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Sandra Utsumi: 'O Brasil ainda está longe do crescimento sustentado'
Diretora executiva do Haitong Bank em Portugal, Sandra Utsumi afirma que, depois do salto de 3% do PIB neste ano, o país deverá avançar entre 1,5% e 2% em 2024, resultado muito aquém do necessário para atender as demandas da população.
- Por Vicente Nunes — CorrespondenteCorreio Braziliense, 18/12/2023 04:00
Para a economista, muito do quadro positivo que se vê hoje no Brasil é resultado do trabalho feito pelo Banco Central, que manteve uma política monetária restritiva a ponto de levar a inflação para dentro das metas definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). A estabilidade dos preços, no entender dela, é fundamental para que os agentes econômicos, empresas e população, se sintam confortáveis para investir e consumir. Ela vê com preocupação a situação fiscal no país, mas acredita que a continuidade da redução da taxa básica de juros (Selic), que já caiu de 13,75% para 11,75% ao ano, dará um alívio nos gastos com a dívida, ajudando, consequentemente, no cumprimento das metas.
Na avaliação de Sandra, o mundo vive hoje uma situação complexa, com guerras e disputas geopolíticas que acabam desviando a atenção do capital estrangeiro do Brasil. Há, contudo, um fator que ajuda o país: a queda dos juros nos Estados Unidos e na Europa, que mantém o apetite por riscos “Com isso, a cotação do dólar deverá se manter próxima da atual, de R$ 4,90”, afirma. Para atrair mais capital externo, a executiva recomenda a continuidade de reformas, como a tributária, aprovada na última sexta-feira pela Congresso. “A simplificação dos impostos beneficia a todos e torna o sistema mais justo”, acrescenta. “Agora, a alíquota do IVA, o Imposto sobre Valor Agregado, não pode ser tão elevada como se tem falado, de 27,5%.”
A diretora do Haitong Bank assinala que a extrema-direita, com Javier Milei, só chegou ao poder na Argentina porque os governos anteriores fracassaram em atender aos anseios da população, o principal deles, o controle da inflação. Diz ainda que o Brasil deve buscar novos parceiros comerciais e não se envolver em disputas políticas com o país vizinho. Assinala que o fim do uso dos combustíveis fósseis está longe, por serem mais baratos, e recomenda ao Brasil correr com os projetos para a transição energética. Veja os principais trechos da entrevista de Sandra Utsumi, que participará, nesta terça-feira, do seminário Desafios 2024: o Brasil no rumo do crescimento sustentado, promovido pelo Correio.
Como avalia o primeiro ano do governo Lula? O crescimento da economia foi maior que o esperado e o desemprego, a inflação e os juros caíram.
O Brasil teve um desempenho econômico positivo pela consistência de uma política monetária que permitiu a queda da inflação, dos juros e um crescimento forte das exportações pelo segundo ano consecutivo. Sem a atuação firme do Banco Central, que retomou a confiança dos agentes econômicos, certamente o quadro atual não seria o mesmo. A inflação é o que há de pior para uma economia, pois desestrutura tudo e mina o crescimento econômico, o emprego e a renda.
Apesar desses bons resultados, ainda há muitas incertezas no meio do caminho, especialmente, quanto à questão fiscal. Por quê?
A queda de qualidade do desempenho fiscal no Brasil não tem sido ressaltada pelo fato de a maioria dos países, incluindo os desenvolvidos, ter apresentado deslizes desde a pandemia. Daí o fato de o rating soberano do país, medido pelas agências de classificação de risco não ter sofrido alterações. A boa notícia é que a continuidade da queda dos juros em 2024 deverá reduzir um pouco o ônus dos serviços da dívida, ou seja, o Tesouro Nacional terá uma conta menor de juros a pagar aos detentores de títulos públicos. Isso acaba ajudando o ajuste fiscal. É importante deixar claro ainda que, se, de um lado, a vantagem do Brasil é o baixo endividamento externo, de outro, o elevado estoque interno de dívidas acaba sempre por dilapidar a capacidade de financiamento doméstico da economia. Isso, no fim das contas, impede um crescimento maior da atividade.
É possível esperar um 2024 melhor que 2023?
O próximo ano será ainda de crescimento abaixo do potencial do Produto Interno Bruto (PIB) global, e isso deverá afetar também o Brasil, sobretudo, no primeiro semestre, quando há o risco de recessão na Europa e de uma estagnação nos Estados Unidos. A queda dos juros no Brasil não deverá ser suficiente para permitir um crescimento à semelhança de 2023, que foi surpreendente, próximo de 3%. Esperamos um avanço do PIB em 2024 entre 1,5% e 2%.
Quais são, na sua opinião, os maiores desafios do Brasil?
Os maiores desafios do país são os mesmo de sempre: aumentar a competitividade da economia e melhorar o ambiente de investimentos de longo prazo. Reformas que simplifiquem a estrutura fiscal, o desenvolvimento da infraestrutura, a formação de capital humano e outras mais são essenciais. O Brasil ainda está entre os 10 piores países do mundo em termos de distribuição de renda (índice de Gini), e a melhora depende, em grande parte, do investimento em educação e capacitação profissional.
