quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos - Sergio Florencio (Interesse Nacional)

 O país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos.

 

Sergio Florencio, Interesse Nacional, 29/01/2024

 

O ciclo virtuoso da transição civilizada

Nos últimos trinta anos o Brasil tem sido o país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos. No início do século XXI soubemos aproveitar uma grande oportunidade. Vivemos o virtuoso reformismo econômico e social assegurado pela “transição civilizada” FHC-Lula. O tripé macroeconômico de FHC ( lei de responsabilidade fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante) assegurou estabilidade e modernização da economia, seguidas pelo aprofundamento de políticas sociais exitosas do primeiro mandato de Lula ( Bolsa Família). 


O desvirtuamento do bom caminho 

Esse ciclo virtuoso começou a se desvirtuar no meio do segundo mandato de Lula e se rompeu definitivamente com Dilma. Foi a primeira grande oportunidade perdida dos últimos trinta anos.  Mantega estendeu, para muito além do razoável, a política contracíclica, destinada a enfrentar, a curto prazo, a crise econômica internacional de 2008. O consequente descontrole das contas públicas e a turbulenta relação com o Congresso terminaram por cobrar seu preço político (impeachment) e econômico (violenta  queda de 7% do PIB no biênio 2015-2016). 

As energias desperdiçadas e os erros esquecidos. A Petrobrás endividada.

Além das oportunidades perdidas, o Brasil das últimas três décadas foi também o país das energias desperdiçadas e  dos erros esquecidos. O setor de petróleo e gás é revelador dessa trajetória. Em 1979, ano da Revolução Iraniana e do segundo choque do petróleo, o Brasil produzia apenas 15% da demanda doméstica de petróleo. Mas importantes investimentos no setor ao longo das décadas de 80 e 90 fizeram com que em 2006 o país alcançasse a autossuficiência em petróleo. Para isso, contribuíram de forma significativa as reformas realizadas no governo FHC: o fim do monopólio da Petrobrás; a abertura do setor; e a internacionalização da empresa, com o lançamento de ações na bolsa de valores de Nova York.  

Essa modernização ocorreu tendo como marco regulatório o modelo exploratório de concessão. Entretanto, em 2006, com o anúncio da descoberta das reservas extraordinárias do pré-sal, o governo Lula iniciou a transição para o modelo de partilha. No regime de concessão, a empresa concessionária é dona de todo o petróleo que produz, enquanto na partilha o dono é o Estado. 

O primeiro problema da mudança do modelo foi a inércia. Entre o anúncio da descoberta do pré-sal e o primeiro leilão, no campo de Libra, em 2013, se passaram longos sete anos, com elevado prejuízo para o país. Além disso, no novo marco regulatório, a Petrobrás assumiu a condição de única operadora do pré-sal, o que desestimulou a participação de empresas estrangeiras nos leilões e obrigou a Petrobrás a explorar campos com menor rentabilidade. 

 Dois outros fatores contribuíram para agravar os vultosos prejuízos da Petrobrás: o congelamento de preços dos combustíveis, destinado a conter a inflação; e os desastrosos projetos de construção da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, e do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – COMPERJ.  

As perdas resultantes da política de congelamento dos preços da gasolina agigantaram a dívida da Petrobrás, que atingiu seu pico de R$ 507 bilhões no terceiro trimestre de 2015. A título comparativo, a empresa registrou oficialmente perdas resultantes de corrupção no valor de R$6,19 bilhões, no período 2004-2012.

O COMPERJ, apesar de gastos elevados, praticamente nada avançou e o desperdício com a refinaria Abreu e Lima foi exponencial. Sua construção foi orçada em US$ 2,3 bilhões em 2005. Quatro anos depois esse valor se elevou para US$ 13 bilhões, e em 2015 o custo se aproximava de US$ 20 bilhões, quando as obras foram interrompidas, tendo sido concluída apenas metade da refinaria. 

Os projetos fracassados da refinaria de Abreu e Lima e do COMPERJ deverão ser retomados no atual governo, numa demonstração de que, além das oportunidades perdidas, o Brasil é também o país dos erros esquecidos.

 

O anunciado governo da união e da reconstrução perde seu rumo

 Com a vitória da extrema direita bolsonarista em 2018, o país despertou da ilusão generalizada de ter instituições sólidas e de ser uma democracia consolidada. Ao contrário, essa estava ameaçada como em 1964, mas  com uma engenharia de desconstrução política distinta. Dispensava os tanques na rua, os militares no primeiro plano e, por meio da falência dos órgãos vitais das instituições, planejava a morte da  democracia. Mas Bolsonaro não foi reeleito, a democracia se salvou, e a vitória de Lula se dava de forma distinta dos pleitos anteriores.  Repetia o apoio tradicional das regiões mais pobres (Nordeste e Norte), mas resultava  da combinação de dois ingredientes inéditos: o anti- bolsonarismo resultante da polarização/calcificação política; e o apoio de variadas correntes liberais democratas, temerosas da morte da democracia. 

