quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O Sul Global existe? Joseph Nye e Paulo Roberto de Almeida

Hoje deparei-me no Project Syndicate com um artigo muito confuso do famoso cientista político Joseph Nye sobre o assim chamado Sul Global. Ele acha que esse Sul Global não tem muita consistência. Seu artigo pode ser encontrado aqui. 

Transcrevo in fine alguns trechos desse artigo, muito decepcionante para um reputado acadêmico.

Eu havia recém publicado um artigo sobre o mesmo tema, que transcrevo abaixo.

O Sul Global não existe

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Artigo sobre um conceito criado por ideólogos que não apresenta consistência suficiente para ser chamado de grupo político.

Revista Crusoé, (n. 287, 27/10/2023, link: https://crusoe.uol.com.br/Colunistas/o-sul-global-nao-existe). Relação de Publicados n. 1530.

 

Ideias contam, afirmam os historiadores, o que parece ser confirmado pela própria história. Certas declarações de líderes políticos ou militares de peso, ao lado de interpretações de filósofos influentes, acabam ganhando foros de atores e fatores decisivos em determinados processos históricos e passam a ser consideradas como tendo o poder de determinar o curso da história e, assim, de mudar a sua própria trajetória.

Pensem, por exemplo, no conceito de “luta de classes”, um corriqueiro lugar comum dos historiadores franceses no seguimento imediato da grande revolução de 1789, mas que acabou virando o eixo central de todo e qualquer processo histórico depois que dois jovens ideólogos alemães converteram essa interpretação derivada dos três grandes estamentos do Antigo Regime em fator crucial de toda e qualquer mudança politica e social: “proprietários e escravos”, “senhores feudais e servos de gleba”, “burgueses e proletários”, todas essas “lutas” seriam o verdadeiro “motor da história”. Era uma abordagem simplista, mas que teve um extraordinário sucesso nos 150 anos seguintes. Considerem, igualmente, o conceito de “complexo de Édipo”, que Freud generalizou a partir da literatura grega clássica e que passou a ser um dos eixos centrais das interpretações psicanalíticas desde então. 

Marx e Freud foram dois grandes pensadores contemporâneos que marcaram de forma indelével o século XX, e isso não tanto por algum poder político concreto de que dispusessem, mas pela simples força de suas ideias, que impregnaram as mentes e as ações de milhares de outros personagens dotados de influência social.

Nem todos os conceitos inventados e disseminados ao longo do tempo possuem, porém, esse poder de sintetizar toda uma corrente de pensamento e o de mobilizar partidos, movimentos e sociedades inteiras numa determinada direção do processo histórico. Mais do que o freudismo, no mundo psicanalítico, o comunismo de base marxista foi, de fato, um grande “motor da história” no século passado, podendo ser considerado como parcialmente responsável pelos movimentos fascistas que surgiram no seguimento do “primeiro Estado proletário” que se instalou com o putsch bolchevique de 1917. Pode-se dizer que ele conquistou “corações e mentes” muito além do alcance do Exército Vermelho, seduzindo grandes intelectuais no próprio coração das democracias de mercados capitalistas.

A maior parte dos conceitos predominantes em certas épocas não possuem, todavia, tal influência decisiva sobre o curso da história. A maior parte costuma ter trajetórias mais prosaicas, e apenas por determinados períodos, sendo geralmente o produto de reflexões acadêmicas que passam a ser utilizadas nos meios políticos. Esse parece ser o caso do tal de “Sul Global”, conceito que se converteu numa espécie de mantra naquele ambiente mais retórico do que prático. No entanto, tendo sido usado e abusado repetidamente por líderes desse “Sul” indefinido, ele passou a ser referido até por acadêmicos e líderes políticos de um “Norte” também indefinido. Tendo ultrapassado a barreira das alucinações coletivas, o conceito é tido como refletindo uma realidade política, ou até geopolítica, concreta. 

Nada mais enganoso, no entanto. Assim como o século XX, ou pelo menos a sua segunda metade, foi marcado pela divisão, e até pelo confronto, Leste-Oeste, este início de século XXI parece querer dar um status de grande dimensão histórica ao diáfano conceito de “Sul Global”. A proposta é equivocada em todas as suas dimensões. Senão vejamos.

O mundo sempre foi assimétrico, com populações paupérrimas e grandes impérios poderosos, divididos geograficamente, mas que nunca se excluíram mutuamente: opressão colonial, exploração de recursos e do trabalho humano de comunidades dominadas por sociedades militarmente dominantes, progressos tecnológicos de um lado, atraso persiste de outro, marcaram a história de toda a humanidade, como demonstrado pelas pesquisas de um naturalista conhecido como Jared Diamond, cobrindo mais de 50 mil anos de história humana (ver, por exemplo, o seu “Armas, Germes e Aço”). A transmissão de conhecimentos, de novas espécies de vegetais alimentícios e de animais domesticados se deu, geralmente, no sentido Leste-Oeste, avançando nos meridianos do hemisfério setentrional.

