o orgulho Real. Vemos essa postura logo no início, que Lear registra de forma solene a propósito do pedido do Duque de Burgúndia para que retomasse a oferta inicial do dote de Cordélia: “Nada, sou firme; fiz um juramento.”[12]
Se estivéssemos simulando um exercício jurídico, o que não era de todo estranho a Lear[13], poderíamos fazer a sua defesa perante as filhas invocando a natureza de condição resolutiva dos encargos impostos aos beneficiários das suas doações, isto é, as filhas não poderiam restringir o séquito de cem cavaleiros ou a moradia dele em suas casas sem se arriscarem a ver seus reinos retornando às mãos de Lear.
Mas nem precisaríamos ir tão longe, pois o respeito que se deve a um Rei, imaginemos, principalmente um admirado e velho Rei, exige acima das obrigações jurídicas que se seja fiel às condições que ele estabeleceu, e foram livremente aceitas, ainda que sejam arbitrárias e inconvenientes – como poderia realmente ser desagradável, custosa e perigosa a presença de cavaleiros ociosos no paço. A palavra do Rei deve prevalecer e, junto com ele, não podemos fazer qualquer concessão… a não ser que ele mesmo o faça: ao invés de orgulhosamente exigir o respeito devido ao que estabelecido, ele passe a implorar de joelhos por compaixão; ao invés de ser intransigente nas suas condições(cem cavaleiros), aceite barganhá-las – como sabemos, é exatamente o que Lear faz!
É verdade que o Rei parece se importar sobretudo com seu orgulho, haja vista que, após ser instado por Regane que regressasse à casa de Gorneril, ele reage:
“Jamais, Regane; ela cortou-me o séquito/ de metade dos homens, dirigiu-me/ olhares carrancudos, alcançando-me/ o coração com a língua viperina./ Que em sua fronte ingrata caiam todas/ as vinganças que o céu guardado tenha./ Insuflai-lhe nos ossos jovens, ares/ pestilenciais, humores deformantes!”[14]
Obviamente que tal desproporção entre as faltas da irmã e as pragas lançadas não sensibilizam Regane. Ela sabe que os agrados e momices que Lear agora lhe defere logo passarão a ultrajes, assim que ela falte nesse jogo de reciprocidade vaidosa – afinal, foi o que aconteceu com Cordélia e com Gorneril, embora com méritos completamente distintos.
O golpe final na reputação de Lear é a sua venalidade, sendo capaz de redimir a anteriormente demonizada Gorneril para não ver o número de seus cavaleiros novamente cortado pela metade:
“Certas criaturas/ boa aparências apresentar conseguem,/ quando outras em maldade as sobrepujam./ Não sendo as piores, cabem-lhe elogios./ Contigo ficarei; os teus cinquenta/ o dobro são dos vinte e cinco dela, e o seu amor tu vales duas vezes.”[15]
Pior para Lear que ainda tentou justificar suas veleidades, ante o avanço triunfante das filhas, que aproveitaram seu recuo para abolir de uma vez o séquito, porque teve de reconhecer que sua exigência era tão digna quanto o uso que elas faziam de “vestes luxuosas que em matéria de aquecimento em nada te protegem” – ou seja, meus desejos são superficiais, mas os seus também…
Depois desse show, embora um certo ar cômico nos tenha distraído, começamos a perceber quem é Lear: não é um Rei poderoso com meros problemas temperamentais decorrente da senilidade – é um fraco, inseguro de si, obcecado com sua imagem real sem ser capaz de honrá-la e defendê-la. Não só nós, espectadores, descobrimos essa triste mas incontornável verdade. Ela choca o próprio Lear, mas ele só vê seu sofrimento, se considera apenas como vítima sem forças próprias para se vingar.
Shakespeare não se esquece, contudo, de nos dar um pouco mais também de Regane e Goneril, fazendo-as saírem da pose de senhoras polidas e sensatas – alegadamente, até então, apenas preocupadas com a ordem em seus lares -, para revelarem, ainda de forma dissimulada, seu desprezo pelo pai. Primeiro Goneril, a respeito do abandono do velho Lear na tempestade: “É só dele/ toda a culpa. Privou-se do conforto,/ tendo, assim, de provar da própria insânia.” Na sequência, Regane ante as preocupações de Gloster com a integridade do Rei: “Ora, senhor! os teimosos aprendem com os incômodos/ que a si mesmos procuram.” Pilatos “redivivus” em dose dupla!
Ai de mim!
É possível ver a descrição da tempestade na Charneca como um símbolo do poder Real de Lear, a conexão estreita dele, de sua fúria, com a ordem cósmica. A associação não é arbitrária, pois Shakespeare já havia preparado o terreno com as preocupações astronômicas de Gloster: “Esses últimos eclipses do sol e da lua não/ nos anunciam nada bom.”[16] A convincente refutação dessa “ótima escapatória” de nossas responsabilidades é feita, no entanto, por Edmundo, cuja perfídia já conhecida quase nos obriga a um julgamento ad hominem: concordamos com a veracidade de suas palavras, mas as recusamos por provir de sua pessoa. Shakespeare camuflou o tema central da peça na boca do seu maior falsário[17].
Deve-se ter em conta, ainda, a maior verossimilhança dessas relações cósmicas para o público londrino de 1600, além das impressões causadas pelos prováveis efeitos cênicos bem sincronizados com as exclamações.
Seja como for, os efeitos desse jogo conseguem afetar também a nós, modernos, o suficiente, ao menos, para nos impressionar a retórica de Lear na Charneca:
“[…] Não vos acuso/ de ingratos, elementos. Nunca um reino/ vos dei, nem vos chamei sequer de filhos./ Não me deveis nenhuma obediência./ […] No entanto, declaro-vos ministros/ servis, pois com duas filhas perniciosas,/ tratais vossas batalhas de alta origem/ contra uma fronte tão encanecida/ e tão velha como esta. Oh! Que vergonha!”[18]
De certa humildade Lear de repente avança para sugerir um complô das forças naturais contra sua velha fronte – nem uma palavra sobre suas injustiças com Cordélia e Kent, sua descompostura perante as filhas… Será que esses erros o afligem? Um pouco mais e já se considera apto a dirigir os “grandes deuses” em busca dos verdadeiros inimigos, os criminosos de todos os tipos cujas atrocidades estão ocultas – por alguma razão, entretanto, não pode deixar de ressaltar que “quanto a mim, sou mais vítima de culpa/ do que culpado mesmo. ” Kent, que vira desde o início o caminho de perdição a que Lear se precipitara, não se impressiona –ao contrário de nossa habitual reação – com essa versão parcialíssima da trama: “Oh! que tristeza! Cabeça descoberta!”[19]
A tempestade na mente de Lear se intensifica, ele se vê às portas da loucura, pensa em vingança, mas precisa mesmo é se lisonjear: “Ah Goneril! Regane! Vosso velho/ pai, tão bondoso, que vos dera tudo/ com franco coração!” Por um momento, porém, sua atenção ao Bobo desperta-o de si mesmo, finalmente enxergando o drama dos próximos, dos pobres de seu reino – é-lhe uma revelação:
“Onde quer que estejais, pobres sem roupa,/ que os golpes suportais desta impiedosa/ tempestade, dizei-me: de que modo/ vossos flancos mirrados e as cabeças/ desprotegidas, vossos trapos ricos/ em furos e janelas hão de o corpo/ vos proteger numa estação como esta?/ Oh! muito pouco me ocupei com isso!/ Cura-te, fausto! Vai sentir o mesmo/ que os miseráveis sentem, porque possas/ sobre eles derramar o teu supérfluo/ e os céus mostrar mais justos.”