Esses dois ingredientes na vitória de Lula criavam a  oportunidade de uma união nacional, destinada a superar a divisão entre  a extrema direita bolsonarista e a esquerda lulista.  Essa união nacional resultaria da aproximação entre a esquerda intervencionista e o centro liberal democrata. Esse cenário, obviamente difícil, parecia interessar não só ao centro – órfão político com o virtual desaparecimento do PSDB- mas também à esquerda, que precisava ampliar seus apoios, uma vez que a vitória eleitoral de Lula sobre Bolsonaro  foi inferior a 2%. 

Mas esse cenário virtuoso de união nacional foi jogado fora. Mais uma vez, o Brasil se revelou o país das oportunidades perdidas. Logo após a eleição, Lula anunciou seu projeto de união e reconstrução do país, mas seguiu caminhos distantes de tal propósito. Em lugar de se aproximar do centro – decisivo na sua apertada vitória sobre Bolsonaro - Lula preferiu privilegiar o PT raiz. A retórica e a prática do novo governo o distanciaram do centro, com base na premissa de que a polarização beneficiaria o PT, porque repetiria o confronto lulismo  versus bolsonarismo(mesmo com Bolsonaro inelegível). Nessa ótica equivocada, qualquer gesto em direção ao centro deveria ser evitado, pois era visto como jogo de soma zero – o ganho para o centro equivaleria a perda  da esquerda. 

 

A política externa virtuosa de Lula I e II em contraste com os excessos de Lula III

A política externa é outro exemplo de oportunidades perdidas. A atuação internacional de Bolsonaro foi uma desastrosa sucessão de graves equívocos que aproximaram o país da condição de pária no mundo. O propósito declarado era desconstruir princípios e paradigmas que orientaram a diplomacia brasileira. Nesse contexto caótico, a eleição de Lula provocou profundo alívio e grandes esperanças no mundo.  Lula assumiu sob signo “O Brasil está de volta”. Apesar desse ambiente de calorosa receptividade, justificado pelo capital de credibilidade internacional construído ao longo dos dois mandatos anteriores de Lula, a política externa do atual governo vem contrastando com o padrão histórico de defesa profissional dos interesses nacionais.  

O Brasil é uma potência regional com interesses globais. Temos condições de influenciar os rumos de nossa região, mas não dispomos de capacidade militar, de poder político, nem de peso econômico capaz de mudar os grandes acontecimentos globais. Avaliar com realismo o lugar do Brasil no mundo é condição necessária para uma política externa destinada à defesa do interesse nacional e não à busca de protagonismo internacional. 

O atual governo está falhando nesse processo. As declarações de Lula sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia apoiaram, de forma irrefletida e contrária ao direito internacional, a agressão russa ao território ucraniano. Com hesitação, tentamos corrigir esse erro, sempre com a aspiração de influir num conflito que vai muito além de nossas forças. Repetiu o Presidente esse erro de avaliação na guerra Hamas-Israel, ao buscar repatriar os brasileiros na Faixa de Gaza recorrendo ao Presidente Raizi do Irã, em óbvio erro tático. 

A barbárie do Hamas ao invadir kibutzes em território israelenses, executar com requintes de crueldade 1200 cidadãos mereceu ampla condenação internacional. A barbárie israelense, mais devastadora ainda, com a tragédia humanitária do saldo de mais de 20 mil palestinos, cerca de 1% da população da Faixa de Gaza, e 70% da infraestrutura, merece condenação mais veemente ainda. A diplomacia brasileira, na presidência do CSNU agiu de forma equilibrada e coerente com princípios e paradigmas de nossa política externa. Entretanto, uma vez mais, a retórica presidencial, ao atribuir aos bárbaros crimes de guerra israelenses a controvertida classificação de genocídio, desvirtua nossa tradição diplomática. 

Na nossa região, onde temos um histórico de equilíbrio construtivo no convívio com mais de dez vizinhos, o saldo do atual governo é muito negativo, por apoiar de forma recorrente os regimes autoritários de Maduro e Daniel Ortega, e ao criticar, com arrogância, Daniel Boric, o representante de uma esquerda moderna na região. 

No plano global, nosso alinhamento quase automático a posturas e aspirações da China no âmbito do BRICS ampliado, composto em sua maioria por regimes antidemocráticos, nos distancia dos países que defendem  a democracia liberal. Nossa postura reflete um antiamericanismo pouco compatível com os interesses nacionais. 

Em síntese, os últimos trinta anos de nossa história revelam, na economia, na política e nas relações internacionais, o padrão de uma nação com enormes potencialidades. Mas, ao mesmo tempo, o país das oportunidades perdidas e dos erros esquecidos. 

 

Sergio Abreu e Lima Florencio

Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2024. 


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