O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Alca. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Alca. Mostrar todas as postagens

sábado, 1 de setembro de 2018

A Alca Possível: Comentarios a artigo do Ministro de Estado (2003) - Paulo Roberto de Almeida

Em julho de 2003, ainda trabalhando como ministro-conselheiro em Washington e ocasionalmente atuando como chefe de missão interino, nas ausências ocasionais do chefe do posto, o embaixador Rubens Barbosa, eu provavelmente cometi, aos olhos do então chanceler do lulopetismo, o maior pecado do ponto de vista de quem, junto com os outros arautos do regime, já tinha firme a intenção de implodir a Alca: ousei, num comentário a um artigo dele na FSP, criticar métodos e estratégia, assim como deixar transparecer, de forma moderada, de que alguma acomodação seria possível entre o Brasil e os EUA na questão do projeto americano de um zona de livre comércio hemisférica. Mesmo escrevendo em nome do chefe do posto – pois que o telegrama deveria ser expedido oficialmente, ousei alinhar argumentos, em resposta a circular telegráfica (ou telegrama) da SERE justamente solicitando comentários a esse artigo. Não tenho certeza de que tenha sido deliberado por parte do chanceler calculista, talvez pensando justamente em montar uma armadilha, talvez para demonstrar ao chefe do Estado que o “pessoal de Washington” – o embaixador Rubens Barbosa e eu mesmo – era irremediavelmente pró-americano e pouco confiável para o projeto de implodir a Alca que todos eles entretinham. Seja como for, coloquei no telegrama, que redigi inteiramente sozinho (ainda que interpretando o que poderia pensar o chefe do posto), todos os argumentos objetivos e honestos, que poderiam sustentar a postura do Brasil na fase difícil que já estava aberta. Esse trabalho n. 1081 – “A Alca Possível: Comentários a artigo do Ministro de Estado”, de julho de 2003 – pode ter marcado definitivamente, na concepção dos dirigentes do Itamaraty, a ideia de que eu não seria confiável do ponto de vista da política externa dos companheiros. Evitei colocar as "espertezas" que eu percebia que já estavam sendo preparadas para implodir a Alca, e fui bastante moderado na avaliação da postura confrontacionista formulada em Brasília. A partir desse momento, foram 13 anos de afastamento de quaisquer funções na Secretaria de Estado, enquanto durou o regime lulopetista no poder (e eles ainda tentam voltar). Esse meu texto talvez explique algo.
Transcrevo, em primeiro lugar, o artigo do chanceler do lulopetismo em 2003, que foi recebido em telegrama oficial solicitando comentários. Como eu estava na posição de Encarregado de Negócios interino, elaborei o telegrama de resposta, alinhando todos os argumentos que me pareciam pertinentes, para expedição em nome do chefe do posto, o que vem em segundo lugar abaixo.
Fica o registro, no sentido da transparência e honestidade de princípios.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/09/2018

===============

Artigo do Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, publicado na Folha de São Paulo - "A Alca possível" (8/07/2003)

O governo do presidente Lula não aderirá a acordos que forem incompatíveis com os interesses brasileiros

Ao assumir o comando da nação, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que as negociações comerciais são hoje de importância vital para o Brasil. Além de um esforço interno de aumento da competitividade de nossos produtos e diversificação de nossa pauta exportadora, deixou claro que não poderíamos prescindir do combate, no plano internacional, pela abertura de novos mercados e por regras mais justas, respeitado o direito soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento.
Nesse espírito, o governo Lula tem procurado reforçar o Mercosul, promover a integração da América do Sul, explorar novas parcerias comerciais -sobretudo com os grandes países em desenvolvimento- e participar ativamente dos exercícios negociadores em curso: na OMC, no processo da Alca e entre o Mercosul e a União Europeia.
No que se refere à Alca, deparamos com um contexto negociador complexo do ponto de vista dos interesses brasileiros, sujeito a um calendário que nos deixava escassa margem para uma eventual correção de rumos. Tal como vinha se desenvolvendo nas negociações, o projeto da Alca ia muito além do que denota a expressão "livre comércio" em sentido estrito. Com efeito, as propostas em discussão incluíam aspectos normativos para serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual que incidem diretamente sobre a capacidade reguladora dos países.
Por outro lado, não pareciam encorajadoras as perspectivas de obtenção de livre acesso ao maior mercado do hemisfério para os produtos em que detemos vantagens comparativas (sobretudo, mas não apenas, agrícolas). Excluíram-se das negociações aspectos de importância prioritária para o Brasil, como os subsídios agrícolas e as medidas antidumping. As discussões sobre acesso a mercados haviam sido de fato fragmentadas, de modo que ao Mercosul fora reservado o tratamento menos favorável, com prazos de abertura mais longos do que os oferecidos a outros países do continente.
Deve-se lembrar, porém, que já dispomos de canais negociadores para levar adiante uma agenda de integração com os países latino-americanos no âmbito da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração), em especial os da América do Sul. Essas tratativas se beneficiam da cobertura jurídica da chamada "cláusula de habilitação" da OMC, que autoriza a troca de preferências comerciais entre países em desenvolvimento. Assim, o maior interesse em negociarmos uma Alca reside na expectativa de acesso ao mercado norte-americano, o qual, por sua dimensão e dinamismo, não pode ser ignorado. Trata-se, pois, de encontrar o equilíbrio adequado entre nossos objetivos, por assim dizer, "ofensivos", vistos a partir de uma perspectiva a um só tempo combativa e realista, e a necessidade de não comprometer nossa capacidade de desenhar e executar políticas de desenvolvimento social, ambiental, tecnológico etc.
Após um processo de reflexão dentro do governo, que não deixou de envolver debates com o Legislativo e a sociedade civil, o presidente Lula aprovou as linhas mestras do posicionamento brasileiro nas negociações sobre a Alca. De forma sucinta, essa posição -obviamente sempre sujeita a alguns ajustes no processo de negociação- pode ser descrita da seguinte forma: 1) a substância dos temas de acesso a mercados em bens e, de forma limitada, em serviços e investimentos seria tratada em uma negociação 4 + 1 entre o Mercosul e os EUA; 2) o processo Alca propriamente dito se focalizaria em alguns elementos básicos, tais como solução de controvérsias, tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento, fundos de compensação, regras fitossanitárias e facilitação de comércio; 3) os temas mais sensíveis e que representariam obrigações novas para o Brasil, como a parte normativa de propriedade intelectual, serviços, investimentos e compras governamentais, seriam transferidos para a OMC, a exemplo do que advogam os EUA em relação aos temas que lhes são mais sensíveis, como subsídios agrícolas e regras antidumping.
Esse enfoque redimensionado em "três trilhos" foi objeto de estreitas consultas com nossos sócios do Mercosul e foi exposto a nossos parceiros norte-americanos. Foi também debatido na reunião miniministerial de "Wye Plantation", em maio passado, e será apresentado, nesta semana, em El Salvador, por ocasião da 14ª Reunião do Comitê de Negociações Comerciais da Alca.
A visão brasileira foi também levada pelo presidente Lula à recente reunião de cúpula com os presidentes da Comunidade Andina, na Colômbia. O debate substantivo sobre a Alca, que se seguiu à exposição do presidente, contribuiu para um início de coordenação entre as posturas negociadoras dos países da América do Sul. Ainda que reconheçamos que há diferenças importantes entre o Mercosul e os países da Comunidade Andina, o diálogo entre nós é fundamental não só para as negociações da Alca, mas para a própria integração sul-americana, nossa principal prioridade.
Assim, em vez de nos prendermos a concepções irrealistas de uma Área de Livre Comércio das Américas, em torno das quais o consenso se afigura inatingível, preferimos nos concentrar na "Alca possível", que concilie da maneira mais produtiva os objetivos necessariamente diferenciados dos 34 países participantes. Foi a partir desse enfoque consistente e realista que a declaração conjunta na reunião dos presidentes Lula e Bush em Washington expressou o entendimento de que os dois países cooperarão pela conclusão exitosa das negociações nos prazos previamente acordados.
Mas prazos, como temos dito repetidamente, não podem prevalecer sobre o conteúdo. E "negociações exitosas", no caso do Brasil, significam preservar espaço para decidir de forma autônoma nossas políticas socioambientais, tecnológicas e industriais e obter melhores condições de acesso para os setores em que mais somos competitivos -e que enfrentam as mais elevadas barreiras protecionistas. O governo do presidente Lula não aderirá a acordos que forem incompatíveis com os interesses brasileiros, mas explorará, soberanamente, todas as alternativas para a promoção de nosso comércio e a aceleração de nosso desenvolvimento.