O momento é grandioso, sem dúvida. É emocionante imaginar o público do Teatro Globe, que era o palco principal das peças de Shakespeare à época, em grande parte formada por pessoas pobres e desgraçadas de toda espécie, vendo sua triste realidade reconhecida de forma tão passional por um Rei. Creio que boa parte da admiração que até hoje temos por Lear decorre dessa passagem, influenciando toda nossa compreensão por seus demais atos, ao ponto de não percebermos a reviravolta, ou melhor, a regressão imediata de Lear ao seu mundinho de autopiedade.
De fato, após fazer juras de amor aos pobres em geral, surge-lhe à frente o pobre Tom, um mendigo de carne e osso – sabermos que se tratar de Edgar é irrelevante, aqui. Qual, então, a atitude de Lear? Persiste sua compaixão?
Mais ou menos. Lear reconhece plenamente a pobreza de Tom, mas não consegue deixar de associá-la bizarramente ao seu infortúnio, obviamente para recolocar a si próprio no centro das atenções: “Deste às tuas duas filhas tudo o que tinhas, para ficares desse jeito?” Tom está com frio e pede alguma caridade. Lear não quer mudar de assunto: “Como! Suas filhas o trouxeram a isso? Nada te reservaste? Deste tudo?” E se a miséria do pobre Tom está a milhas desses problemas Reais, como bem reconhece Kent sem precisar de uma única palavra do coitado para sua dedução, sugerindo assim que hajam situações tão ou mais degradantes que a de Lear, pior para ele: “Morre, traidor! Pois nada poderia/ rebaixar as misérias de tal modo a natureza,/ senão filhas ingratas.”[20]
Recebemos um balde de água fria tão impactante com essa terrível demonstração de egoísmo que somos forçados a invocar o álibi da loucura – há pouco, Lear estava são quando declamou em favor dos pobres; agora, não mais sabe o que diz. De certa forma é assim, mas não é uma questão tecnicamente de sanidade e loucura, mas de abertura para a realidade, dos outros e sua própria, e fechamento na sua autoimagem.
Não parecia possível, mas Lear consegue ser ainda mais cruel com Gloster, que, mesmo desfigurado, por ter tido os olhos arrancados brutalmente, lhe aparece com toda a reverência e se inclina para beijar-lhe a mão. Lear não perde a chance de mostrar sua etiqueta: “Primeiro deixai que a limpe; cheira a/ mortalidade.” Tudo bem, foi um mau começo nesse reencontro. Certamente alguma consideração e pesar por seu antigo e fiel conselheiro deverá demonstrar o Rei. Digam-me, caros leitores, o que acham disto: “Lembro-me perfeitamente de teus olhos./ Estás piscando para mim? Não, Cupido cego; por/ mais que faças, não chegarei a amar-te. […]”. Lear, pois, percebe claramente os ferimentos de Gloster, mas, talvez, não o esteja reconhecendo, sabe como é, a senilidade, a loucura… Só que Shakespeare – após certo suspense em torno da pergunta de Gloster: “Reconheces-me?”, induzindo-nos a acreditar que a resposta tácita era negativa – não quer deixar dúvida e faz Lear falar, como poucas vezes, na ordem direta e em sentido literal: “Sei de sobra quem és. Teu nome é Gloster”.[21]
A raiz dessa insensibilidade pode ser resumida em uma frase; claro, do próprio Lear, dirigindo-se ao mutilado Gloster: “Toma meus olhos, se chorar desejas/ minha infelicidade”. Além do egocentrismo de que já falei bastante, mas não tudo, parece-me marcante dessa e doutras passagens semelhantes o tom de humor que ela parece exigir para que não nos provoque imediata repulsa – humor negro certamente.
Ser desrespeitado pelas filhas deve ser realmente ruim; elevando-se o drama exponencialmente por se tratar de um bom Rei que lhes doara tudo; mas será razoável sua completa indiferença ao mal físico horrível de Gloster?
Parece-me sugestivo demais o contraste das situações para ser casual – Gloster realmente cego, percebe seu erro perante Edgar, arrepende-se ao ponto de desesperar-se, mas nunca perde suas preocupações com o Rei; Lear enxerga tudo claramente, distingue as pessoas e as coisas, mas não vê nada a não ser sua realeza aviltada. Voltarei a analisar esse paralelo mais detidamente em breve.
Estratagema de autodefesa ainda mais radical, e absurdo, será a abdicação de Lear de toda a moral, quando anuncia em viva voz que ninguém comete crimes ou pecados – aliás, declaração surpreendente vinda de um Rei que se sente profundamente injustiçado. Antes, na Charneca, Lear invocara os elementos para punir os que praticaram “atrocidades ocultas”, bastando o adendo, por precaução, de que ele “era mais vítima de culpa/ do que mesmo culpado”. A situação, agora, mudou muito, uma iminente guerra se anuncia, morte e destruição que se precipitam diretamente decorrentes de sua pessoa, de seus atos – essa realidade é muito densa para ser contornada com os habituais queixumes. Terá de teorizar:
“Nisso poderás/ contemplar a grande imagem da autoridade:/ um cachorro no desempenho de suas funções é/ obedecido./ Oficial de justiça desonesto, suspende a mão sangrenta! Por que açoitas/ essa pobre rameira? Vira contra/ ti próprio essa chibata. Estás ardendo/ de desejos de com ela realizares/ o ato por que a castigas. O onzeneiro/ põe na forca o ladrão. As faltazinhas se deixam ver nos furos dos andrajos;/ mas as togas e as peles tudo encobrem. Forra de ouro o pecado, e a forte lança/ da Justiça se quebra sem feri-lo;/ cobre-o de trapos, e uma simples palha/ vibrada por pigmeu vai transpassá-lo.”
