Este artigo foi publicado em abril de 2023, na revista Crusoé, por ocasião da visita de Lula a Portugal, quando também entregou o prêmio Camões ao compositor e escritor Chico Buarque.
O Brasil como um imenso Portugal?
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
Artigo para a revista Crusoé, a propósito da visita do presidente Lula a Portugal.
revista Crusoé (27/04/2023; link: https://crusoe.uol.com.br/secao/colunistas/o-brasil-como-um-imenso-portugal/). Relação de Publicados n. 1506
Muito tempo antes que Chico Buarque e Ruy Guerra, nos anos 1970 aventavam essa hipótese numa das mais bonitas canções (Fado Tropical) da época da ditadura brasileira, e quando Portugal se preparava para se libertar da sua longeva ditadura civil, dois “pais fundadores” da nação brasileira já tinham sugerido tal conformação no limiar da independência: em lugar de uma separação completa entre a metrópole lusitana e o então Reino Unido do Brasil, que as duas partes do reino configurassem um só Estado, com sede no Rio de Janeiro, no comando de um grande império marítimo transnacional. Com efeito, tanto Hipólito da Costa – o primeiro jornalista brasileiro independente –, quanto José Bonifácio – o primeiro membro brasileiro de um gabinete português sob a regência do príncipe D. Pedro –, concebiam, ainda poucos meses antes da separação, a continuidade de um só Estado monárquico constitucional, com a capital que abrigou a família real portuguesa quando esta teve de se resguardar da invasão napoleônica.
Em 1820-21, quando da revolução do Porto e das Cortes de Lisboa, o rei D. João VI teve de retornar relutantemente a Portugal; mas ele também mantinha essa ideia de que as duas partes do reino – e o Brasil já era bem mais rico do que Portugal – deveriam se manter juntas, para a maior glória da dinastia dos Braganças, em face de todas as outras monarquias europeias. Teria sido o primeiro reino “europeu” estabelecido numa possessão tropical, uma novidade absoluta na história europeia e mundial. Mas, como se sabe, as Cortes forçaram, a separação, ao tentar fazer o Brasil retornar ao seu antigo estatuto colonial; daí o rompimento, mas contra o qual lutaram, enquanto puderam, tanto Bonifácio quanto Hipólito.
A separação não era inevitável, inclusive porque D. Pedro, ao assumir em outubro de 1822 como Imperador do Brasil, era o legítimo sucessor do pai no Reino de Portugal, e a ruptura, de fato e de direito, só se deu, para todos os efeitos jurídicos e diplomáticos, em 1825, com a intermediação da potência da época, a Grã-Bretanha. Mas cabe considerar também que suas elites econômicas, os grandes proprietários de terras, tinham todo interesse na separação, para poder controlar de forma soberana e completamente as atividades mais lucrativas da época: o tráfico de escravos, a exportação dos produtos locais e a importação dos bens necessários à manutenção e desenvolvimento da nova nação. Nesse intervalo, a jovem república do hemisfério norte, os Estados Unidos, já tinha reconhecido a independência, assim como o fizeram, mas de forma bizarra, os independentistas de Buenos Aires, que logo entraram em desavenças e em guerra contra o Brasil, por causa da Cisplatina, finalmente reconhecida como República Oriental do Uruguai, sob pressão inglesa, em 1828.
Durante quase dois séculos Portugal e Brasil se “desenvolveram” em separado, não fosse pelo aporte contínuo de emigrantes lusitanos para sua grande ex-colônia. Depois das comemorações do quarto centenário do descobrimento, em 1900, e as do primeiro centenário da independência, em 1922, os dois países começaram novamente a se “unir” por meio de tratados sobre migração e cidadania, mas também pela via de regimes políticos que, justamente, se aproximaram pelo lado autoritário. O Estado Novo português foi “entregue” a Salazar no início dos anos 1930, seguido pelo Brasil vários anos à frente, ambos fortemente anticomunistas, mas com diferentes visões da economia e da política.
A antiga metrópole continuou parada no tempo, num sistema ultrarreacionário, mas se manteve “neutra” durante o grande turbilhão da Segunda Guerra. O Brasil deu início a um processo de industrialização nacionalista que se estendeu pelo meio século seguinte, inclusive com ajuda americana, que armou e vestiu os soldados brasileiros que foram lutar, integrados ao V Exército dos EUA, nos campos de batalha da Itália. Mas, por razões talvez sentimentais, data dessa época o apoio diplomático do Brasil à manutenção do império colonial remanescente de Portugal, o que se prolongou até os anos 1960, quando a maior parte das colônias europeias da África e da Ásia se alçou à independência.
O Brasil só mudou de posição praticamente ao final do período salazarista, que ganhou uma sobrevida em 1968, ainda com o mesmo espírito anticomunista: passamos a reconhecer os novos Estados independentes imediatamente após a “revolução dos cravos” de 1974, ao tempo em que Chico Buarque e Ruy Guerra compunham o fado prometedor. Com a liberdade sendo saudada à beira do Tejo, eles aspiravam a que o Brasil se tornasse um “imenso Portugal”, com democracia e políticas progressistas dos dois lados do Atlântico. Refugiados da ditadura brasileira, em vários países da América Latina e da Europa e afluíram rapidamente a Portugal, dando assim início a uma aproximação verdadeiramente sentimental. Portugueses da resistência e brasileiros exilados cantaram no Tejo o fado proibido no Brasil.