=================


De Brasemb Washington à SERE
SG – ALCA
Ref Desptel 744
Washington, 17/07/2003

Negociações da Alca. Artigo do
Senhor Ministro de Estado. Pedido 
de Comentários. Brasemb Washington.

Resumo: Cumpro Instruções. Comento o artigo do Senhor Ministro de Estado, “A Alca Possível” (FSP, 8/07/2003), do ponto de vista de Brasemb Washington. Ressalto grande coincidência com pontos de vista defendidos anteriormente por este posto. Ressalto as dificuldades da coordenação com parceiros regionais, inclusive do Mercosul.

Retransmissão automática para Delbrasgen, Braseuropa, Brasembs Londres, Paris, Berlim (Rogo retransmissão a Buenos Aires, Santiago, Montevidéu, Assunção, Brasaladi, Tóquio, Roma e Ottawa).

            Congratulo-me com o Senhor Ministro de Estado pela publicação do artigo “A Alca Possível” (FSP, 8/07/2003), que sintetiza, tanto para a sociedade brasileira, como para o público externo, alguns dos pontos de vista defendidos pelo Brasil no quadro do processo hemisférico, que estavam efetivamente demandando maior explicitação em razão de percepções eventualmente equivocadas em relação à posição brasileira e das naturais complexidades de um processo negociador que, como ressaltado no texto, não se limita ao universo tradicional de uma área de livre-comércio stricto sensu.

2.         Minha satisfação é tanto maior quanto fui levado a constatar, no texto, inúmeras coincidências e de fato uma quase perfeita identidade de pontos de vista com argumentos e sugestões de posições negociadoras desde muito defendidos por este posto, como tenho levado ao conhecimento da SERE desde minha assunção, em virtude da situação de certa forma privilegiada de que desfruto nesta capital. Washington constitui, inegavelmente, um dos pólos de poder e de influência no atual processo hemisférico (tanto do lado do Executivo quanto no âmbito congressual), bem como um terreno fértil de reflexões e de debates (com intensa osmose intelectual e intercâmbio de opiniões entre funcionários governamentais, representantes corporativos e de grupos de interesse e de inúmeros centros acadêmicos dotados de real independência), não só pelo lado dos inúmeros think tanksdedicados à temática das relações econômicas internacionais, como pela existência de organismos multilaterais que produzem insumos de alta qualidade sobre o substrato econômico das negociações (a começar pelo próprio BID, um dos integrantes da atual troika administrativa da Alca).

3.         Tanto a definição geral de política comercial externa, como a ordem de prioridades estabelecidas nos diversos processos negociadores de que o Brasil participa (objeto dos dois primeiros parágrafos do artigo) parecem corresponder amplamente a um amplo consenso na sociedade brasileira no que se refere à interface externa de nosso processo de desenvolvimento. Do ponto de vista dos EUA, as prioridades econômicas externas sempre foram, desde o imediato pós-Segunda Guerra, a preservação de um ambiente econômico aberto no plano internacional, suscetível de acomodar os interesses de suas grandes corporações desde cedo implantadas no exterior, como, do ponto de vista metodológico, a valorização dos instrumentos multilaterais sobre os esquemas mais ou menos minilateralistas de blocos comerciais excludentes, por seus líderes acusados de ostentar vários pecados econômicos, desde o desvio de comércio às práticas discriminatórias. Exceções foram, por certo, toleradas, como no caso do bloco europeu, mas elas se prendiam mais a questões de segurança geoestratégica do que a considerações de natureza econômica quanto ao caráter excludente daquela experiência, de resto facilmente contornada pela precoce implantação local de multinacionais americanas e em virtude do ambiente relativamente aberto, quanto a fluxo de capitais e acesso ao setor terciário, que caracterizou o território comum da OECE-OCDE.

4.         Essa situação começou entretanto a mudar desde o final dos anos 1980, não por acaso coincidentes com a percepção de uma “esclerose” parcial dos antigos mecanismos gattianos e a multiplicidade e diversidade natural de posições em virtude da ampliação do número de parceiros participantes do jogo multilateral. Começa então uma sutil e cada vez mais declarada adesão de Washington a mecanismos minilateralistas, consubstanciados nos acordos de livre-comércio com o Canadá, no lançamento da Iniciativa para as Américas (de Bush pai), na formação do Nafta, no apoio a mecanismos regionais de liberalização gradual (como no caso da APEC), no próprio início do exercício da Alca (sob Clinton) e, finalmente, na multiplicação de iniciativas bilaterais em diversos continentes que já conduziram à conclusão de vários FTAs e à composição de uma lista pelo menos triplicada de candidatos a novos esquemas bilaterais (desde “frameworks arrangements” até acordo formais de livre-comércio). Contribuiu para esse surto – de certa forma quase uma “epidemia” nos últimos anos – a impressão, partilhada tanto pelo Congresso como pelo Executivo – de que Washington estava perdendo a batalha para Bruxelas na estratégia de sedução (ou de reserva de mercados) de diversos parceiros regionais, quando não sendo ultrapassados pelos próprios (como Canadá e México, por exemplo). 

5.         Na medida em que essa estratégia parece ter adquirido dinâmica própria (e será portanto continuada pelos eventuais sucessores de Bush e Zoellick, sejam eles até mesmo democratas), parece-me correto, portanto, a atual estratégia brasileira de perseguir, com igual denodo nos diferentes planos, esquemas multilateralistas e minilateralistas (regionais ou com parceiros selecionados em determinadas regiões) de liberalização negociada de fluxos de comércio e de investimentos recíprocos, como forma de maximização de nossos ganhos num ambiente internacional irremediavelmente caracterizado pela imbricação multiforme, complementar e contraditória, dos processos de globalização e de regionalização. Por certo essa multiplicação de foros negociadores conduz a um certo stressnas equipes responsáveis, fenômeno visível até mesmo no bem aparelhado USTR, mas ela parece ser a única estratégia suscetível de minimizar as perdas potenciais no cenário “mercantilista-multilateralista” em que parece ter se convertido o sistema de comércio internacional contemporâneo. 

6.         A participação plena no exercício da Alca parece-me, portanto, corresponder aos interesses brasileiros, ainda que eventuais resultados positivos apareçam como duvidosos, no presente momento, em virtude das características gerais desse processo e pelas condições particularistas da oferta dos EUA, como ressaltado no artigo do Sr. Ministro de Estado. Uma percepção exata do que poderia vir a ser (não a, mas) uma Alca se vê dificultada pelas incertezas ainda remanescentes da posição negociadora dos EUA, dadas as ambigüidades e indefinições deliberadas do documento original que solicitou mandato negociador ao Congresso e em razão das condicionalidades estritas – mas nem sempre explícitas – colocadas no instrumento autorizativo do Congresso, que solicitou ser informado estreitamente e até mesmo ser consultado sobre ofertas liberalizadoras em setores de direto interesse brasileiro. Como ressaltado diversas vezes por várias autoridades dos EUA, a começar pelo próprio USTR, nada está excluído do mandato negociador, mas de fato as ofertas são moduladas em função de objetivos maximalistas nas áreas de real competitividade americana e de retraimento ou exclusão implícita naquele setores de exposição mais frágil (agro, de forma geral, algumas indústrias, assim como diversos serviços sujeitos a legislação restritiva) ou de natureza regulatória (defesa comercial).