Se acabasse aqui o discurso, poder-se-ia considerar que Lear está tendo mais uma epifania do bem – como a que teve na Charneca ante a pobreza de seus súditos -, denunciando a hipocrisia das convenções sobre os pecados, os crimes, muito convenientes aos protegidos por togas e ouro que podem contornar as consequências de suas faltas. Mas se assim fosse, teria de afirmar uma ordem transcendente de Justiça a partir da qual condenava este mundo, com o desagradável corolário de sua espada também recair sobre a cabeça do próprio Lear.
Foi para fugir disso, em verdade, que revelou a tirania da autoridade como árbitro do certo e do errado. O oficial de justiça que lhe intima, sua consciência que tanto o perturba, foi desmoralizado. Mais um passo, absolve todos, em especial si mesmo: “Ninguém comete falta, é o que te afirmo;/ ninguém. A todos sirvo de fiador./ Podes acreditar-me, amigo; fala-te/ quem força tem para fechar a boca/ da acusação.” Aquele “realismo político” não era senão a preparação, como para atenuar o impacto, de sua impressionante confissão: “Arranja umas lunetas/ e, como vil político, imagina/ ver as coisas que não vês.”[22]
No original: “Get thee glass eyes, and like a scurvy politician, seem to see the things thou dost not.” Encontre um disfarce, você é livre para ver, e se ver, como quiser! Jamais na literatura ocidental fora tão claramente demonstrada a relação direta entre o niilismo e as utopias políticas. O grande mestre da filosofia política no século XX, Eric Voegelin, deve ter tido em mente essa passagem quando lecionou:
“[…] Então, quem quer que, como estúpido, num lugar da sociedade em que não poderia estar, dá ordens ou tenta instruir outros, é um estúpido criminoso, mesmo que ele próprio não entenda assim de maneira nenhuma.
Existe atualmente toda uma série de estudos sobre essa estupidez criminosa, e deveis realmente conhecê-los em minúcias. Todo estudante de Ciência Política deveria lê-los. Um dos mais antigos estudos clássicos de estupidez criminosa é o Rei Lear, de Shakespeare. É um excelente estudo.”[23]
Cordélia espera…
Agripino Grieco nos conta como seus amigos se afoitavam, segundo ele em vão, tentando lhe mostrar a genialidade da “Teoria do Medalhão” de Machado de Assis: “A ‘Teoria do Medalhão’, ária muito elogiada, para a qual nos previnem: ‘É agora… preste atenção… ouça direito…’, prende, mas não é bem o que se espera.”[24]
Não posso concordar com o ceticismo do famoso polemista quanto a esse conto, mas entendo o impasse – é mais ou menos o meu ante ao reencontro de Lear e Cordélia. Diversos indícios atiçam meus sentimentos para um grande momento de arrependimento, perdão e amor – justamente como podemos ver nas produções cinematográficas e na habitual visão da crítica -, que se desiludem na medida em que as frases saem vagarosamente dos lábios do combalido Lear. O grande momento da cena, belíssimo sem dúvida – “Nenhuma causa! Não; nenhuma causa!” -, não é dele, mas de Cordélia, de quem, contudo, já sabíamos o valor, portanto não nos surpreende.
É verdade que Lear mostra sinais de progresso. Logo que acorda parece perceber seu labirinto interior: “És uma alma/ da bem-aventurança; eu, porém, me acho/ a uma roda de fogo sempre atado,/ que minhas próprias lágrimas escaldam/ como chumbo fundido.” Mas a autopiedade não tarda, exagerada como sempre: “Oh! Procederam muito mal comigo;/ morrer de compaixão eu poderia,/ se visse alguém tratado desse modo.”Cordélia pede-lhe benção e ele inesperadamente se lança a seus pés, porém ainda sem confessar que a reconhece. Ao final, de forma contida, talvez profundamente intensa, talvez seca, uma lacônica retratação, acompanhada de nossas conhecidas atenuantes: “Esquecei e perdoai-me, por obséquio. Estou velho e caduco.”
Suspeito que Shakespeare quisesse mesmo frustrar a expectativa que ele próprio nos insuflara quanto à derradeira reconciliação de pai e filha, uma que fizesse jus à potente loquacidade de Lear, deixando no ar, assim, uma possibilidade não concluída, dispondo o público a aguardar ansiosamente até o próximo e último Ato – por enquanto Lear se cinge a avisar, a Cordélia e a nós: “Precisareis comigo ter paciência.”
Transcorre a guerra, Cordélia e Lear são feitos prisioneiros e levados à presença de Edmundo, ora comandante do exército de suas prometidas amantes, Regane e Goneril. Surge aqui uma nova oportunidade de Lear mostrar suas credenciais Reais.
Ao serem enviados à prisão por Edmundo, Cordélia, preocupada principalmente com o pai, interpela legitimamente pela presença das irmãs – estratégia bastante razoável considerando não serem quaisquer prisioneiros, sendo mesmo surpreendente que providência semelhante fosse determinada por um insignificante súdito, como virá a ressaltar Albânia[25]. Por outro lado, nós leitores sabíamos da intenção desse de “dar-lhes tratamento conforme o próprio mérito o exigir”, haja vista que receava terem o Rei e seus defensores se levantados “por motivos mui justos e de peso”[26].Teria sido uma boa oportunidade, portanto, para Lear mostrar sua nobreza, resistindo espalhafatosamente com seus discursos blasfemos, exigindo a presença dos seus, retribuindo a generosidade da filha oferecendo-se em sacrifício, suplicando pela libertação dela, etc.
Todavia, Lear é vítima de uma inusitada crise possessiva – “Não, não, não, não! Levai-nos para o cárcere” -; tudo o que deseja, agora, é ter junto a si sua querida filha, seja onde for, mesmo na prisão – “nós dois, sozinhos, cantaremos como/ pássaros na gaiola” -, onde poderiam ter sublimes momentos de devoção e contemplação de variegadas borboletas, além de se entreterem com as fofocas mais quentes do palácio real. Num primeiro momento pensamos que Lear, enfim!, percebeu a superficialidade das dignidades Reais por que tanto lutou e sofreu, renegando-as em benefício de uma vida simples mas cheia de sentido, de amor verdadeiro com sua filha desde sempre preferida. Talvez, para um velho mais pra lá do que pra cá não fosse tão ruim passar seus dias restantes nessas condições – mas e para Cordélia, bela, jovem e bem casada, que tal essa perspectiva de longíssimo prazo? As lágrimas dela são uma eloquente resposta.
