Norma Couri: “Não há governos eternos com alergia a jornalistas”
- Edição 1079
- por Mauro Malin
- 17 de março de 2020
“Fica claro que os impressos, incluindo livros, são um sustentáculo do Estado democrático pela assimilação mais profunda e por conter muito menos erros do que as matérias virtuais despejadas nas redes por motivações muitas vezes pessoais”, diz em entrevista Norma Couri. “Não é à toa que a fúria do governo autoritário se insurja contra os jornais e revistas”, argumenta.
Quanto à crítica da mídia, Norma diz que jornalistas “precisam se acostumar a ser olhados de fora, julgados enquanto julgam ou investigam. Só vejo benefícios para profissionais e leitores”.
Ela afirma que a ditadura deu à sua geração “aquela experiência que só se adquire na guerra. Não há dúvida de que somos uma geração mais culta e solidária. As novas gerações carecem de um dom que nos foi imposto: saber escrever. E para isso, ler”.
Não se trata de desencorajar os que chegam agora à profissão.
Ela recomenda aos recém-chegados “curiosidade, garra, interesse por todo e qualquer assunto, leituras que vão de Shakespeare aos almanaques, conhecer as entranhas da profissão, ter faro para notícia, e, fundamental, ter emprego para colocar tudo isso em prática. Se não tiver, trabalhar assim mesmo”.
Lamenta que tenha deixado de existir a diversidade etária nas redações, mas lança uma palavra de esperança: “não há governos eternos com alergia a jornalistas nem escuridão que dure para sempre”.
Norma Couri tem 48 anos ininterruptos de profissão. É formada em Jornalismo pela PUC-RJ, com mestrado em Jornalismo na Columbia University de Nova York e doutorado em História Social na USP. Trabalhou no Jornal do Brasil, na Veja, na Folha de S.Paulo, no Estadão, na Época e no Observatório da Imprensa até hoje. Foi correspondente do Jornal do Brasil, baseada em Lisboa, com coberturas pela Europa, África e Ásia por dez anos e correspondente, no Brasil, da revista Visão, de Portugal. Atualmente, trabalha em projeto de pós-doutorado em Jornalismo.
A seguir, a entrevista.
Que importância têm para você jornais e revistas?
Acho indispensável a leitura de jornais e revistas impressos, que trazem análises, permitem reflexões, tomadas de posição e nos dão o tempo necessário para deglutir, arquivar. Assinei algum tempo o Jornal do Brasil virtual, mas, com a rapidez e eficiência das redes, a leitura é sempre mais rápida e menos concentrada. Em contraste com as redes sociais, que inevitavelmente nos invadem e nos tomam mais tempo do que deveriam, tenho a certeza de que a assimilação é diferente; nas telinhas, as informações são multiplicadas, mais superficiais e atropeladas pela quantidade oferecida.
Fica claro que os impressos, incluindo livros, são um sustentáculo do Estado democrático pela assimilação mais profunda e por conter muito menos erros do que as matérias virtuais despejadas nas redes por motivações muitas vezes pessoais. A internet é o paraíso dos mitômanos. Os jornais e revistas impressos mantêm uma hierarquia nas redações, a matéria passa por vários crivos antes de ser publicada. Não é à toa que a fúria do governo autoritário se insurge contra os jornais e revistas. Mantenho as assinaturas que eu e [Alberto] Dines sempre tivemos, dos quatro jornais e duas revistas de informação brasileiros, além do The New York Review of Books, o Magazine Littéraire e a revista The Economist. O excelente El País, agora, só na internet.
É uma conquista ter a imprensa inteira nas mãos, numa telinha que viaja conosco e está ali para informação minuto a minuto. Um plus. Aliás, um alerta para os jornais que querem permanecer como referência investindo em boa reportagem, profissionais experientes e apuro de informação. Só assim não se deixarão engolir pela máquina virtual. O resto é escolher bem o site e ficar feliz quando abrir um blog ou site como um The Intercept, um Observatório da Imprensa, 360, alguns bons de crítica de filmes, este Olha Só, para citar alguns.