Qual o impacto da reforma tributária aprovada pelo Congresso na economia brasileira?
O princípio da reforma é promissor, porque acaba com os impostos em cascata no Brasil. Reduz muito a complexidade, com apenas dois impostos, um federal e um estadual, sobre o consumo. Agora, será preciso evitar que o IVA dual seja tão alto, como se tem falado, podendo chegar a 27,5%. As negociações entre governo e estados serão fundamentais para não prejudicar o setor produtivo e os consumidores. Outro ponto positivo é o imposto seletivo sobre produtos que afetam a saúde e o meio ambiente. Agora, é preciso que a reforma seja implementada o mais rapidamente possível, pois o prazo definido pelo Congresso me parece longo diante das necessidades do país de ter um sistema tributário mais simples e justo.
A situação política no Brasil está pacificada? Até que ponto isso preocupa os investidores?
Os investidores deverão estar mais atentos ao contexto geopolítico global do que ao brasileiro em 2024. As eleições municipais devem indicar qual o grau de alinhamento ou não do eleitor com o governo federal, mas não deve influir, significativamente, na percepção do investidor estrangeiro.
O país está no radar do capital estrangeiro? Por quê?
O Brasil não é prioridade para o capital estrangeiro neste momento. Existe, em curso, uma mudança no padrão dos fluxos de investimento. Os recursos de curto prazo deslocam-se com os fatores de curto prazo, como o cenário doméstico e o custo de oportunidade, com base nas taxas de juros dos Estados Unidos. O investimento estrangeiro direto no mundo tem sido afetado pelos atritos comerciais e geopolíticos.
Neste contexto, as multinacionais têm promovido movimentos denominados de ‘reshoring’ (retorno ao país de origem), ‘friend shoring’ (deslocamento para regiões com menor risco de atritos comerciais e geopolíticos) e ‘near shoring’ (estratégia de estar mais próximo do mercado consumidor final). Em termos de competitividade, não têm sido de grande atração para os investidores os avanços que o Brasil tem promovido para melhorar os indicadores de transparência, para simplificar o enquadramento regulatório dos diversos setores da economia, para ampliar a produtividade, com melhora da infraestrutura, da educação e da capacitação da mão de obra, e para tornar a legislação fiscal mais consistente.
A combinação da mudança de estratégia de posicionamento global dos investidores com a lenta evolução dos índices de competitividade fez o Brasil perder posições significativas no ranking de confiança dos investidores nos últimos 10 anos. No exemplo da Kearney FDI Confidence Index, o Brasil, que sempre esteve entre os 10 primeiros destinos de investimento direto até 2015, passou para 22º em 2020, 24º em 2021 e 22º em 2022. O movimento de ‘reshoring’ fez com que os Estados Unidos passassem de terceiro para primeiro destino de investimento direto entre 2015 e 2022, enquanto a China caiu de segundo para o décimo no mesmo período. Dos 25 destinos mais atrativos em 2005, 11 eram países emergentes. Em 2022, somente seis emergentes (China, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Tailândia, Arábia Saudita e Brasil) faziam parte dessa lista.
Até que ponto a decisão do Federal Reserve, o BC dos Estados Unidos, de manter os juros inalterados ajuda o Brasil?
A decisão do Fed de manter os juros veio com uma mudança nas projeções para os próximos três anos, que inclui o início de um corte em 2024. Essa mudança das projeções é o fator que deve beneficiar o Brasil do ponto de vista do custo de oportunidade para os investidores que queiram ter exposição a ativos brasileiros. Favorece também a manutenção da cotação do real ante o dólar próxima dos níveis atuais, de R$ 4,90, mesmo com a redução dos juros promovida pelo Banco Central do Brasil.
Há, realmente, espaço para os Estados Unidos e mesmo a Europa começarem a cortar juros?
Haverá espaço a partir do último trimestre de 2024 tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. O Banco Central Europeu, no entanto, tende a enfrentar mais desafios com a sua política de meta de inflação, pois uma possível recessão no primeiro semestre do próximo ano ainda deve ser acompanhada de inflação acima dos 2%, devido ao fim dos incentivos e estímulos fiscais para reduzir o impacto na inflação da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Os Estados Unidos podem, eventualmente, antecipar os cortes nos juros no caso de um tombo da economia, também no primeiro semestre, devido ao duplo mandato do Federal Reserve, de crescimento do PIB próximo do potencial e de inflação em torno de 2% ao ano.
O pior da inflação global ficou para trás?
Muito provavelmente. O duplo choque no pós-pandemia, de falhas na cadeia produtiva (supply chain) e de volta repentina do consumo, foi dissipado em grande parte por conta do aperto monetário em 2023. Segundo as últimas estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI), a inflação global deve desacelerar de 8,7%, em 2022, para 6% em 2023, 4,4% em 2024 e 3,5% em 2025, próxima, portanto, à média observada antes da crise sanitária.