Lear busca consolá-la, mas só consegue elevar-se ao cume da estupidez: “Sobre um sacrifício destes,/ minha boa Cordélia, os próprios deuses/ jogam incenso.” Não há sacrifício algum! Cordélia está sendo arrastada ao calabouço – por ordem de Edmundo é verdade, porém com a pronta colaboração de Lear! Nenhuma hesitação do Rei em trazê-la consigo, nem uma gota daquele ímpeto de autosacrifício paternal que a Graça distribuí em quase todos os lares. Retoma a virilidade, só para escoltá-la: “Tenho-te bem presa?/ Quem quiser separar-nos há de um facho/ trazer do céu, para tocar-nos, como/ a raposas.”[27]
Não compreendo como pode essa passagem ter sido tantas vezes incensada – não pelos deuses, claro – sob a ideia de que se manifestara finalmente o amor de Lear. Causa-me muito maior admiração quando a concebo como o retrato de mais um aspecto do fenômeno egocêntrico, que é a ânsia pela posse de alguém, ou coisa, ainda que isso lhe cause mal. No caso, Lear somente abandona sua cruzada pela integridade de sua autoimagem real para se agarrar em Cordélia, tê-la à disposição de seus interesses. Segundo me parece, Shakespeare mostra que Lear, mesmo recuperado da “loucura”, não conseguiu ainda desatar-se da sua “roda de fogo”, quebrando a expectativa do público em torno do seu progresso contínuo. Mas ainda não acabou, talvez, na última hora…
Tarde demais.
“Uivai, Uivai, Uivai! Sois empedrados!” Lear está furioso com a indiferença dos personagens ante o corpo morto de Cordélia. Para ele, são “traidores todos![…] assassinos.” Quem são esses monstros ali presentes? Kent (Caius), Albânia – logo aqueles cuja nobreza se afirmara por toda peça! – e alguns oficiais alheios ao drama. Esse despropósito só se justificaria pela loucura – mas se a há, não é total, pois Lear sabe a verdade: “Poderia [ele, Lear] tê-la salvo, mas foi-se para sempre.” Definitivamente, não estamos vendo um louco, mas a luta final entre o delírio voluntário, o mergulho no mundo em que os outros são sempre os culpados, seu ego é a medida de todas as coisas, e a dolorosa sanidade da consciência moral. Vimos que até Edmundo tivera seu momento de sincero arrependimento[28] – é agora ou nunca, Lear!
A autoconfiança do Rei oscila: “[…] Foi-se/ para sempre! Conheço muito bem/ quando alguém está morto ou quando vive./ Morta está como terra. Ide buscar-me um espelho.” Uma esperança – real ou imaginária, não importa – “a pluma está a mexer! Ela está viva!”! Que faz ele, agradece aos céus, pede ajuda, faz-lhe juras, ou simplesmente sorri de alegria como Gloster? Nada disso, “habemos ego”: “Oh! Se for assim mesmo, é uma ventura/ que recompensa todos os pesares/ por que tenho passado.” Talvez, um sussurro?! Emociona-se com a lembrança da doce voz de sua princesa, ali, morta… De repente, está a falar de seus feitos da mocidade: “Já houve tempo/ em que com minha espada de bom gume/ os fazia dançar. Ora estou velho/ e estes trabalhos todos me deprimem.” Não podia faltar sua comiseração habitual. Conversa desembaraçadamente com Kent, que lhe revela o disfarce e, depois, precisa retomar o luto já esquecido pelo Rei: “Ninguém é bem-vindo./ Tudo é sem alegria, escuro e morto.” Mas não há mais tempo, o Rei se entrega à ilusão, “já não sabe o que diz”, vê Albânia, e morre fazendo-se de desentendido: “Por que causa terá vida um cavalo, um cão, um rato, e tu, fôlego algum?”
Que causa?!
O sorriso de Glouster.
Se fosse o caso de apontar um único aspecto de “Rei Lear” para o qual os críticos têm sido displicentes além de qualquer medida certamente escolheria o drama de Gloster:
– primeiro, porque quase tudo o que se diz a esse respeito se resume a indicar sua similitude com o drama principal de Lear: ambos são traídos pelos filhos. A explicação para esse paralelo seria a intenção de Shakespeare de reforçar o tema da peça, dar-lhe verossimilhança, mostrando se tratar de situação mais comum do que normalmente se imagina, pois a Fortuna não distingue entre Reis e plebeus;
– segundo, uma maior atenção às peculiaridades dos acontecimentos em torno de Gloster deve ser feita independentemente da interpretação global que se dê a “Rei Lear”, não importando, pois, se se a considera como uma tragédia ou comédia, se Lear é um monumento ou monstro. Entretanto, pretendo mostrar que as diferenças patentes entre os itinerários percorridos por Lear e Gloster são percebidas com maior nitidez quando apreciadas à luz da tese aqui esboçada.
Diferentemente do entendimento consagrado, pois, considero que o denominador comum das sagas de Lear e Gloster não está na traição filial, pois aquele se fez de tonto para acreditar nas forçadas declamações de Regane e Gorneril, enquanto Gloster foi enganado a sua completa revelia por Edmundo, sendo culpado, nisso, somente de excessiva ingenuidade[29]– aliás, transmitida geneticamente a Edgar; Lear, por seu lado, é sumamente injusto com Cordélia e Kent, sem atenuantes, sendo essas atitudes a causa de todos os males que se sucederam. Podemos afirmar sem pudor: ao contrário de Gloster, o Rei é muito mais culpado do que vítima.
Em verdade, o grande ponto de contato entre esses personagens é justamente o sentimento de culpa, reagindo cada qual, no entanto, e isso é fundamental, em sentidos opostos: o escotoma moral em Lear; o arrependimento profundo em Gloster. Tão logo Gloster descobre a trama de seu filho bastardo, brada: “Oh! Que tolo que fui! Então Edgar foi caluniado! Deuses bons, perdoai-me.”[30] O arrependimento é imediato; arrancaram-lhe os olhos, mas isso não é o que o consome: “Oh meu querido/ filho Edgar, alimento da iludida/ cólera de teu pai, se eu tiver vida/ para te ver ainda, pelo tato,/ direi que achei os olhos.”[31]. Seu pesar é exclusivamente por Edgar, e tão sincero que buscará o suicídio no penhasco. Já Lear, fugindo incessantemente de suas culpas, atormentado por sua consciência moral – bem, é a minha tese -, passa toda a estória externando seu sofrimento, sentindo muita pena de si mesmo, conseguindo, quando muito, balbuciar parcas retratações.
