Como chegamos a ter uma ameba parlamentarista?
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Comentário privado a respeito de nosso atual "não sistema" político-partidário, feito à margem de um debate bilateral, que aproveito para reproduzir aqui.
Permito-me chamar a atenção para a seguinte peculiaridade de nosso sistema político: estamos todos acostumados com o populismo, ou seja, políticos vão continuar mentindo e enganando os eleitores para obterem vantagens eleitorais, ou seja, a manutenção da representação política.
Mas, na atual conformação do sistema político-partidário brasileiro, caracterizado por fragmentação partidária, exacerbação do uso privado de recursos públicos e deformação do princípio proporcional, tivemos a consolidação de um estamento político que atua diretamente no controle das verbas públicas para enriquecimento pessoal e desvirtuamento completo do processo orçamentário, com "projetos" deliberadamente corruptos por incapacidade governamental de organizar um sistema racional de apoio parlamentar a projetos do executivo (que nem existem racionalmente num governo marcado pela inépcia dos principais mandatários).
Estamos, assim, no pior dos mundos: a never ending corruption machine...
Até quando a cidadania consciente vai permitir que o jogo se reproduza?
Finalizo, dizendo que ele é infenso a qualquer coloração partidária ou ideológica: o assalto aos recursos públicos por bandos, matilhas, enxames ou maltas organizadas de meliantes "públicos" se dá e continuará se dando indiferente ao fato de o governo central ser ocupado por forças supostamente de esquerda, de centro ou de extrema-direita. Todas elas são coniventes, concordantes, convergentes com o objetivo principal de assaltar o eleitor-cidadão-contribuinte compulsório.
Isso significa que o próximo dirigente será tão corrupto como já registramos em casos clamorosos de assalto direto aos recursos públicos nos últimos anos, num crescendo organizado de regras burocráticas e aparentemente legais (mas não legítimas) para facilitar a extorsão privada pelos "representantes" do povo?
Não necessariamente, mas o "sistema" tem sido pacientemente construído ao longo dos anos para justamente permitir esses vícios privados, ao mesmo tempo em que se proclamam virtudes públicas. É por isso que eu chamo a classe política de "estamento", pois ela já superou aquelas elaborações formais dos marxistas lukacsianos de "classe em si" ou "para si". Ela já constitui uma categoria à parte da burocracia civil das corporações públicas: ela já se tornou um quisto entranhado no corpo da sociedade, aberto aos novos "talentos", mas todos estes talentos direcionados a preservar e ampliar privilégios privados.
A principal desigualdade brasileira atualmente, ao lado das iniquidades sociais bem conhecidas e tradicionais – incluindo o chamado "racismo estrutural", um conceito ambíguo –, é justamente a que separa o brasileiro comum daqueles ungidos por cargos públicos obtidos nas urnas regulares.
Invertendo a famosa expressão de Gilberto Amado – para quem, na República Velha, as eleições eram falsas, mas a representação verdadeira –, atualmente as eleições são perfeitamente verdadeiras, mas a representação é completamente falsa.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4162: 23 maio 2022, 2 p.