7.         Partilho da convicção de que eventuais esquemas aladianos (típicos da “cláusula de habilitação”) e sua transposição num espaço econômico sul-americano de liberalização ampliada, suscetível até mesmo de consolidar-se numa área de livre-comércio regional, constituem o principal terreno de manobra da diplomacia comercial brasileira na atualidade, muito embora eu acredite que a eventual consecução plena desse objetivo requeira uma margem maior de liberdade negocial do que aquela permitida pelos atuais mecanismos mercosulianos, de consulta, coordenação e negociação conjunta. O objetivo acima descrito seria certamente mais fácil de ser atingido se o Brasil se dispusesse a (ou se ele pudesse) converter-se no “livre-cambista universal” no âmbito da América do Sul, mas por outro lado perderíamos, por certo, as vantagens do espaço ampliado de intercâmbio já consolidado ao abrigo da união aduaneira de 1995. Tal não é possível, entretanto, em virtude dos compromissos já firmados sucessivamente em Assunção e em Ouro Preto, e que vem sendo confirmados pelos atuais esforços de revitalização e de consolidação do Mercosul, inclusive com metas que ultrapassam os objetivos relativamente modestos dos “pais fundadores”, que não previram instrumentos parlamentares ou monetários comuns.

8.         Preservada a atual estrutura institucional e o cenário já conhecido de difíceis negociações inter-blocos entre o Mercosul e a CAN, tenho, entretanto, legítimas dúvidas, se me permitem tal atitude, quanto à solidez da disposição negociadora e à consistência dos compromissos sub-regionais de nossos parceiros continentais, por razões de ordem eminentemente práticas: (a) os imensos atrativos do mercado e dos investimentos dos EUA para a maior parte desses parceiros (inclusive do Mercosul); (b) pressões políticas, financeiras e até mesmo de ordem psicológica a serem exercidas pelo império em direção desses participantes hoje em sua maioria fragilizados; (c) disparidade de resultados percebidos entre nossos acenos de “coordenação de políticas setoriais” e de “integração física” com os vizinhos regionais e a promessa de ganhos imediatos, ainda que a rigor ilusórios em sua maior parte, do lado do Big Brother. Pode-se observar, por outro lado, que poucos países na região dispõem de condições ótimas para o exercício soberano e a execução concreta, como o Brasil, de projetos, políticas e programas setoriais de desenvolvimento integrado (social, ambiental, tecnológico etc.). 

9.         As linhas de ação para a Alca, propostas em documento do Senhor Ministro de Estado e referendadas pelo Senhor Presidente da República – basicamente consistentes nos “três trilhos” já conhecidos e como tal referidos no artigo em questão – parecem-me corresponder, efetivamente, à realidade atual do processo negociador, como aliás vinha sendo observado pela Embaixada em Washington desde a aprovação pelo Congresso do mandato negociador para o Executivo americano. Há uma compartimentalização de fato e uma segmentação de ofertas segundo os parceiros, a partir das quais o Brasil deve tirar as conseqüências práticas e avançar suas próprias propostas negociadoras, tanto quanto a métodos, como no que se refere á substância das ofertas realizadas e a serem melhoradas. Permito-me observar entretanto que se, a maior parte dos elementos negociais constantes de cada um dos trilhos pertence, efetivamente, ao mandato original de Miami, a componente dos “fundos de compensação”, inserida no contexto da Alca propriamente dito, não parece ter integrado aquele pacote fundador, sendo portanto suscetível de contestação numa visão mais legalista ou formalística do processo da Alca. De resto, estou basicamente de acordo com a repartição funcional e temática desses elementos entre os três trilhos sugeridos.

10.       A questão mais relevante a esse respeito, porém, tem a ver com a própria aceitabilidade dessa nova estratégia, ou dessa “metodologia revisionista”, aos olhos não apenas do Grande Irmão, mas dos demais parceiros regionais, inclusive Chile, Canadá e as chamadas “small economies”, cuja principal motivação pode estar, por exemplo, em investimentos ligados a serviços (em suas próprias economias, entenda-se). Não estou certo, assim, que esses parceiros – por certo algo recalcitrantes, mas nem sempre opostos aos desígnios do império, e em alguns casos até predispostos à satelitização – estejam prontos a seguir o Brasil nessa nova compartimentalização que oferecemos como uma solução elegante aos atuais impasses do processo hemisférico. 

11.       Não estou nem mesmo seguro de que nossos sócios do Mercosul manifestarão completa (e sincera) adesão ás teses e métodos propostos pelo Brasil, a despeito mesmo das juras repetidas e das promessas de solidariedade a cada novo encontro de cúpula. Não se pode, por exemplo, eludir o fato real de que os outros três parceiros sempre perceberam a TEC como uma construção essencialmente brasileira, daí as inúmeras exceções (nacionais, continuadas, divergentes e conflitantes) ao principal instrumento da união aduaneira. Tampouco se pode ignorar a realidade de um leque consideravelmente menor de interesses nas regras de acesso e nas normas regulatórias que esses mesmos parceiros mantêm em relação aos exercícios da Alca, das negociações UE-Mercosul e da própria rodada de Doha. 

12.       Por outro lado, pela minha própria experiência desde o início dos anos 90, no quadro do Mercosul (e mesmo antes, como representante brasileiro na Aladi), percebo os esforços de coordenação com a CAN como essencialmente ilusórios, quando não como diretamente frustrantes, dado o alto grau de “surrealismo institucional” e de “esquizofrenia operacional” existentes no bloco (bastante esgarçado) dos andinos. Na verdade, o único país consistentemente coerente em seus propósitos negociais, e de fato assumidamente livre-cambista e aberturista, tem sido o Chile, disposto a negociar acordos de livre-comércio com todo e qualquer país, em qualquer continente, que apresente oportunidades concretas em termos de suas vantagens comparativas. Essa facilidade negocial tem algo a ver, provavelmente, com o perfil tarifário único da pauta aduaneira chilena e com a preferência do país por políticas não indutoras de desenvolvimento, opções provavelmente difíceis no caso brasileiro, dada a natureza mais diversificada e regionalmente diferenciada de sua economia. 

13.       Partilho igualmente da opinião de que seria melhor ao Brasil concentrar-se no perfil de uma “Alca possível” do que procurar atingir todos os resultados originalmente inscritos no mandato de Miami, mas não estou certo de que a “minimização” dos grandes objetivos proclamados uma dúzia de anos atrás seja uniformemente acolhida por todos os parceiros do hemisfério. Tenho dúvidas inclusive de que o enfoque realista oferecido pelo Brasil, aparentemente acolhido pelos nossos parceiros americanos nos recentes encontros ministeriais e de cúpula, desfrute do mesmo entendimento do que seja uma “conclusão exitosa das negociações nos prazos previamente acordados”, sobretudo se considerarmos que interesses de grandes corporações americanas – certamente bem acolhidas pela atual administração americana – manifestam-se justamente naquelas áreas que desejaríamos ver transferidas para Genebra. 

14.       Permito-me, por fim, expressar minha convicção de que o problema principal da Alca não se refere mais a prazos ou a modalidades negociadoras, mas apresenta uma dupla vertente, segundo cada uma das co-presidências. Do lado americano, a prioridade parece centrar-se na maior “inclusividade” possível, ao passo que para o Brasil a tendência é exatamente inversa. Termino, portanto, afirmando que se quisermos fazer do atual processo hemisférico, não um exercício meramente dilatório mas, uma oportunidade singular para ganhos localizados em áreas de competitividade sistêmica brasileira, teríamos de abandonar o cenário das “grandes estratégias” – necessariamente generalizantes e pouco suscetíveis de acomodar nossos interesses concretos – e passar a concentrarmo-nos, desde já, em simulações econométricas quanto a ganhos possíveis e realizáveis em situações reais de barganhas setoriais (a serem conduzidas, eventualmente, até num esquema bilateral Brasil-EUA, e não necessariamente no formato 4+1). 

15.       A “Alca possível”, nesse sentido, não seria nenhum grande projeto de integração hemisférica, e muito menos a realização perfeita e acabada de uma área de livre-comércio (para mim utópica, nas atuais circunstâncias), mas uma “colcha de retalhos” (de geometria variável segundo os parceiros e setores “colados” entre si), na qual teríamos de colocar na nossa “periferia” todas as nossas vantagens comparativas naturais e adquiridas e deixar no “centro protetor” os setores e ramos dotados ainda de relativa fragilidade sistêmica. As simulações econométricas acima aludidas nos permitiriam, precisamente, medir a situações de maiores ganhos de bem estar para a economia brasileira, adotando então um perfil absolutamente pragmático (e não necessariamente uniforme) nas áreas selecionadas para abertura seletiva. Não se poderia excluir nem mesmo, a esse respeito, entendimentos ad hoccom os EUA relativos a medidas de defesa comercial, um dos nossos “demônios” principais nos vários exercícios negociais e absolutamente intratáveis até mesmo para as autoridades americanas em virtude dos humores congressuais. 