Esse contraste me fez lembrar de uma imagem magistral que abre “A Presença Total” de Louis Lavelle, que talvez possa iluminar mais uma peça do quebra-cabeça “Rei Lear”:
“[Em épocas conturbadas a] consciência busca uma amarga fruição nestes estados violentos e dolorosos, onde o amor-próprio está bem vivo, que pelo próprio impulso que imprimem ao corpo e à imaginação, nos dão, por fim, a ilusão de termos penetrado na raiz mesma do real. Não é senão aparentemente que se aspira a sair do seu cativeiro; temer-se-ia antes que não fossem suficientemente agudos, como um punção cujo movimento se quedasse incompleto.”[32]
Nessa linha, o sofrimento que Lear nos informa tantas vezes, o qual ninguém nega certo fundamento, é, de algum modo, calculado, está dentro do limite que ele pode suportar, um meio subterfúgio à confrontação da verdadeira dor que lhe adviria, cuja antevisão já se insinua insuportável,da assunção completa de suas responsabilidades. Gloster mesmo não conseguiria superar tal desgosto de si senão com a intervenção amorosa de Edgar.
Pois bem, no caminho que cada um seguiu a partir do “erro comum”, conforme as circunstâncias próprias, distintas, e as respostas morais livremente seguidas, forjaram-se os modos como cada um iria se despedir de sua prole querida e do mundo, marcando-os o destino final.
Mostrei anteriormente que mesmo com o corpo de Cordélia em seus braços Lear não se desapega de seu ego, embora pareça tentar reagir, morrendo desgraçadamente indigno da filha e da realeza que tanto amava. No caso da morte de Gloster, só ficamos sabendo de como se passou pela posterior narração de Edgar:
“Tratando delas, meu senhor, apenas./ Ouvi uma história curta, e logo que ela/ tiver sido contada, oh! Que me estale/ de dor o coração. Da sanguinária/ proclamação porque escapar pudesse,/ que tão de perto os passos me seguia – / Oh doçura da vida, que nos fazes/ preferir morrer de hora em hora as dores/ da morte a de uma vez morrer de todo! -/ precisei disfarçar-me com os andrajos/ de um demente, assumindo uma aparência/ que até mesmo os cachorros repelia./ Com essas vestes fui achar meu pai,/ cujos anéis sangrentos as preciosas/ pedras tinham perdido. Transformei-me/ em seu guia, pedi para ele esmola,/ por toda parte o conduzi, salvei-o/ do desespero, sem que nunca – oh falta!/ lhe houvesse revelado que eu era,/ senão há cerca de meia hora, quando/ já me encontrava armado. Não me achando/ seguro de vencer, pedi-lhe a benção/ e minha peregrinação contei-lhe,/ do começo até ao fim. Mas seu rachado/ coração, ah! Muito fraco porque a luta/ pudesse suportar dos dois extremos/ da paixão, alegria e sofrimento,/ sorrindo arrebentou.”[33]
Podem ter sido as mais diversas as razões para Shakespeare não representar no palco essa duplamente emocionante revelação e despedida, inclusive a economia de tempo, embora certamente não seja para ressaltar a agonia de Edmundo, como sugere Harold Bloom – crítico tão exageradamente aficionado na maldade do bastardo que se esquece até de sua tentativa de redenção: “quisera fazer ainda algum bem”. Contudo, vejam vocês que não faria sentido Edgar fazer todo o relato de sua trajetória se não fosse para nos contar justamente aquele seu momento derradeiro com o pai – ora, tudo o mais já sabíamos!; e Albânia poderia ser informado longe de nossas vistas sem problema algum para o enredo. Justifica-se conjecturar, pois, sobre a importância desse relato para a peça. É claro, de algum modo teria de nos ser dada informações sobre Gloster, sendo já suficientemente estranho o desaparecimento do Bobo, mas não seria Shakespeare se fosse dada de qualquer maneira – e, como já está claro, não hesito mais em reconhecer um Shakespeare inspiradíssimo em “Rei Lear”!
De fato, parece-me ter ele encontrado um maravilhoso equilíbrio: por um lado, evitou que o final verdadeiramente redentor de Gloster gerasse um clímax fora de hora, ofuscando a história principal; por outro, reforçou no público a expectativa dessa emoção referente a Lear, servindo de superfície de contraste para a decepção fúnebre que se seguiria.
De fato, as breves palavras de Edgar são suficientes para nos emocionar, rememorando-nos o sofrimento físico de Gloster, seus momentos de arrependimento sufocante e fraqueza, desgraças suplantadas pela boa nova: o filho injustiçado estava vivo e o perdoara, tudo e apenas o que precisava para morrer com o coração sorrindo.
O bobo Lear.
As declarações de Lear são normalmente interpretadas num tom grave, sério, às vezes sombrio, como que o ressoar de trovões que prendessem nossa atenção por admiração e medo. Esse tom está presente, sem dúvida, quando ele pragueja suas filhas, o cosmo e o destino. Porém, isso não permite que se impute a “Rei Lear” uma monocórdia tenebrosa que, além de contribuir para o olvido de todas as nuances psicológicas e morais acima apresentadas, é incompatível com outros elementos expressivos que claramente contemporizam a seriedade de Lear naqueles momentos.
Bastante significativas são as contradições performáticas em que incorre Lear. Já me referi acima (i) ao momento em que Lear, tendo expansivamente praguejado Gorneril, aceita retornar a sua casa em razão da proposta de nova redução do seu séquito por Regane, quem, ademais, passa a ser ultrajada pouco depois de Lear garantir-lhe que “jamais terás minha maldição”; (ii) a profundidade da declamação arrependida de Lear para os pobres do reino e o imediato retorno da obsessão por seus problemas ante o pobre Tom; (iii) mesmo no Ato final – quando a filha jazia falecida em seus braços – as oscilações escandalosas de Lear não desapareceram.
Essas mudanças abruptas, estereotipando a discrepância entre a imagem grandiosa que Lear tem de si e a sua pequenez moral efetiva, são verdadeiras autodenúncias, porém dentro da sua linha semiconsciente, ou consciente em negação, cuja comicidade é patente, só não descarrilando em hilaridade porque sentimos também tristeza pela realeza que Lear vai abandonando – é como se diz, “seria cômico se não fosse trágico”.
Não é fortuita, portanto, a relação harmoniosa de Lear com o Bobo. Lear diversas vezes participa de bom grado e até estimula o Bobo em suas enigmáticas piadas. Além disso, é Lear quem inicia diversas “brincadeiras” com outros personagens, como o “julgamento” fantasiosamente montado das filhas[34], o diálogo em rápidas tiradas com Kent[35] e a já referida péssima piada com as mutilações sofridas por Gloster. Isso mostra que Lear não era alguém absolutamente impenetrável ao humor, pelo contrário, depende dele para manter alguma empatia, para não ser logo julgado como um perverso.