Uma década depois, o Brasil adentrou num longo ciclo de baixo crescimento e de aumento da pobreza que inverteu a tendência secular de atração de imigrantes: foi a vez do Brasil passar a “exportar” os seus filhos, um volume significativo para os Estados Unidos, muitos descendentes de japoneses para a terra de seus avós e muitos mais para diversos países europeus, com destaque, justamente, para Portugal, por óbvias razões linguísticas. Depois da Grécia, Portugal e Espanha, livres de ditaduras, ingressaram na então Comunidade Econômica Europeia; teve início um processo de modernização e de desenvolvimento que converteu o pequeno país ibérico em foco de atração de investimentos estrangeiros e de mão de obra de qualidade de diversos outros membros comunitários, e do próprio Brasil.
Com sua economia reconstruída e internacionalizada, foram empresas portuguesas – bancos, comunicações, serviços – que passaram a investir no Brasil das privatizações dos anos 1990, nos governos FHC. A imigração brasileira se intensificou, assim como a instalação de empresas brasileiras em terras portuguesas. novamente abriu-se a hipótese de um “imenso Portugal”, mas no sentido inverso, a partir de certa “colonização” brasileira – novelas, dentistas, restaurantes –, um processo não isento de dificuldades, dadas as regras comunitárias. Portugal não escapou da crise dos anos 2008-2009, e teve de passar por um severo processo de ajuste, não muito diferente daquele que o Brasil enfrentou, nos anos 1990, para se livrar de problemas que se arrastavam desde a “década perdida” dos anos 1980. Ainda assim, seja com governos de direita, ou de centro direita, seja com gabinetes socialistas (moderados, e em coalizão), Portugal conseguiu superar, a duros custos, a restauração das finanças públicas, com redução de vários benefícios (salários e aposentadorias), além de novas privatizações e algum desemprego.
No Brasil, os anos tucanos e petistas foram os melhores para as relações bilaterais e também do lado comunitário: em 2010 foi reconhecida a parceria estratégica entre a UE e o Brasil, embora o acordo de associação entre o bloco europeu e o Mercosul tenha patinado por duas décadas até ser finalizado sob o governo Temer para ser finalmente assinado nos primeiros seis meses do governo Bolsonaro; mas foi aí que ele empacou de vez, frente à antipolítica ambiental e os retrocessos registrados em todas as áreas sociais e humanitárias. Até um simples Prêmio Camões, justamente concedido ao compositor e escritor Chico Buarque pelo conjunto de sua obra, foi paralisado na sua entrega binacional, por antipatia do presidente anticultural: a entrega e celebração foram marcadas para a visita do presidente Lula, por ocasião do 49º aniversário da Revolução dos Cravos.
Com governos social-democratas dos dois lados do Atlântico e grandes promessas de cooperação também no âmbito da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (a partir de agora sob a presidência de São Tomé), o Brasil estaria preparado, mais do que nunca, a se converter em um “imenso Portugal”, se conseguir, realmente, fazer entrar em vigor o acordo inter-regional Mercosul-UE e completar seu acesso à OCDE, organização a que pertence Portugal desde a sua primeira encarnação, a OECE do Plano Marshall. Um desajuste entre os dois países se manifesta na questão da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, pois que Portugal apoia resolutamente sanções e resoluções condenando o agressor, como membro disciplinado que é da UE e da Otan (esta também desde a origem).
Em qualquer hipótese, as perspectivas para a ampliação das relações, tanto bilaterais, quanto comunitárias, se mostram bastante promissoras, em que pese certo retorno do Brasil a uma possível reprodução da “década perdida” dos anos 1980. No governo anterior, o cenário brasileiro era tão desolador que um imaginativo escritor, Fernando Dourado Filho, mandou uma espécie de carta ao presidente Marcelo Rebelo, sugerindo-lhe a devolução do Brasil a Portugal. O livrinho, bastante curto, se chama, mais precisamente, “O boiadeiro que tentou devolver o Brasil a Portugal” (2022). Não sabemos, exatamente, o que lhe respondeu o atilado presidente português, mas se aceitasse a proposta teríamos, finalmente, a realização do projeto defendido 200 anos atrás por Hipólito da Costa e por José Bonifácio: o Brasil como um “imenso Portugal”. Não é de todo uma má ideia...
Paulo Roberto de Almeida
[Brasília, 4342: 24 março 2023, 4 p.; revisto: 22/04/2023]
FADO TROPICAL
Chico Buarque e Ruy Guerra
Oh, musa do meu fado,
Oh, minha mãe gentil,
Te deixo consternado
No primeiro abril,
Mas não sê tão ingrata!
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou.
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!
"Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."
Com avencas na caatinga,
Alecrins no canavial,
Licores na moringa:
Um vinho tropical.
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebata um beijo...
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!
"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto,
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto.
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa.
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa".
Guitarras e sanfonas,
Jasmins, coqueiros, fontes,
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo...
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um império colonial!
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!
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