16.       Estou, por outro lado, absolutamente certo de que, assim como – no dito conhecido – os generais tendem a planejar a próxima guerra segundo as condições e técnicas militares dos combates precedentes, os diplomatas também negociam segundo cenários existentes em processos anteriores, sendo uns e outros ultrapassados pela dinâmica efetiva dos acontecimentos que se sucedem na vida real. Dessa forma, acredito que as empresas e os agentes econômicos, quando concluído o presente exercício negociador, terão avançado consideravelmente nos fluxos cruzados e nas interconexões recíprocas de investimentos produtivos, associações empresariais, fusões e outras formas diversas (e simultâneas) de market sharing, de cooperação e de competição, que diminuirão sensivelmente o impacto efetivo de uma futura (e ainda hipotética) Alca, assim como o Nafta, por exemplo, revelou-se bem menos transformador do que o “imenso sorvedouro de empregos” ou o “fabuloso manancial de modernização tecnológica”, imaginados por uns e temidos por outros.

17.       A Alca (em grande parte imaginada e imaginária) cresceu a ponto de “seqüestrar” boa parte da agenda diplomática brasileira, quando ela não é, de verdade, nem o monstro metafísico temido por alguns, nem a solução mágica do desenvolvimento brasileiro desejada por outros. Uma visão mais modesta desse exercício negociador, certamente complexo, mas nem por isso totalizador e totalitário, poderia contribuir para reduzi-lo às suas reais dimensões e eliminar, assim, os componentes ideológicos que hoje cercam o debate em torno dessa questão em nosso País. Quanto aos EUA, uma “Alca pragmática” – que provavelmente não será a mesma “possível” para o Brasil – certamente pode vir a satisfazer os setores da administração que buscam “quaisquer” resultados politicamente aceitáveis, para o eleitorado e para o Congresso, ainda que não para as corporações mais exigentes em termos de programa maximalista. Entre a Alca possível e a pragmática, tenho certeza de que existe espaço para um entendimento razoável entre o Brasil e os Estados Unidos. Espero poder contribuir para isto ainda à frente deste posto. 

RUBENS ANTONIO BARBOSA, Embaixador

Washington, 17/07/2003



quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O Brasil e os Estados Unidos: contraponto a Roberto Mangabeira Unger (2002)

Sempre que eu me confrontava a uma matéria sobre a política externa brasileira com a qual eu estivesse de acordo, eu buscava colocá-la à disposição de outros eventuais leitores. Mas sempre que eu me confrontava a uma matéria com a qual eu NÃO estava de acordo, também procedia da mesma forma, mas eventualmente precedida de meus comentários e observações críticas, por vezes um artigo inteiro como esse abaixo.
Caberia talvez ler antes o artigo de Roberto Mangabeira Unger, e depois o meu...
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 18 agosto 2018

O Brasil e os Estados Unidos:
Contraponto a Roberto Mangabeira Unger

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 18 maio 2002

            Em artigo na Folha de São Paulode 7 de maio de 2002, o Prof. Mangabeira Unger reincide no diagnóstico de que o Brasil estaria “sem política exterior”, ficando apenas com a “prática de negociações comerciais e com o medo dos Estados Unidos”. Ele recomenda, em lugar do medo, uma “estratégia de reposicionamento no mundo, que exprima e consolide projeto nacional de desenvolvimento”, propondo, então, uma série de ações que integre um “novo projeto brasileiro, (e que) comece a mudar as premissas da nossa relação com os Estados Unidos” De maneira a não deixar que suas idéias caiam no vazio, mas não concordando em que o Brasil esteja com medo ou diminuido frente aos EUA, vejamos quais são suas propostas e como poderiam elas ser colocadas a serviço da afirmação do Brasil no cenário mundial, em especial nas relações com os EUA. 
“Primeiro: buscar aliados dentro dos Estados Unidos que ajudem a reorientar a agenda americana com respeito à Alca e ao Brasil.” De acordo, mas seria importante identificar precisamente que forças são essas num país de mais de 250 milhões de  habitantes, atomizado em milhares de organizações de interesse específico, e que de toda forma não parecem ser capazes de se opor às forças muito mais poderosas que atuam junto ao Congresso americano, que acaba de aprovar uma série de ações – subsídios maciços aos produtores primários, mandato restritivo para negociações comerciais, apoio às salvaguardas para produtos siderúrgicos e várias outras mais – que vão todas contra nossos interesses concretos. O Prof. Mangabeira começaria bem por nos indicar quais são essas forças que ainda não lograram concretizar-se e como fazer, com a modéstia de meios que são os nossos no plano da ação externa, para mobilizá-las em nosso favor.
“Segundo: trazer à tona a empatia imensa e suprimida que os americanos nutrem pelo Brasil.” O que os americanos nutrem mesmo por nós é uma imensa e profunda ignorância, como aliás em relação a qualquer outro povo, com exceção daqueles estereótipos do mexicano de sombrero e coisas do gênero. Eles podem até gostar de nossa música e entreter imagens “exóticas” sobre nossa licenciosidade “relacional” e a exuberância de nossas florestas, mas não parecem ir muito além disso. Parece-me por outro lado ingenuidade acreditar que aUnião Européia insiste “em vincular mais comércio com maior igualdade”, o que não é de forma nenhuma confirmado pelas práticas absolutamente nefastas, para o Brasil e outros países em desenvolvimento, da “loucura agrícola comum” e toda sorte de obstáculos protecionistas ao acesso de nossos produtos aos mercados da UE.
“Terceiro: compreender que só seremos levados a sério pelos Estados Unidos quando começarmos a atuar seriamente no mundo.” De acordo, mas será que os “outros grandes países continentais periféricos, sobretudo a China, a Índia e a Rússia” podem prover-nos daquilo que mais necessitamos para “atuar seriamente no mundo”, ou seja: capitais, mercados, tecnologia, know-how, sem falar do necessário diálogo para influenciar efetivamente o processo de tomada de decisões em determinados organismos que se situam no coração de nossa inserção internacional (como OMC, FMI, BIRD, etc)?. De acordo, também, em criar “contrapesos ao unilateralismo americano”, mas o que significam, concretamente, “trajetórias alternativas de desenvolvimento”? Alguma nova receita não explicitada para a promoção de nosso progresso econômico e social? Seria preciso conhecer os componentes ativos dessa nova receita.
Mas, o professor também adverte que “Ao atuar como catalisadores de uma aproximação entre os países continentais em desenvolvimento, criando contrapeso ao poderio dos Estados Unidos, nós nos arriscamos a amedrontar o governo americano e a afastar a sociedade americana.” Trata-se aqui daquilo que os economistas chamam de “trade-off”, ou seja as consequências involuntárias, ou não desejadas, de determinadas ações, que sempre provocam impacto em outras áreas não necessariamente submetidas ao nosso controle ou influência. Este aliás me parece ser o perigo menos evidente, pois o Brasil tem mantido com os países indicados (China, Índia, Rússia) um diálogo que se tem desdobrado em alguns casos – como nos satélites com os chineses, por exemplo – em resultados concretos em termos de parcerias tecnológicas e comerciais. Não há portanto novidade na recomendação.
Finalmente, o professor termina por um afirmação que me parece pelo menos duvidosa do ponto de vista de sua legitimidade democrática ou simplesmente de sua viabilidade política prática. Ele diz, por exemplo, que essa “empreitada, inseparável de nossa afirmação nacional”, seria “digna, pela multiplicidade de seus elementos e pela vastidão do terreno em que se terá de desdobrar, de um Bismarck.” Ora, invocar um notório autocrata, conhecido representante histórico daquilo que os sociólogos – como um Barrington Moore, por exemplo – chamam de “modernização conservadora”, ou de “via prussiana para o desenvolvimento” (com todas as suas implicações em termos de processo político), invocar essa personagem desencarnada do século XIX como suposta inspiradora da ação de homens públicos no Brasil do século XXI representa, para os democratas sinceros, um curioso sintoma de involução democrática.
Em todo caso, aguardemos novas propostas concretas do conhecido professor, de maneira a podermos também prosseguir nosso diálogo à distância com o mentor intelectual de uma das candidaturas presidenciais no Brasil. 