São significativas as participações do Bobo nas Cenas IV e V do Ato I, logo na sua primeira aparição, oportunidade em que afirma ser o Rei um bobo, o “bobo amargo” que dá a si mesmo maus conselhos. Depois, ao desaparecimento inexplicado do Bobo da peça se segue a entrada em cena de Lear fantasiado, manejando impropérios e tiradas incompreensíveis. Lear parece assumir o papel de bobo justamente quando a gravidade dos acontecimentos atinge seu auge com o conflito armado.
Em “Jacob e o Anjo”, o grande romancista, poeta, dramaturgo e crítico literário português José Régio nos apresenta um bobo que é inegavelmente a manifestação da consciência cristã no seio da pervertida burocracia real – sobretudo admoestando o Rei de suas fraquezas e abusos[36]. Aproveitando a sugestão de quem entende do assunto, ademais ante o que já expresso textualmente por Shakespeare, é possível com bastante proveito considerar que também o Bobo de “Rei Lear” era parte da consciência de Lear, a mais sã dela, aquela que definhara “desde que a minha jovem senhora/ partiu para a França”[37] e que tanto criticava satiricamente sua cegueira perante as filhas – tudo isso, claro, misturado entre enigmas e piadas. No momento máximo da crise mental, é como se Lear, livrando-se do Bobo, buscasse se esconder no “bobo amargo” para poder virar completamente as costas à realidade.
A consciência-Bobo de Shakespeare é, em comparação à de Régio, tanto mais confusa quanto mais próxima de seu funcionamento “natural”, porque de fato nossa consciência moral está ancorada no tênue eixo de nossas experiências verdadeiras, em torno do qual giram um mundo de associações fortuitas, desejos, temores e esquecimentos; depende, portanto, de um contínuo e árduo esforço de confissão dessas verdades, muitas vezes comprometedoras, a eficiência da consciência para orientar a vida de cada qual – como diz o Bobo, “a verdade é um cachorro que se mete na casinha e precisa ser chibateado para sair”. A plena lucidez do Bobo de “Jacob e o Anjo” se justifica porque nele está retratado o próprio Cristo[38].
Assim, quando Lear abdica da realidade, das responsabilidades por seus atos, a consciência-Bobo desaparece, restando ao “bobo amargo” somente o gracejo, associado inicialmente à loucura; passado o estardalhaço, a sanidade retorna, mas o cômico estereótipo permanece, disfarçando o endurecimento de Lear em seu autoengano.
Em inglês “fool” preserva melhor o sentido de tolo, enquanto em português bobo se associa diretamente com abobalhado. Por sua vez, Eric Voegelin nos ensinou como identificar com precisão o tolo encenado por Lear:
“Esse fenômeno sempre foi reconhecido nas civilizações antigas. O tolo [fool], o nabal, em hebraico, que por causa de sua tolice, nebala, cria desordem na sociedade, é o homem que não é um crente, nos termos israelitas da revelação. O amathes, o homem irracionalmente ignorante, é para Platão o homem que simplesmente não tem a autoridade da razão ou que não pode curvar-se a ela. O stultus para Tomás é o tolo, no mesmo sentido da amathia de Platão e do nebala dos profetas israelitas. Este stultus agora sofreu a perda da realidade e age com base numa imagem defeituosa da realidade e, assim, cria a desordem.[39][…]”
Foi a impressionante consonância entre a ambiguidade semântica de bobo/“fool”e a oscilante caracterização na peça de um Lear abobalhado e de um Lear tolo que sugeriu o título deste ensaio.
Enfim, fim.
O egocentrismo de Lear revela nuances ainda mais dramáticas dessa festejada obra porque permite ver a dinâmica conflituosa da consciência moral de Lear e suas relações com o desenrolar da tragédia, muito diferente do simples rótulo da loucura ou da senilidade que o absolve antecipadamente, ou da magnanimidade Real que tudo atenua e justifica.
A exposição pública da soberba do Rei possui ainda adequação com a situação histórica retratada em “Rei Lear”, como nos ensina Johan Huizinga:
“A soberba é o pecado da era feudal e hierárquica, em que propriedade e riqueza eram pouco móveis. O poder não está incondicionalmente ligado à riqueza: o poder é mais pessoal e, para ser reconhecido, deve se manifestar em grandes demonstrações, em séquitos numerosos, em aparato. A sensação de superioridade é alimentada continuamente no pensamento feudal e hierárquico por formas vívidas: vênias e homenagens, juras de fidelidade e pompa impostada, que, juntas, dão a ver a preeminência como alguma coisa de real e justificada.
A soberba é um pecado simbólico e teológico, que está na raiz das concepções de vida e mundo. A soberba era a origem de todo o mal; a soberba de Lúcifer fora o começo e a causa de sua perdição. Assim pensara Santo Agostinho, e todos os que o sucederam: a soberba é a fonte de todos os pecados, eles brotam dela como a raiz e o tronco.”[40]
Sabe-se muito bem, hoje, que o talento inigualável de Shakespeare não estava na composição do enredo de suas peças – que quase sempre era aproveitado de histórias previamente existentes, algumas inclusive já trabalhadas teatralmente -, mas na minuciosa caracterização da linguagem dos personagens, vultosa criação de expressões, neologismos, e, principalmente, a inserção de oportunidades de introspecção no palco, cujos exemplos mais famosos são os solilóquios de Hamlet, passando seus personagens a explicitarem vivamente os conflitos que marcam a consciência humana[41]. Nesse sentido, Shakespeare aprofundou aquele desenvolvimento cultural que Bruno Snell apresenta em “A descoberta do espírito”, no qual se mostra que certo automatismo de ações e reações dos personagens típicos dos mitos gregos mais antigos – onde mesmo as reviravoltas se justificavam pelas intervenções dos deuses – cede aos poucos à tomada de consciência da liberdade humana e da consequente responsabilidade por nossas condutas.