Qual é o papel da crítica da mídia?
A crítica é o espelho. Indispensável num ambiente democrático. Jornalistas precisam se acostumar a serem olhados de fora, julgados enquanto julgam ou investigam. Só vejo benefícios para profissionais e leitores.
Fale-nos do legado de Alberto Dines.
Alberto Dines foi o primeiro ombudsman brasileiro com a coluna Jornal dos Jornais, na Folha de S.Paulo, entre 1975 e 1977, não por acaso censurada na ditadura. Criou o Observatório da Imprensa online e na TV, que só alimentou o público com “o outro lado dos assuntos da semana” e tinha o objetivo de fazer pensar; o slogan é “você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”.
Uma profissão vivida intensamente durante 65 anos não pode ir para o brejo. O Instituto Alberto Dines pretende manter seu legado, aberto a estudantes, estimulando o jornalismo investigativo com prêmios que andam escassos e promovendo uma cátedra para disseminar as áreas mais focadas por ele, jornalismo em todas as áreas, democracia, fascismo, nazismo, humor, biografias, censura, artes gráficas e plásticas, fotografia.
Que perspectiva se estende diante dos grandes jornais, hoje, a braços com um modelo de negócios que foi atropelado pelo advento da esfera digital?
O The New York Times não fechou as portas, se reergueu com a versão digital mantendo na redação jornalistas premiados, alargando a cobertura, criticando especialmente o presidente Trump, que, a exemplo do Nixon durante a publicação dos papéis do Pentágono, proibiu a entrada de seus repórteres na Casa Branca.
O mesmo acontece aqui com a Folha de S.Paulo em relação ao Planalto, sinal de que os coleguinhas estão cumprindo bem o seu script. O jornal digital tem essa grande vantagem, dar sobrevida ao papel num momento de agonia. Tem investidores mundo afora, como Warren Buffet, especializado em comprar jornais falidos para relançá-los, para não deixar que morram, como aconteceu com o Jornal do Brasil. A imprensa é o pilar da democracia, não importa o suporte.
O que os novos jornalistas devem fazer para elevar os padrões de qualidade do material que produzem?
A ditadura nos deu aquela experiência que só se adquire na guerra. Não há dúvida de que somos uma geração mais culta e solidária. As novas gerações carecem de um dom que nos foi imposto: saber escrever. E para isso, ler.
Os novos jornalistas têm a ousadia necessária, mas, em geral, falta estofo. Ouço barbaridades nas rádios, leio absurdos nos textos, vejo atrocidades na TV. Eles foram pior educados nas escolas e faculdades, pegaram carona num ambiente social mais pobre, para dar certo têm de nadar de braçada nos assuntos espinhosos – são poucos os que conseguem alcançar a praia. Corro o risco de ser antiga neste quesito mas já fiz um questionário rápido e os bons leitores só param para ler com calma as matérias escritas por profissionais experientes e as que são bem arquitetadas, apuradas. No resto, sempre se dá uma passada de olhos, mas esse tipo de profissional se dá melhor nas redes com miniflashes de notícias e de ideias. Fomos a última geração sem celular ou internet. Cá pra nós, teve suas vantagens.
O que você recomenda aos recém-chegados?
Curiosidade, garra, interesse por todo e qualquer assunto, leituras que vão de Shakespeare aos almanaques, conhecer as entranhas da profissão, ter faro para notícia e, fundamental, ter emprego para colocar tudo isso em prática. Se não tiver, trabalhar assim mesmo. Uma pena que não aconteça a diversidade etária de outros tempos nas redações. Ter com quem aprender. Isso aceleraria o crescimento profissional, como acontecia com gerações anteriores. Mas não há governos eternos com alergia a jornalistas nem escuridão que dure para sempre.
Publicado originalmente no Facebook.
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Mauro Malin é jornalista.
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