‘Os EUA gostam de culpar outros países por seus problemas’, diz especialista americano sobre disputa com China
Kevin Gallagher, que participa nesta segunda de debate na UFRJ, diz que seu país precisa aumentar investimento interno em vez de tentar impedir ascensão chinesa e aponta como a rivalidade entre as duas potências pode prejudicar o Brasil
André Duchiade
O Globo, 07/06/2021 - 04:30
Diretor do Centro de Políticas de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston, Kevin Gallagher ocupa uma posição cada vez mais rara: americano com especialização na China, ao mesmo tempo em que é um defensor do sistema multilateral e das instituições democráticas, também se mantém crítico da postura de seu país em relação a Pequim. Com experiência em desenvolvimento econômico, política comercial, política ambiental internacional e América Latina, ele considera o comportamento agressivo americano como arriscado do ponto de vista da economia global. Aproveitando a sua participação nesta segunda, às 10h, em um painel ao lado de André Lara Resende e Mariana Mazzucato, dentro da conferência Amanhãs Desejáveis, organizada pela UFRJ, Gallagher conversou com o GLOBO sobre os riscos que a rivalidade entre os países podem acarretar, inclusive para o Brasil.
Em vistas das mobilizações nacionais contra a pandemia, a crise provocada pela Covid-19 também é, em larga medida, uma crise relacionada à dívida. Como o senhor avalia a resposta global para alívio das dívidas até agora?
Se você for um dos países mais pobres do mundo, não é tão ruim. Por outro lado, os países de renda média foram abandonados pelo sistema global. O esquema do G-20 para a iniciativa de suspensão do serviço da dívida exclui todos os países de renda média, e a maior parte da dívida está nestes países. Se você está no Brasil, na Colômbia ou na África do Sul, a única coisa que pode fazer é recorrer ao FMI. E não preciso dizer a ninguém do Brasil como isso não é lá muito bom, para dizer o mínimo.
Quais podem ser as consequências desse abandono?
Não quero dizer nada de ruim sobre os países pobres. Mas, quando os países de renda média têm crises, há maior chance de elas se tornarem sistêmicas. Há algumas décadas, quando o Brasil teve uma crise, ela foi para a Argentina. Depois pode se espalhar para a Rússia, e se mover pelo mundo. Enquanto, com todo o respeito ao Haiti, mas, se houver uma crise financeira lá, ela não sairá do país. E eu acho que o sistema multilateral abandonou os países de renda média. Em parte, por causa da rivalidade entre EUA e China — porque, obviamente, seria necessário conceder alguns benefícios e criar algumas políticas que favoreceriam a China, e há um eleitorado que não quer isso.
Apesar da competição entre Washington e Pequim, Biden com frequência afirma que os EUA estão prontos para cooperar com a China, sobretudo contra a mudança climática. Como avalia essa cooperação até agora?
Em relação ao governo Trump, foi uma mudança significativa. Com Trump, qualquer coisa que a China fizesse era terrível, enquanto o governo Biden percebe que há algumas coisas nas quais as duas maiores economias do mundo precisam cooperar. No entanto, o Gabinete de Biden tem muitas cabeças, e há uma batalha interna. Só alguns setores do governo entendem que áreas como crises financeiras, comércio, mudança climática, e a pandemia exigem que trabalhem juntos. E é muito cedo para fazer uma avaliação definitiva. De concreto, não há nada que possa apontar, exceto para uma espécie de grupo de trabalho sobre as mudanças climáticas que será montado. Espero que seja um sinal de cooperação.
Em quem o senhor pensa quando diz que há setores dispostos a cooperar? O primeiro encontro entre os chefes das diplomacias foi um desastre marcado por trocas de insultos.
Sim, a cúpula do Alasca foi embaraçosa, em função do excesso de arrogância da parte dos americanos. Você não pode simplesmente abandonar o sistema multilateral por quatro anos e depois voltar e pensar que pode simplesmente dizer a outros países o que fazer. Penso em John Kerry, o enviado especial para mudança climática. O Departamento de Estado está menos comprometido [com a cooperação]. O grande problema a ser observado é como o escritório do representante de Comércio dos Estados Unidos vai reagir. Ainda não houve novas medidas, há um momento de paz no conflito comercial EUA-China. Mas também não houve nenhuma resolução. E isso afeta um país como o Brasil de maneira direta e imediata.
Como?
As exportações brasileiras para a China, como aço e minério de ferro, viram produtos que são vendidos para os EUA. Portanto, nesse nível, se a guerra comercial não diminuir, isso pode ter um impacto negativo sobre o Brasil. Mas, por outro lado, o Brasil se beneficiou um pouco porque os Estados Unidos já foram o maior exportador de soja para a China, e o Brasil conseguiu pegar um pouco delas para si. Mas esses são os impactos diretos. Quando os Estados Unidos e a China estão em um grande conflito comercial na comunidade de investimento global, todos ficam nervosos, e isso realmente perturba os mercados financeiros, o que pode levar à fuga de capitais. Fora isso, há esse projeto de lei do senador Bob Menendez, apelidado de “a Lei da Guerra Fria”. Com ele, um aumento de capital para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) só seria aprovado se os países começassem a considerar a redução de seus financiamentos da China
Quais seriam os efeitos de tal medida?
De acordo com estimativas de meu centro, nas últimas duas décadas, os bancos de desenvolvimento chineses forneceram mais financiamento para os países latino-americanos, especialmente o Brasil, do que o BID. Ou seja, poderia acarretar em uma perda líquida nos fluxos financeiros.
Como especialista em China americano, como o senhor vê este conflito?
Eu não minimizo algumas das coisas que a China tem feito. Penso que Xi Jinping consolidou seu regime de maneira autoritária, e não apoio o que tem sido feito em Hong Kong ou contra os uigures. Mas não é esta a razão pela qual há tanta desigualdade e populismo nos Estados Unidos. Isto acontece porque os Estados Unidos não têm investido em seu próprio povo. E os Estados Unidos sempre gostam de culpar outros países por seus problemas. Não deveria ser nenhuma surpresa se a China tem investido 40% do PIB em sua economia por 40 anos, enquanto os Estados Unidos não o fazem, que o país que investe se saia melhor. Não se pode culpar a China por os Estados Unidos não terem investido em si. Agora temos uma competição, e ela se dá da pior maneira. Em vez de tentarmos nos tornar competitivos, buscamos bloquear a China do resto do mundo. Isso é perigoso para a economia global.
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