Na linha do que aqui defendido, Lear não sofreu em vão, pelo contrário, estrelou peça com papel de relevo nessa revolução literária em que o drama da consciência moral do indivíduo passa a primeiro plano. Revolução literária com fundamento in re, porque está claro que Shakespeare denuncia, a partir do cume da cultura cristã, os subterfúgios mentais que em sua sociedade eram comumente empregados para fuga dessa confrontação interior – nada muito diferente dos que hoje ainda vemos a todo tempo. Paulatinamente, Shakespeare abandona a função catártica das encenações, que Aristóteles já indicara, e passa a exigir mais do seu público, a participação reflexiva no drama vivenciado pelo personagem – o que não prejudica, obviamente, a capacidade recreativa da obra, o grande interesse da maioria, pois tudo depende da disposição de cada espectador em se aprofundar nessa experiência, discernindo e mantendo na memória a vaidade de Lear para saber reconhecer em si as próprias faltas e autoenganos.
Nesse sentido, pois, “Rei Lear”, juntamente com outras peças[42] de Shakespeare, não mais seria uma “tragédia”, como costuma ser classificada, mas propriamente um “romance”, a narração da luta moral do indivíduo num mundo, como diria Lavelle, de obstáculos e instrumentos de realização – o gênero que, pari passu com o aprofundamento da importância da individualidade em diversas esferas, dominaria a literatura do Ocidente a partir de então.
[1] Primeira versão pública deste ensaio é de 2016.
[2]História da literatura ocidental. 3.ed. Brasília: Senado Federal, 2008, p. 812.
[3]Sobre Shakespeare. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. p. 146.
[4]O Cânone Ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 92.
[5]A Arte Sagrada de Shakespeare: o mistério do homem e da obra. São Paulo: Polar, 2004. p. 225.
[6]La filosofia oculta em la época isabelina. 2.ed.México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 267.
[7]Shakespeare: Teatro da inveja. São Paulo: É Realizações, 2010. p. 345.
[8] Se de fato há essa correspondência entre o plano das obras de Shakespeare e um sistema de teologia moral, só um grande especialista nos dois assuntos poderia demonstrar, ultrapassando infinitamente as minhas capacidades e pretensões.
[9] “Bobo: Se tu fosses o meu bobo, tio, eu te daria uma/ sova por teres ficado velho antes do tempo./Lear: Como assim?/ Bobo: Não devias ter envelhecido antes de ficares/ sábio./ Lear: Não quero ficar louco, céu bondoso!/ Mantém-me o juízo; tudo menos louco!” Ato I, Cena V; p. 680.
[10]“Por que têm maridos/ minhas irmãs, se dizem que vos amam/ sobre todas as coisas? Se algum dia/ vier a casar, há de seguir o dono/ do meu dever apenas a metade/ de meu amor, metade dos cuidados/ e das obrigações. Certeza é nunca/ vir a casar-se como as duas manas./ para amar a meu pai desse modo.” Ato I, Cena I; p. 668.
[11] Ato I, Cena I.
[12] Ato I, Cena I; p. 670.
[13] “Lear: Instituí-vos/minhas depositárias e tutoras,/ reservando-me apenas uma escolta/desse número.” Ato II, Cena IV; p. 689.
[14] Ato II, Cena IV; p. 687.
[15] Ato II, Cena IV; p. 689.
[16] Ato I, Cena II; p. 673.
[17] “Edmundo: Essa é a maravilhosa tolice do mundo:/ quando as coisas não nos corre bem – muitas/ vezes por culpa de nossos próprios excessos -/ pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua/ e nas estrelas, como se fôssemos celerados por/ necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos,/ ladrões e traidores pelo predomínio das esferas;/ bêbados, mentirosos, adúlteros, pela obediência/ forçosa a influências planetárias, sendo toda/ nossa ruindade atribuída a influência divina…/ Ótima escapatória para o homem, esse mestre/ da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua/ natureza de bode. Meu pai se juntou a minha mãe/ sob a cauda do Dragão e minha natividade se deu sob a Grande Ursa: de onde se segue que eu tenho/ de ser violento e lascivo. Pelo pé de Deus! Eu teria/ sido o que sou, ainda que a mais virginal estrela do/ firmamento houvesse piscado por ocasião de minha/ bastardização. Edgar…” Ato I, Cena II; p. 673.
[18] Ato III, Cena II; p. 691.
[19] Ato II, Cena II; p. 692.
[20] Ato III, Cena IV; p. 694.
[21] Ato IV, Cena VI; p. 708.
[22] Ato IV, Cena VI; p. 708.
[23]Hitler e os Alemães. São Paulo: É Realizações, 2008.p. 143. Foi com muita satisfação que encontrei essa contundente referência do Eric Voegelin a “Rei Lear” quando buscava no meu exemplar grifado e surrado a passagem citada mais a frente, já praticamente concluído este estudo. Muito mais do que essa referência específica, da qual não me restava lembrança alguma, a preocupação central dos estudos do Voegelin – a abertura da alma à realidade como condição fundamental do humano e as consequências de sua perda -, somada à ênfase do filósofo Olavo de Carvalho na sinceridade – efetivada por meio da “técnica da confissão”, é o fundamento da integridade da consciência individual e do conhecimento, e autoconhecimento, verdadeiro (conferir, “A Filosofia se reconhece: reflexões sobre a definição da filosofia por Olavo de Carvalho”) -, são sem dúvida as fontes diretas da interpretação geral que tentei aqui apresentar.
[24]Machado de Assis. Agripino Grieco. p. 63. 2.ed. Conquista: Rio de Janeiro, 1960.
[25] “Albânia: […] Tendes os prisioneiros que adversários/ nossos foram na luta deste dia./ De vós os requeremos, para dar-lhes/ tratamento conforme o próprio mérito/ o exigir e, assim, nossa segurança.” Ato V, Cena III; p. 714. “Albânia: Não vos desagrade, senhor, mas nesta guerra considero-vos súdito, não irmão.” Ato V, Cena III, p. 715.
[26] Ato V, Cena I; p. 712.
[27] Ato V, Cena III; p. 714.
[28] “Edmundo: A vida já me foge, mas quisera fazer ainda algum bem, embora contra minha própria feição. Mandai depressa, bem depressa, ao castelo. Meu escrito ameaça a vida de Cordélia e Lear. Não percais tempo.” Ato V, Cena III; p. 718.
[29]É o diagnóstico de Edmundo: “Um pai simplório e um mano em tudo nobre/ que, pela própria condição, tão longe/ se acha de qualquer mal, que nem suspeitas/ sobre isso pode ter e em cuja tola/ probidade montar vai facilmente/ minha velhacaria. A coisa é clara;/ terras vou ter, ganhando-as com finura;/ falhando o berço, o espírito as segura.” Ato I, Cena II; p. 674.
[30] Ato III, Cena II; p. 699.
[31] Ato IV, Cena I; p. 700.
[32] Segui a tradução de Américo Pereira, que não faz muito estava disponível no site www.lusosofia.net.
[33] Ato V, Cena III; p. 717.