Paulo Roberto de Almeida é sociólogo.

============

O Brasil e os Estados Unidos


Roberto Mangabeira Unger
Folha de São Paulo(7 de maio de 2002)

Quando o Brasil deixou de ter política exterior, ficou, no lugar dela, com a prática das negociações comerciais e com o medo dos Estados Unidos. Combinação desastrosa. O que convém não é medo: é estratégia de reposicionamento no mundo, que exprima e consolide projeto nacional de desenvolvimento.
A situação dos entendimentos em torno da Alca revela o paradoxo. Enquanto continuarmos a conduzir nossa relação com os Estados Unidos dentro dos limites de um mercantilismo pontual e despolitizado, todas as soluções serão ruins. Ruim render-nos ao tipo de acordo prefigurado pelas restrições que o Congresso americano impôs às negociações. E ruim ficarmos sozinhos, abraçados a vizinhos que não nos acompanharão numa fuga ao isolamento sul-americano.
A insistência em negociar duramente não bastará para resolver o problema; Estados não são empresas. A solução está em ação política e diplomática que, fundada em novo projeto brasileiro, comece a mudar as premissas da nossa relação com os Estados Unidos.
Primeiro: buscar aliados dentro dos Estados Unidos que ajudem a reorientar a agenda americana com respeito à Alca e ao Brasil. Maior abertura às nossas exportações depende de acertos com as empresas numerosas e com os muitos Estados americanos que exportam ou querem exportar para nós. Ou que possam colaborar para nossa capacitação tecnológica. Sem tais alianças não derrubaremos barreiras a nossas exportações nem aproveitaremos o potencial do relacionamento com a economia americana.
Segundo: trazer à tona a empatia imensa e suprimida que os americanos nutrem pelo Brasil. Entre esses dois países tão diferentes e tão parecidos, em que a fé no possível esbarra na muralha da desigualdade, há base para parceria que ultrapasse a esfera dos governos e os interesses do dinheiro. Que engaje a sociedade americana em nosso trabalho de redenção social. E que insista, como na União Européia, em vincular mais comércio com maior igualdade. Não podemos calar a voz do egoísmo comercial. Não precisamos deixar que ela fale sozinha.
Terceiro: compreender que só seremos levados a sério pelos Estados Unidos quando começarmos a atuar seriamente no mundo. A lógica da nossa situação nos exige aproximação econômica, tecnológica e política com os outros grandes países continentais periféricos, sobretudo a China, a Índia e a Rússia. É o Brasil hoje o país com melhores condições para construir cadeia de entendimentos que una esses países. Que crie contrapeso ao unilateralismo americano. E que amplie oportunidades para trajetórias alternativas de desenvolvimento.
O êxito do pequeno comercialismo depende da sorte da grande política: não realizaremos o primeiro desses três conjuntos de objetivos sem avançar também nos outros dois. Entre o segundo e o terceiro, porém, há tensão. Ao atuar como catalisadores de uma aproximação entre os países continentais em desenvolvimento, criando contrapeso ao poderio dos Estados Unidos, nós nos arriscamos a amedrontar o governo americano e a afastar a sociedade americana.
Daí a delicadeza dessa empreitada, inseparável de nossa afirmação nacional. E digna, pela multiplicidade de seus elementos e pela vastidão do terreno em que se terá de desdobrar, de um Bismarck. Na relação com os Estados Unidos, somos, de longe, os mais fracos. Teremos de ser, de longe, os mais clarividentes.

Mercosul, Alca e Argentina: opções do Brasil - exchange Samuel Pinheiro Guimaraes (2002)

Mais de um ano antes das eleições de 2002, o então diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, ou já depois de ingloriosamente defenestrado do IPRI, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, costumava me remeter seus artigos para Carta Maior, pedindo comentários. Como nunca fui de desprezar a produção intelectual de amigos, sempre me esforcei para apresentar minhas observações críticas aos seus textos. O que vai abaixo é um exemplo, entre vários outros, de exchange a propósito de questões relevantes de políticas econômicas e de política externa do Brasil.
Talvez ele seja um, entre vários outros, que me colocaram na mira do futuro SG-MRE do governo Lula, a partir de janeiro de 2003, quando fui vetado pela primeira vez para exercer um cargo na Secretaria de Estado (haveria outros vetos, aliás durante os 13,5 anos do regime lulopetista).
Transcrevo primeiro o artigo de Samuel Pinheiro Guimarães, depois os meus comentários.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 agosto 2018

A Argentina, o Brasil e o futuro do Mercosul 
Artigo para o site Carta Maior
www.agenciacartamaior.com.br <http://www.agenciacartamaior.com.br
Samuel Pinheiro Guimarães 
11 de janeiro de 2002.

1.         A violenta crise que ainda vive a Argentina não significa o fim do Mercosul e muito menos da Argentina. Esta crise já libertou a Argentina de um arcaico e engessante regime cambial e poderá ser a oportunidade para ela se desvencilhar da política de alinhamento político incondicional e do programa econômico concentrador e excludente patrocinado pelo FMI/EUA e assim reparar as ruínas sociais, econômicas e políticas, causadas por tal programa, executado por pró-cônsules nativos. É cada vez mais urgente repensar o Mercosul para além da reconstrução argentina, a partir de uma reflexão sobre as estratégias que possam retirá-lo do marasmo e do pântano de ressentimentos em que se tornou.

2.         A crise, que antes do acelerar da crise argentina, já atingia a Mercosul é apenas um reflexo das crises vividas nos países do Cone Sul. O lento crescimento da economia regional, a retração do comércio intrazonal, a profunda crise política e econômica na Argentina, a estagnação brasileira e os esforços frustrados de gerar superávits significativos, o desemprego e o deslocamento de setores industriais tendem a se agravar com a recessão sincrônica mundial e as consequências inibidoras dos atentados de setembro. 

3.         Mesmo antes da crise atual argentina, a situação econômica interna dos países do Mercosul levara à crise econômica do Mercosul que, por sua vez, fez ressuscitar e continua a estimular as rivalidades históricas de toda ordem. E coloca o projeto de integração regional sob grave risco, enfraquece o Cone Sul e sua capacidade de contribuir para organizar politicamente a periferia sul-americana diante da ação das estruturas hegemônicas de poder.

4.         Ao Brasil e à Argentina, todavia, continua a interessar a construção de um bloco econômico, político e militar que, fortalecendo sua estrutura econômica, permita a participação a médio prazo dos dois países no sistema internacional em grau de igualdade com Estados de semelhante potencial demográfico e territorial. Este objetivo somente será possível atingir abandonando a visão neoliberal do funcionamento da economia mundial e da economia nacional e restaurando a ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno, isto é, no pleno emprego dos fatores nacionais de produção e na geração e absorção de tecnologias adequadas à constelação de fatores dos dois países e do Cone Sul. 

5.         As estratégias que vêm sendo sugeridas para enfrentar a crise do Mercosul são de difícil execução em prazo adequado, algumas são inviáveis e outras podem até agravar a crise.

6.         A tentativa de organizar agências supranacionais e mecanismos efetivos de solução de controvérsias não resolve a crise do Mercosul e até a agrava. Apesar de a criação de agências supranacionais ou de mecanismos de solução de controvérsias serem, em teoria, aperfeiçoamentos institucionais, há uma insuperável dificuldade que as extraordinárias assimetrias territoriais, demográficas e econômicas entre os quatro Estados trazem para a definição democrática e equilibrada de sua representação nessas eventuais agências e mecanismos. E muito mais difícil se torna imaginar tais esquemas em situações de tão grave crise como esta que a Argentina ainda vive e continuará a viver durante algum tempo.

