O Meteoro e a renovação da política externa
Marcos Magalhães
Quem circula de carro com os olhos atentos pelo Eixo Monumental, a caminho da Praça dos Três Poderes, percebe duas joias arquitetônicas pelo caminho: a Catedral de Brasília, sinônimo de inovação na construção de templos religiosos, e o Palácio do Itamaraty, o mais elegante da quase homogênea Esplanada dos Ministérios.
O palácio, cenário inevitável de fotos de turistas que visitam a capital federal, é cercado por um espelho d’água, onde em 1967 pousou a escultura Meteoro, do escultor Bruno Giorgi. Os cinco blocos de mármore de Carrara que a compõem são referências aos cinco continentes.
Nas palavras oficiais de nota emitida pelo Ministério das Relações Exteriores, a conexão entre os cinco blocos de mármore da obra de Giorgi recorda a “missão principal da diplomacia de negociar e interagir com todos os povos”.
Pois a escultura, como informa a nota, será restaurada pela primeira vez desde que se integrou de forma harmoniosa às linhas de Oscar Niemeyer. Os trabalhos de restauração, que serão acompanhados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), serão concluídos em 10 meses.
Ou seja, os blocos brancos de Giorgi estarão como novos no início do segundo semestre de 2022, quando a campanha eleitoral já estará em velocidade de cruzeiro. A tempo do início dos inevitáveis debates – quase inéditos em campanhas eleitorais – sobre outra restauração inadiável: a de uma política externa sensata e equilibrada.
Candidatos à Presidência da República provavelmente serão cobrados a explicar como pretendem conduzir as relações exteriores do Brasil. Ou como planejam se reconectar com países distribuídos pelos cinco continentes. A harmonia dos traços de Giorgi poderá servir como inspiração para o longo trabalho.
Ruídos
Desde que Jair Bolsonaro tomou posse, em 2019, multiplicaram-se os ruídos nas relações com diversos países do mundo. Havia duas exceções: Estados Unidos e Israel, cujas bandeiras faziam parte dos adereços obrigatórios dos desfiles de manifestantes de extrema direita pelas largas avenidas de Brasília.
Bolsonaro havia apostado em uma relação preferencial com o presidente Donald Trump. O que era bom para os Estados Unidos, parecia indicar o presidente recém-eleito, era mais uma vez bom também para o Brasil.
Ele esteve ao lado de Trump até o fim. Chegou ao ponto de prever que as cenas de invasão do Capitólio, por republicanos inconformados com a derrota do líder, poderiam vir a se repetir em Brasília, dois anos mais tarde, caso ele mesmo não viesse a ser reeleito.
Se esta era a principal aposta da diplomacia bolsonarista, o prejuízo veio rápido. Após a vitória do democrata Joe Biden, Bolsonaro perdeu seu mais importante aliado.
As relações com os Estados Unidos esfriaram. E o presidente brasileiro não perdeu a oportunidade de tornar as coisas ainda mais difíceis, ao repetir a incrédulos representantes do novo governo americano acusações de fraudes nas eleições dos Estados Unidos.
Bolsonaro queixou-se, ainda, de que a nova administração em Washington – “mais à esquerda”, em sua geometria – teria uma “quase obsessão” pelo tema do meio ambiente, o que viria a atrapalhar “um pouquinho” o Brasil. Os próximos debates sobre a mudança climática vão dimensionar o tamanho do abismo entre os dois governos a respeito do tema.
Ainda observando as Américas, como em uma análise de danos do primeiro bloco de concreto de Giorgi, houve significativos prejuízos nos últimos anos nas relações com a Argentina, principal sócio brasileiro no Mercosul. O diálogo entre Brasília e Buenos Aires ainda segue truncado.
Assim como no caso dos Estados Unidos, Bolsonaro apostou em um lado nas últimas eleições presidenciais da Argentina. E perdeu. Contrariado, ele viu na vitória de Alberto Fernández um retorno da esquerda ao poder. Talvez tenha lembrado do antigo Efeito Orloff: “eu sou você amanhã”.
A África, por sua vez, passou longe das prioridades da nova administração brasileira. O continente, que recebeu com entusiasmo diversas iniciativas de aproximação promovidas desde o regime militar até o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, saiu do foco.
A mais importante missão do atual governo ao continente africano, chefiada pelo vice-presidente Hamilton Mourão, foi para defender os interesses da Igreja Universal do Reino de Deus em Angola, onde religiosos brasileiros haviam sido acusados de racismo, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
O ex-prefeito Marcelo Crivella, bispo licenciado da mesma organização, chegou a ser indicado em julho por Bolsonaro para o cargo de embaixador brasileiro na África do Sul. Mas o governo sul-africano até hoje não se pronunciou sobre a sua indicação.
A diplomacia de Bolsonaro também é vista com reservas pelos dois principais países da União Europeia, França e Alemanha. O acordo de associação da EU com o Mercosul foi congelado por causa de restrições europeias à política ambiental do novo governo brasileiro.
O futuro governo alemão, que deve ter presença importante dos Verdes, imporá ainda mais restrições às negociações com o Brasil. Na França, da mesma forma, o meio ambiente estará entre os temas principais das eleições presidenciais do ano que vem.
Tecnologia
Na Ásia, a tecnologia esteve no centro do mais recente desentendimento do governo Bolsonaro com a China, maior parceira comercial do Brasil. Para agradar a Trump, Bolsonaro havia anunciado restrições à presença de empresas chinesas na implantação em solo brasileiro da quinta geração de telefonia celular.
As regras do leilão, ao final das contas, não impediram diretamente a presença dessas empresas nos investimentos que serão feitos no Brasil. Mas as dúvidas persistem. E elas podem estar por trás de recentes suspensões, por Pequim, de compras de carnes brasileiras.
O quinto continente, a Oceania, nunca esteve entre as maiores prioridades da política externa brasileira. Mas dali surgiu há poucas semanas uma notícia que demonstra como o Brasil nunca esteve entre os principais aliados de Washington, como parecia buscar Bolsonaro ao se aproximar de Donald Trump.
Para se contrapor à crescente presença naval chinesa no Indo-Pacífico, o governo americano – que nunca demonstrou simpatia pelo programa nuclear da Marinha brasileira – anunciou acordo de criação de aliança com o Reino Unido e a Austrália, a Aukus, que permitirá a aquisição de submarinos nucleares pela Marinha australiana.
Os submarinos nucleares brasileiros, ainda que menores como sempre lembram os críticos norte-americanos, poderão até ser lançados ao mar antes dos australianos. Mas terão sido desenvolvidos ao longo de três décadas por cientistas brasileiros.
Ainda falta bastante tempo para isto. No futuro próximo, a partir de 2023, o Brasil precisará reconstruir pontes com outros governos espalhados pelos cinco continentes. Será um trabalho tão ou mais meticuloso que o dos especialistas encarregados de dar ao Meteoro o brilho de tempos passados à frente do Itamaraty.
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