Considere-se, também, uma história “mais curta” de apenas 5 mil anos, enfeixada no livro de David Landes, de título claramente inspirado em Adam Smith: “A Riqueza e a Pobreza das Nações: por que algumas são tão ricas e outras tão pobres?”. Em lugar de uma história “ecológica”, como em Diamond, temos aqui uma história cultural ou institucional.

Riqueza e pobreza estão igualmente disseminadas em todo o planeta, mas fatores ecológicos, ambientais ou de propagação de inovações tecnológicas ao longo do hemisfério setentrional fizeram com que sociedades mais avançadas se concentrassem acima da faixa tropical, bem mais unificada topograficamente (vejam a Eurásia) do que a dispersão de continentes e de ambientes na parte meridional do planeta. E um fato, não uma fatalidade.

Um Norte dominante e dominador, de um lado, e um Sul dominado e explorado, do outro, nada mais fazem do que refletir realidades concretas das geografias multimilenares ou trajetórias históricas diferenciadas, analisadas por Diamond e Landes, em suas respectivas dimensões de produtividades desiguais derivadas dos recursos naturais ou da qualidade do capital humano. Um “Sul” mais pobre, ou vearias regiões periféricas, geralmente meridionais, sempre existiram, em função de disparidades fundamentais, que determinaram, muito mais do que o equívoco metodológico da “luta de classes”, o verdadeiro motor da história humana. A história sempre foi feita de assimetrias, dentro dos países e entre eles.

Não foi a “exploração” do “Sul” que tornou o “Norte” rico, tanto porque para dominar e explorar é preciso antes ser mais avançado materialmente, militarmente. Nem sempre foi assim, pois do contrário nômades mongóis não poderiam ter conquistado e dominado durante alguns séculos uma China bem mais avançada tecnologicamente e culturalmente. 

O diferencial de produtividade humana – determinado em grande medida pela cultura letrada– é o que determinou, desde alguns séculos, a divisão entre um “Norte” e um “Sul”, e que ainda persiste, mas de forma totalmente fragmentada em ambos os hemisférios. Aliás, o outrora poderoso Celeste Império, em declínio durante mais de dois séculos, pode ser realmente considerado como fazendo parte, hoje, desse “Sul Global” imaginado?

Esse conceito, tomado de forma unificada para somente um dos lados, é um completo equívoco acadêmico, político e geográfico, o que não o impede de ser utilizado de forma oportunista por políticos populistas. Mas, de forma alguma, a diversidade de nações nele incluídas e a multiplicidade de interesses nacionais agregados aleatoriamente nos Estados hoje componentes podem ser considerados a expressão de um grupo coeso em suas vontades e disponível para uma ação conjunta em face de um Norte hegemônico e dominador. 

Existe alguma possibilidade de que a Rússia neoczarista da atualidade ou de que a China novamente imperial, e com pretensões hegemônicas, possam ser os aliados de um inexistente “Sul Global” na luta pela construção de uma “nova ordem global” que não mais seria dominada pelo “Norte” do atual Ocidente dominador? A hipótese é inverossímil. Aliás, considerar que o Brics possa representar o tal de Sul Global é mais inverossímil ainda.

Para os saudosistas de um antigo terceiro-mundismo político retardatário, o tal de “Sul Global” já não é mais um simples expediente acadêmico equivocado, e sim uma entidade homogênea capaz de ajudá-los em suas pretensões oportunistas de liderar um suposto “bloco” unificado, mas que é tão diáfano quanto inexistente, para todos os efeitos práticos.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4449, 12 outubro 2023; revisão: 24/10/2023.

Artigo para a revista Crusoé, publicado sob o mesmo título (n. 287, 27/10/2023, link: https://crusoe.uol.com.br/Colunistas/o-sul-global-nao-existe); divulgado parcialmente no blog Diplomatizzando(30/10/2023; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/10/o-sul-global-nao-existe-paulo-roberto.html). Relação de Publicados n. 1530.

 



What Is the Global South

Project Syndicate, Nov 1, 2023

In the absence of an alternative shorthand, politicians and journalists most likely will continue to use “Global South” for the foreseeable future. Yet anyone interested in a more accurate description of the world should be wary of such a misleading and increasingly loaded term.


Ler a íntegra aqui.

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