7.         A coordenação de políticas macroeconômicas através de consultas entre autoridades, ou de fixação de metas macroeconômicas comuns ou a criação de uma moeda única (que implica a organização de um Banco Central único) são medidas de longo prazo, inúteis até de imaginar quando até a coordenação interna, dentro de cada país, dessas políticas encontra sérias dificuldades. Na situação de grave crise externa e interna, imaginar que o abandono pela Argentina da paridade legal dólar/peso e a adoção de um sistema de câmbio duplo e até, eventualmente, flutuante, e como tal semelhante ao brasileiro viria a facilitar a adoção de uma moeda comum pelos países do Mercosul é simplesmente um profundo equívoco de avaliação e algo cujo grau de probabilidade é rigorosamente zero.

8.         As questões mais urgentes e decisivas no caso da Argentina, do Brasil e do Mercosul (a situação do Paraguai e do Uruguai são mera decorrência e incapazes de afetar o destino do bloco) são: o desequilíbrio estrutural das transações correntes; a dificuldade de expandir exportações para terceiros países; as tensões decorrentes dos deslocamentos econômicos de empresas e trabalhadores em um período de grave crise e a necessidade de promover o desenvolvimento industrial e abandonar a utopia retrógrada de criar uma sociedade moderna baseada em economias agroexportadoras.

9.         A situação argentina hoje leva a crer que a estratégia para sua superação exigirá uma profunda reestruturação do esquema do Mercosul. Portanto, surge a oportunidade para lançar as bases de um verdadeiro projeto de integração econômica e política que venha a ser o cerne da articulação de um polo sul-americano no sistema mundial de poder. É claro que a continuidade das negociações da ALCA faria malograr esta oportunidade. Com a ALCA, a América do Sul passará a fazer parte do território econômico norte americano e os Estados da região deixarão de poder fazer, de fato e de direito, políticas de aceleração do desenvolvimento, redução das disparidades internas e eliminação das vulnerabilidades externas.

10.       A evolução da situação argentina permite prever as seguintes etapas: 

a) a Argentina, em situação de moratória, não conseguirá atrair capitais de empréstimo ou investimentos diretos que permitam saldar os seus compromissos internacionais a curto e médio prazo; 
b) a atual política dos EUA /FMI não favorecerá mega operações de salvamento de investidores estrangeiros que, no caso da Argentina, são em número muito significativo europeus;
c) o Governo argentino terá de promover políticas internas de poupança e de investimento capazes de reduzir de forma significativa e rápida o desemprego e a percentagem da população abaixo da linha de pobreza, pois, caso contrário, o descontentamento popular se reacenderá; 
d) o Governo argentino terá de, nesse processo, proteger o seu mercado interno, promover investimentos de empresas e capitalistas argentinos e para tal terá de aumentar o grau de proteção da economia, aumentando suas tarifas;
e) o Governo argentino terá de fazer uma política comercial voltada para a geração de forte superávit comercial tendo em vista a impossibilidade de obter superávits significativos em outras rubricas do balanço de transações correntes (fretes, juros, turismo etc.);
f) esta política comercial terá de incluir necessariamente esquemas de subsídio às exportações e a elevação de tarifas que hoje são comuns com as do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, na forma de Tarifa Externa Comum, do Mercosul;
g) o principal destino das exportações argentinas é o Brasil e, portanto, em condições de moratória internacional, difícil será para a Argentina fazer um amplo superávit comercial total, sem ter um superávit significativo com o Brasil;
h) a política comercial da Argentina procurará favorecer a transformação do Mercosul de união aduaneira (aliás, em extremo imperfeita) em uma zona de livre comércio, o que permitiria à Argentina alterar suas tarifas para terceiros países sem ter de atender às conveniências econômicas e comerciais do Brasil (e do Paraguai e do Uruguai).
i) como resultado oportuno e favorável ao Brasil, a política comercial argentina não poderá continuar a favorecer a constituição da ALCA, pois a ALCA destruiria qualquer possibilidade de construir um superávit significativo, além de impedir, de direito, as políticas comercial, industrial e tecnológica indispensáveis à reconstrução argentina e ao fim da instabilidade social e política que continua latente e passível de erupção.

11.       Para o Brasil, a estratégia adequada para contribuir para a superação da crise argentina está longe de se tornar elegante mediador entre o Governo argentino e o Fundo Monetário e os Estados Unidos, mas sim a de ser um defensor de políticas de desenvolvimento argentinas e de sua soberania. O Brasil não deveria insistir na manutenção do Mercosul como união aduaneira, mas aproveitar a oportunidade para transformar o Mercosul em verdadeiro projeto de integração econômica e política. Este projeto deve ter como base realista a atual zona de livre comércio aperfeiçoada, com mecanismos de equilíbrio e uma coordenação de políticas tarifárias naqueles setores de interesse vital de longo prazo para o Brasil, tais como bens de capital e informática. A possibilidade de estabelecer mecanismos de crédito recíproco amplos é indispensável para preservar o comércio bilateral. A possibilidade de operações de resgate da dívida no pulverizado mercado de títulos não deve ser descartada nem sua importância minimizada. A criação de mecanismos de compensação e de fundos setoriais de reestruturação, de programas comuns, em especial em áreas de tecnologia avançada e de exportações, e de programas comuns de investimentos estratégicos completariam o quadro econômico do projeto. Na esfera política, a oportunidade é única para estabelecer as bases de uma coordenação estreita, profunda e verdadeira entre o Brasil e a Argentina que fortaleça a atuação dos dois países nas negociações internacionais de toda ordem e na construção de um polo político sul-americano, não-hegemônico, em que o Brasil abra seu mercado sem reciprocidade a seus vizinhos, que possa preservar a possibilidade de desenvolvimento e de afirmação política do continente, evitando sua absorção em esquemas liderados pelas Grandes Potências, como é a ALCA. A atitude atual do Brasil será definitiva para que essas oportunidades possam se concretizar.

================

Mercosul, Alca e Argentina: opções do Brasil
Comentários a texto de Samuel Pinheiro Guimarães

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 8 fevereiro 2002

-----Original Message-----
From: Paulo Roberto de Almeida 
Sent: Friday, February 08, 2002 16:30
To: 'samuelpgn@uol.com.br'
Cc: 'palmeida@unb.br'
Subject: Argentina, Brasil e futuro do Mercosul

            Meu caro Samuel,

            Tenho por você a maior admiração e apreço, intelectualmente, moralmente, como cidadão, como diplomata, como pessoa humana. O que não quer dizer que devamos concordar em tudo. Mercosul é um terreno de minha predileção, no qual coincidimos talvez em 90 p/c das recomendações, mas persistem algumas divergências que talvez sejam mais táticas do que estratégicas. Vamos portanto ao seu texto que requereu toda a minha atenção.
            Comento topicamente, parágrafo por paragrafo, que já estão numerados, e depois venho ao geral.
1. Concordo em que a crise permitira a Argentina se desvencilhar da camisa de forca da lei de conversibilidade, mas não acredito ser realista esse preconizado distanciamento dos EUA e do FMI: eles simplesmente não podem se permitir tal independência, pois não têm os meios e são e continuarão totalmente dependentes dos aportes financeiros de Washington nos próximos meses e anos. Sua linguagem é aqui muito dura, mas creio que você tem atualmente a liberdade para empregar palavras fortes (pró-cônsules). Não creio que haverá alinhamento incondicional, mas a dependência, isso sim, continuará. Portanto, minha única observação seria essa. Não seria o caso de agregar uma frase do tipo?: "ainda que tal independência fosse recomendável, não seria realista esperar o distanciamento da Argentina dos Estados Unidos nos próximos meses e mesmo anos, em virtude da situação de extrema fragilidade financeira e de dependência efetiva em relação ao dinheiro de Washington."
            
2. Eu diria que a crise  antes de Cavallo não era propriamente do Mercosul, mas dos países membros: Brasil, Argentina tinham suas próprias crises. Ela so se tornou do Mercosul quando Cavallo começou a adotar medidas frontalmente contrarias ao espirito da UA. Concordo que havia muita fricção anteriormente, e mesmo desrespeito as normas, mas nada de muito grave. Cavallo representou uma contestação conceitual, filosófica aos fundamentos essenciais do Mercosul. Fiz esse tipo de analise num artiguinho inédito que não publiquei, pois não deixaram (quando o Lampreia aderiu às teses “cavallinas” em setembro passado). Depois incorporei num texto maior que mando em anexo.