O que representa para o mundo a desaceleração da economia chinesa?
A China representa, atualmente, um grande mercado consumidor e um grande investidor na economia global. A desaceleração do crescimento chinês para um patamar próximo de 5% reduz o ritmo de consumo e a capacidade de internacionalização. Entretanto, acreditamos que o investimento estratégico deva avançar, com foco em mercados emergentes, em matérias-primas e na geopolítica. Essa estratégia pode favorecer países como o Brasil. Para o mundo, a China ainda está entre os três maiores parceiros econômicos individuais da maioria dos países e a sua desaceleração teve reflexos diretos na balança comercial e na atividade industrial no mundo.
Como vê a guinada da Argentina à direita? Até que ponto isso influencia as relações com o Brasil?
As mudanças de direção política em todas as democracias, seja para a direita, seja para a esquerda, têm sido acompanhadas pela incapacidade dos governos em promover um ambiente de crescimento e de melhora do padrão de vida dos eleitores. Os eleitores argentinos reprovaram a incapacidade do governo anterior de estabilizar a situação fiscal, a falta de consistência na gestão das políticas macroeconômicas e a consequente inflação crônica, que supera os dois dígitos há uma década, passando de 100% neste ano, precarizando a vida das pessoas, especialmente as mais vulneráveis. O Brasil tem lidado com relações comerciais fragilizadas com a Argentina nas mais de duas décadas em que o país vizinho enfrenta crises frequentes. No caso de mais atritos por questões de posicionamento político, o Brasil tende a reduzir a exposição ao risco econômico e deve buscar alternativas com outros parceiros comerciais. A Argentina, sem reservas internacionais e a depender das linhas de financiamento do FMI, tem mais necessidade de manter relações de comércio com o Brasil que o inverso.
O mundo enfrenta hoje uma série de conflitos, dois deles nas franjas da Europa. As guerras se tornarão mais frequentes? Qual o impacto para a economia global?
O impacto do aperto monetário na Europa e nos Estados Unidos, em conjunto com a lenta recuperação da economia chinesa, ainda deve prevalecer no primeiro semestre de 2024. O risco de mais fragilidade na economia global tende a manter o desequilíbrio fiscal de boa parte dos governos no mundo pós-pandemia e, consequentemente, tensionar a geopolítica.
A COP28 não conseguiu selar o fim dos combustíveis fósseis? Como o clima vai impactar as economias, sobretudo, as de países produtores de alimentos, como o Brasil?
O fim do uso dos combustíveis fósseis na escala global ainda é uma realidade distante. Mesmo nos países desenvolvidos é uma discussão não consensual e com elevados custos de transição. O acordo da COP28 foi somente o que se pode dizer de um compromisso em debater o fim do uso dos combustíveis fósseis. Não estabelece datas, metas e, tampouco, obrigatoriedade e responsabilidade. O aquecimento global leva à maior imprevisibilidade dos fenômenos meteorológicos e a possibilidade de catástrofes naturais de maior escala. Essa incerteza prejudica, principalmente, a agricultura, as atividades costeiras, por causa da elevação do nível de água dos oceanos, e a população que depende delas. Alguns setores já refletem os custos dessas alterações climáticas, incluindo o das apólices de seguros nos Estados Unidos e na Europa.
O Brasil realmente tem condições de liderar a transição energética no mundo?
Não acredito que haja um país que, individualmente, seja capaz de liderar a transição energética no mundo. Além de uma vontade coletiva, há uma grande necessidade de investimento em novas tecnologias que possam proporcionar a transição energética. Cada país tem uma característica particular de matriz energética, recursos naturais e grau de desenvolvimento. Todos irão precisar de mais energia elétrica de fato, mas não existem ainda fontes sustentáveis e na escala necessária para o crescimento global esperado, próximo de 3% do PIB mundial ao ano.
Algumas atividades como o transporte marítimo também não conseguem ser eficientes com energia elétrica de baterias. Daí a dificuldade de se negociar uma transição energética. Infelizmente, o Brasil não tem acompanhado o ritmo de geração de novas tecnologias no sector de energia como na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, na China e no Japão. Nessas regiões, o compromisso de transição energética está numa fase mais avançada por uma questão de estratégia de longo prazo na geração de energia voltados à independência, principalmente, do petróleo e gás, e sustentabilidade ambiental.
O uso de fontes de energia que emitem gases de efeito estufa ainda são muito mais baratos para o Brasil do que o uso de energia sustentável. Os recursos naturais existem com alguma abundância no país na forma de fontes hídricas, solar, eólica, reaproveitamento de recursos existentes, como biomassa, possibilidade de tecnologias ligadas ao uso do hidrogênio na forma sustentável, sem emissão de gases de efeito estufa, entre outros. Portanto, o Brasil também terá de planejar essa transição e investir nas tecnologias que possam ser adotadas de forma viável do ponto de vista econômico e ambiental.
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