[34] Ato III, Cena VI; p. 697.
[35] Ato II, Cena IV; p. 685.
[36] Irresistível ao menos uma breve citação: “Bobo (devagar, imóvel, num tom cuja calma contrasta com a intensidade de algumas expressões): Num momento se pode transpor imensas distâncias, Rei, quando esse momento vem preparado… Também eu te garanto que também tu não tens muito tempo diante de ti. Mas numa hora, num minuto, num segundo, podes andar mais que em toda a vida. Até esse instante, a minha obra está no começo: Tudo pode ser deitado a perder… O teu sofrimento é de barro… não presta! O que em ti sofre é o teu orgulho, a tua vaidade, a tua dignidade, a tua futilidade, a tua humanidade mesquinha. O que te dilacera é a opinião do mundo. Respeitas a sua vileza e temes os seus juízos. Os apelos que ainda ouves são os do teu sacerdote prostituído ao poder da Terra; os do general que te entregou; os do teu juiz conivente cora os crimes rendosos; os do teu poeta babado em sons ocos. Ora isto quando a Glória te chama, rei dos cegos! Como queres que eu esteja satisfeito?” Obra Completa: Teatro I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. pp. 175-76.
[37] Ato I, Cena IV; p. 675.
[38]“Bobo – Bem sabes que a tua vida sou eu, rei dos cegos!” Obra Completa: Teatro I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 196.
[39]Hitler e os Alemães. São Paulo: É Realizações, 2008.p. 121
[40]O Outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Editora Cosacnaify. p 38.
[41] “A sensação de interiorização que Shakespeare cria nos permite ouvir um personagem tão inteligente quanto Hamlet lutar contra seus pensamentos, e é algo que nenhum dramaturgo jamais conseguira até então. Ele escrevera solilóquios desde o começo de sua carreira, mas, por mais poderosos que fossem, não chegavam perto da intensa percepção de si mesmo que encontramos nos de Hamlet.” (p. 329). Por essas e muitas outras lições merece toda atenção o sensacional estudo de James Shapiro. 1599: Um ano na vida de William Shakespeare. Editora Planeta do Brasil: São Paulo, 2010. O período de transição cultural em que se insere a inovação shakespeariana é ressaltado por Otto Maria Carpeaux: “As modificações são tão profundas quanto intensas: concentração da técnica dramatúrgica em torno de assuntos da violência mais crassa, escurecimento da atmosfera, pessimismo cínico, abalo dos standards morais. O mundo de Marlowe e Chapman e das comédias renascentistas de Shakespeare já está longe. Mas o próprio Shakespeare pertence, pela segunda metade de sua carreira literária, ao teatro jacobeu: Macbethe Antony and Cleopatra, Measure for Measure e Timon, são peças das mais poderosas do novo estilo; as últimas comédias fantásticas de Shakespeare nasceram mesmo sob a influência dos dramaturgos jacobeus Beaumont e Fletcher. O que antigamente se considerava como mudança psicológica no indivíduo Shakespeare é na verdade um dos sintomas da modificação radical do teatro inglês, em transição para a época jacobeia. Alegou-se a impressão penosa do caso de Essex em 1601. Em vez do fato político prefere-se agora salientar o fato social: de 1600 é a primeira “Poor Law”, medida brutal contra o chômage, consequência da inflação e outros distúrbios econômicos. A estrutura social da Inglaterra elisabetana, a comunidade nacional da “Merry Old England”, abala-se. O teatro jacobeu é um fenômeno de dissociação: de separação entre política e povo, espírito aristocrático e espírito popular, cuja unidade constituíra o espírito elisabetano. A separação não é completa: isto acontecerá somente mais tarde, na época da revolução puritana contra a monarquia aristocrática do Stuarts. Por enquanto, continua uma síntese precária, convivência de aristocratismo e grosseria, romantismo e obscenidade, dentro das mesmas obras, dos mesmos autores: uma antítese típica do Barroco.” História da literatura ocidental. Vol. II. p. 826.
[42] De forma magistral, René Girard mostra como “A Tempestade” é a declaração pública de Shakespeare sobre o esgotamento das formas clássicas da “tragédia”, incompatíveis com o nível de discernimento e moralidade exigidos por uma cultura cristã. Conferir o último capítulo da já referida obra Shakespeare: Teatro da inveja.
Um comentário:
Arte.
Literatura.
Autenticidade.
Saúde & educação. Geral. E irrestrita.
O Brasil precisa urgente voltar a qualidade de sua vida diária boa. Educação nas Escolas. Ter músicas realmente boas no dia a dia. E bons hospitais. O Brasil precisa urgente voltar a qualidade de sua música. PT venera a Indústria Cultural. Melhor para dominar. Literatura e alta cultura é de que o Brasil necessita a tempo nas nossas escolas e na educação das curuminhas. E de música boa. Esteticamente boa. A frente de tudo a qualidade de 1ª. Estética.
O Jogo de Cartas da Educação Infantil: Seria o bom gosto nas escolas. Tal qual Tarkovsky. Ou como o cinema antigo (de qualidade brasileiro).
Eis: 1º lugar educação dos mais jovens, para se ter solidez no futuro próximo. Necessitamos muito de bons hospitais. E escolas boas para os curumins. Precisamos de alta-cultura. Alta literatura; Kafka, Drummond, Dostoievski, Machado de Assis, Aluísio Azevedo do Maranhão. De arte autônoma. E educação verdadeira nas escolas dos pequenos. O que não houve. O Brasil vive consequência de nosso passado político bem atual (2 décadas). Fome, falta de moraria, atraso, breguices, escolas ruins, falta de hospitais: concreto… O resto são frasinhas® poderosas: Eis aí a pura e profunda realidade sociológica e filosófica: A “Copa das Copas®” do PT® em vez de se construir hospitais, construiu-se prédios inúteis! A Copa das Copas®, do PT© e de lula©. Nada se fez em 13 anos para esse mal brasileiro horroroso. Apenas propagandas e propagandas e publicidade. Frasinhas. Qual o poder constante da propaganda ininterrupta do PT®?
Apenas um frio slogan, o LUGAR DE FALA do Petismo® (tal qual “Danoninho© Vale por Um Bifinho”/Ou: “Skol®: a Cerveja que desce Redondo”/Ainda: “Fiat® Touro: Brutalmente Lindo”). Apenas signos dessubstancializados. Sem corporeidade. Aqui a superficialidade do PETISMO®: Signos descorporificados. Sem substância. Não tem nada a ver com um projeto de Nação. Propaganda pura. O PT é truculento PT = desonra. Ignomínia. Indigno. Poluição. Realidade crua.
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