3. Eu não acredito que a crise, dos países membros ou do Mercosul, tenha ressuscitado as rivalidades históricas de toda ordem como você diz. Isso simplesmente não existe. Não podemos tomar declarações esparsas de homens políticos como demonstrativo de um revivalde eras passadas. Por outro lado, falar em "organizar politicamente a periferia sul-americana" me revela uma atitude semi-imperial que condenamos no Big Brother e não acredito que ela beneficie o Brasil no subcontinente. Podemos até ser líderes, mas não deveríamos proclamar isso. Organizar periferia soa como arrogância imperial...

4. Abandonar a visão neoliberal pode até ser (ainda que eu ache que o neoliberalismo é mais proclamado do que praticado; eu fiz um texto sobre isso que mando agora), mas achar que a "ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno" vai resolver os problemas econômicos imediatos, isso para mim é muito otimismo. Um projeto de longo prazo ou pelo menos de efeitos delongados não pode servir de paliativo para os problemas do presente.

5. Concordo e se trata de simples constatação, mas o parágrafo não traz propostas concretas, ou seja não é substantivo, meramente indicativo de algo que não sabemos o que é.

6. Concordo totalmente, mas creio que a supranacionalidade nem está em causa no momento, entre os países membros, sendo um punhado de juristas acadêmicos que a defendem. O Uruguai e Paraguai defendem o tribunal permanente e eu concordaria com a ideia de uma corte arbitral "permanente" (com árbitros à disposição, por períodos rotativos de 3 a 4 anos) para julgar rapidamente os casos. Seria um pequeno grão de "supranacionalidade" numa estrutura que para mim deve permanecer intergovernamental pelo futuro previsível.

7. Concordo também, e nenhum dirigente realista está advogando a moeda única agora, mas creio que os similares de critérios de Maastricht (que já existem parcialmente, desde Florianópolis) podem começar a ser monitorados em escala nacional para a futura coordenação quadrilateral. Mas não morro pela União Monetária do Mercosul...

8. A constatação econômica é realista, mas não concordo em que uma forte economia agroexportadora seja uma utopia retrograda. A agricultura hoje é uma grande indústria, mais, ela combina serviços, software, biotecnologia, marketing, financiamento, tudo, e muito mais que fazem dela uma atividade essencialmente moderna e avançada. Concordo em que a elasticidade-renda (menor de um) não recomenda uma estratégia exportadora baseada em agro como NORMA GERAL, mas o Brasil tem chances únicas de aumentar rapidamente exportações nessa área substituindo outros fornecedores e deslocando competidores. Isso podemos fazer. Sou consciente do protecionismo, mas isso não pode demover-nos de explorar nossas vantagens comparativas que neste caso são totalmente dinâmicas....

9. A superação da crise argentina depende quase que inteiramente deles, não do Mercosul. Podemos ajudar, e eu seria favorável a que o Brasil estendesse uma linha de credito de 1 bi para mover os negócios novamente. Mas o essencial tem de ser feito por eles. Será duro, muito duro, mas o papel do Mercosul tem de ser outro, situado mais no terreno politico-diplomático (e estratégico-hemisférico) do que no campo econômico financeiro.

10. Concordo com algumas ideias, mas sou cético em relação à recomendação f), de subsidio as exportações e de elevação de tarifas (de quem, dos países membros, como hoje, ou da TEC?). Não sei se eles insistirão, como fazia Cavallo, com h), isto é, transformar o Mercosul de UA em ZLC. Eles precisam do Brasil e farão o que nós queremos e portanto não posso concordar também com o que vem em 11.

11. Discordo radicalmente, fundamentalmente da ideia de abandonar a UA, e isso não por motivos estritamente econômicos, mas por razoes de processo diplomático/negociatório nos próximos anos. Sou favorável a manter a UA pelo menos ate 2005. Sou favorável a iniciar desde já uma reflexão com os argentinos para mudar o Mercosul, quem sabe até permitindo a saída da UA e a volta a uma ZLC, a partir de uma conferencia diplomática no final de 2004 (que nós coordenaríamos), como está indicado (mas ainda não desenvolvido) no meu trabalho 811 que segue anexo. Nos simplesmente não podemos ficar sem a UA agora, pois isto significaria uma ordem dispersa no Mercosul e a fraqueza frente ao Império (além de impossibilitar negociações com a UE). CONCORDO TOTALMENTE em que a gente abra o nosso mercado sem reciprocidade (o que a UA do Mercosul atrapalha um pouco reconheço), pois esta é a garantia da Alcsa, que precisaríamos ter (mas sou cético porque a CAN e' uma bagunça monumental, e vão ceder ao Império no primeiro aceno).
            Formalmente esse paragrafo esta muito longo e deveria ser dividido nas questões financeiras, comerciais, de politicas setoriais, diplomacia etc.

            Meu caro Samuel, tenho algumas ideias a respeito do Mercosul, mas seria difícil expô-las agora. Ainda não coloquei no papel essas ideias, inclusive porque não me deixariam publicar. Mas gostaria de debater com você. 
            Estou indo ao Brasil em março, segundo o roteiro anexo. Podemos sentar e conversar?
            Eu até coloquei, tentativamente, uma palestra na FGV, Palestra:
"Alca, OMC e negociações comerciais: desafios para o Brasil" ??, mas estava justamente querendo falar contigo. 
            Abração,
Paulo Roberto de Almeida
Minister Counselor
Brazilian Embassy
3006 Massachusetts Avenue, NW
Washington, DC 20008
Webpage:  <http://www.brasilemb.org> www.brasilemb.org
Ph (202) 238-2740 Fax: 238-2827
E-mails:  <mailto:pralmeida@brasilemb.orgpralmeida@brasilemb.org
Webpage:  <http://www.pralmeida.org/http://www.pralmeida.org

Alca e Alcantara: questoes mal postas - Jose Monserrat e Paulo Roberto de Almeida (2002)

Alca e Alcântara

José Monserrat Filho
JC e-mail 2112, de 04 de Setembro de 2002.
Quarta-Feira, 04 de setembro de 2002
          
A propósito do plebiscito nacional informal promovido por várias entidades da sociedade civil, creio estar havendo enorme confusão. Alca é uma coisa. Alcântara é outra
Alca é, de fato, uma questão de soberania. Alcântara é uma questão de mercado. Se aceitarmos entrar na Alca pela receita dos EUA, seguramente vamos ampliar a um grau quase incalculável nossa dependência e comprometer nosso direito soberano à autodeterminacão.
Alcântara é excelente campo de lançamentos espaciais. Tão boa ou até melhor que a base de Kourou, a 'Porta da Europa para o Espaço', que fica na Guiana Francesa, ao norte do Brasil. Alcântara está a menos de 3 graus ao sul da Linha do Equador. De lá, os lançamentos, ajudados pela própria rotação da Terra, são sempre mais econômicos.
É um recurso natural precioso que temos para explorar em plena era espacial, quando um monte de coisas vitais - telecomunicações, observação da Terra, meteorologia, sistemas de localização, alerta contra desastres naturais etc - se faz através de satélites que precisam ser lançados a preços cada vez menores.
Já gastamos mais de US$ 400 milhões para transformar Alcântara num centro de lançamentos competivivos. Mas, apesar de local privilegiado para essa atividade hoje milionária, ainda não faturamos um único centavo.
Para fazer Alcântara faturar, o Brasil saiu em busca de sócios e clientes. O primeiro consórcio pensado, com a empresa FiatAvio, da Itália, e duas empresas ucranianas, parecia ótimo. O primeiro cliente à vista foi a Motorola, dos EUA. Mas os EUA disseram não. Com o Brasil, não - comunicaram ao governo italiano. Então, o Brasil sentiu na pele que sem um acordo com os EUA não teria como explorar Alcântara.
Decidiu fazer este acordo. Os EUA de novo disseram não. E mais de uma vez. O Brasil resolveu tentar diretamente a Casa Branca. O presidente FHC falou com o presidente Clinton. Abriu-se uma brecha. Os dois países negociariam um acordo de salvaguardas tecnológicas.
Primeiro obstáculo: os EUA queriam que o Brasil abrisse mão do foguete VLS, nosso projetado lançador de satélites. Foi a vez do Brasil dizer não.
Os EUA, então, responderam: certo, mas o dinheiro das nossas empresas não pode ir para o VLS, pois temos uma política de não-proliferação de tecnologia de mísseis e o VLS, afinal de contas, pode virar um míssil.
O Brasil achou que valia a pena aceitar essa condição, pois a possibilidade de ter acesso às empresas norte-americanas, que representam mais de 80% do mercado de lançamentos, era muito vantajosa. E o acordo foi feito.
Acordo duro, pois os EUA estavam em posição negociadora mais favorável - nós precisávamos do acordo muito mais do que eles. Mas, quem ler o acordo com todo o cuidado, verá que, apesar das concessões que tivemos que fazer, o Brasil mantém o controle de todas as operações em Alcântara.
Para cada lançamento terá que ser feito um contrato entre a empresa norte-americana interessada e a empresa brasileira representante de Alcântara. A Agência Espacial Brasileira (AEB), a seguir, emitirá uma licença de lançamento, se todos os requisitos exigidos pela lei brasileira forem cumpridos. E haverá ainda um documento da AEB autorizando, por fim, o lançamento.
O Brasil estará vendendo os serviços e benefícios de Alcântara para empresas privadas. Não há cessão de território ou ocupação de área por estrangeiros. Alcântara nunca será um enclave, deixará de ser do Brasil e operada por brasileiros.
O acordo de salvaguardas tecnológicas com os EUA prevê, sim, áreas restritas, onde brasileiro só entra se convidado. As áreas restritas existem em todo o lugar do mundo onde se lida com tecnologias estrangeiras em torno das quais se estabelece vigilância rigorosa para que não sejam copiadas ilegalmente.
Mas as áreas restritas duram apenas enquanto se efetua a operação contratada e, em Alcântara, quem demarca as áreas restritas são as autoridades brasileiras.
A tecnologia estrangeira também não pode ser examinada quando chega, na Alfândega. Os franceses não examinam a alma dos satélites enviados à Kourou para serem lançados. Isso ocorre em qualquer base do mundo.
O cliente faz uma declaração sobre o conteúdo de sua carga, e se ele estiver mentindo, ele e seu país terão que arcar com as responsabilidades decorrentes. É assim que esse negócio funciona em toda parte.
Desse modo, a duras penas, o Brasil logrou concluir um acordo que não é a sétima maravilha do mundo, mas pode nos abrir uma porta no mercado mundial de lançamentos comerciais, onde não é qualquer um que entra e ao qual nós temos um ótimo serviço a oferecer.
Essa chance está em nossas mãos. Se recuarmos, Alcântara seguirá dando despesas, sem ganhar nada, entregue às moscas. É isso que queremos? E agora me digam: o que isso tem a ver com a Alca, um acordo que como se articula hoje visa apenas a nossa subordinação?
Alcântara é exatamente o oposto: é um meio para ingressarmos, com um serviço nosso, numa área de grandes negócios internacionais. 

===========

 Alca e Alcântara : questões mal postas

Comentários de Paulo Roberto de Almeida
a artigo de José Monserrat
Publicado no Jornal da Ciência e-mail
(nº 2114, 6.09.02).
Relação de Publicados nº 350.

Meus cumprimentos ao editor José Monserrat por seu brilhante artigo em torno da confusão que resolveram montar em torno do pretenso plebiscito sobre a Alca, na qual se inseriu uma questão, aparentemente extemporânea e totalmente estranha, sobre o uso da base de Alcântara. Digo aparentemente porque a intenção dos organizadores do plebiscito não é consultar a população, mas tão simplesmente obter uma condenação tanto da Alca quanto do acordo de salvaguardas tecnologicas para o uso de Alcântara, o que é demonstrado pela forma preconcebida como foram formuladas as questões. O que me leva a apostar com qualquer representante da CNBB o que desejar se, a exemplo do plebiscito de cartas marcadas de dois anos atrás sobre as dívidas externa e interna, este também não recolher uma adesão maciça ao NÃO, provavelmente na faixa de 95 a 99% (unanimidade ao velho estilo albanês de fazer votações).
Monserrat demonstra como o Brasil está perdendo com a não aprovação desse acordo de Alcântara, o que nos deixa duvidando sobre a adequação ao interesse nacional das intenções dos organizadores do plebiscito, do qual resolveu dissociar-se em boa hora o PT. Não precem se dar eles conta de que a base de Alcântara deve servir para fins de abertura de uma noa área de exploração das possibilidades industriais, de serviços e sobretudo de progressiva capacitação tecnológica do País em domínio até aqui restrito a uns poucos países habilitados nesse jogo restrito que constitui o uso de vetores e o domínio das técnicas de lançamento. Como se pode esperar que o País se capacite nessa area?: criando uma “Lançobras”para capacitá-lo unicamente com o apoio do dinheiro público, que sabemos inexistente ou irrisório? Qual a ameaça à soberania do país na preservação da confidencialidade tecnológica de lançamentos operados por empresas americanas quando, numa comparação, não de todo inusitada, a Coca-Cola produz até hoje sua famosa gororoba com base num segredo comercial, nunca revelado e nunca patenteado e devidamente respeitado pelo Brasil (como por qualquer outro país)?
Confundir soberania com interesse comercial não revela apenas raciocícnio tortuoso por parte dos organizadores do plebiscito; revela também quão pouco identificados com os interesses nacionais eles estão.
Um único reparo ao artigo do Monserrat: considerar que a Alca é uma questão de soberania revela um outro desvio curioso do debate nacional em torno desse projeto de acordo comercial (que não sabemos hoje se existirá, mas que os organizadores do plebiscito já consideram como líquido e certo, num curioso exercício de profetismo histórico).  Por certo não se trata de um “mero” acordo de livre-comércio, pois que, se ele existir (o que duvido, não por causa do punhado de opositores que se manifestam de forma estridente, mas por causa do protecionismo do Congresso americano, tão avesso a ele quanto nossos mais furiosos manifestantes anti-Alca, o que nos deixa pensando sobre as razões dessa curiosa coincidencia), ele deveria supostamente englobar aspectos não totalmente comerciais, como propriedade intelectual, investimento, concorrência ou compras governamentais.
Mas, esse acordo – que finalmente se reduz a rebaixar tarifas e eliminar umas outras tantas barreiras não tarifárias ao exercício de negócios nos países americanos, introduzindo o conceito de tratamento nacional nas áreas assim abertas à concorrência estrangeira – apresenta muito menos desafios à soberania nacional do que, por exemplo, os acordos que o Brasil já assinou, e que todos os progressistas apoiam, nos terrenos da luta contra a corrupção internacional nos negócios (um acordo hemisférico, outro multilateral) e no do tratamento aos mais bárbaros atentados aos direitos humanos, como consubstanciado no TPI, saudado como marco de avanço no direito internacional e que, sim, comporta renúncia de soberania no que toca os próprios nacionais brasileiros.
Em face desses acordos, eles sim comprometedores da “soberania” nacional, o futuro e até aqui hipotético acordo da Alca seria muito menos intrusivo e nocivo à soberania nacional, pois que se limita a estender ao âmbito hemisférico preferências tarifárias, compromissos de acesso a mercados e um certo conjunto de nomas comerciais, o que o Brasil já pratica hoje no plano do Mercosul e também no quadro da Aladi.
Nunca vi nenhum congressista brasileiro denunciar essa “renúncia de soberania” que representa o Mercosul e que vários observadores brasileiros querem ver aprofundado no sentido da adoção de cláusulas supranacionais (portanto, mais renúncia de soberania). Frente a isso, a Alca é o menor dos males e a oposição a ela deve ser apenas porque a proposta partiu do Império, o mal absoluto no julgamento desses opositores. Mais uma vez se demonstra o baixo grau de confiança que muitos brasileiros entretêm sobre nossa própria capacidade de negociar com pleno conhecimento de causa oportunidades comerciais – pois que a Alca trata precisamente disso, como Alcântara – por um suposto temor de dependência dos interesses externos. Creio que se trata simplesmente de manifestação de baixa-estima sobre nossas condições negociadoras.
Paulo Roberto de Almeida (sociólogo; pralmeida@mac.com)