Reflexões ao léu, 7: A Pequena
Estratégia do Brasil
Paulo Roberto de Almeida
Andava com saudades de
minhas “reflexões ao léu”, e com razão. De janeiro a março de 2011, como se
pode constatar pela lista imediatamente a seguir, eu elaborei uma série de
reflexões pouco refletidas, seis ao todo, que se destinavam apenas a impedir
que ideias esparsas, que de vez em quando “pousam” na minha cabeça, ou “passam”
pelo meu cérebro, se perdessem na imensidão conectiva dos neurônios não
utilizados ou na vastidão dos espaços em branco do meu cérebro. Geralmente são
frases, ou matérias inteiras, que eu leio na internet, que anoto eventualmente
em um dos meus Moleskines de algibeira, mas que depois não servem para mais nada,
a não ser, justamente, para esses pequenos textos que insistem em pulular na
minha frente, mesmo quando tenho milhares de outras coisas para fazer, a
começar pela leitura de coisas mais sérias, e pela escrita de ensaios idem. Em
todo caso, esses foram, com seus respectivos links para leitura, os seis
“exemplares” precedentes desta série, que ficou incompleta, desde mais de um
ano:
Pois bem, e por que retomo
agora a produção seriada, depois de mais de um ano de interrupção? Apenas
porque acabo de concluir uma apresentação que devo fazer na Maison de l’Amérique
Latine, terça-feira próxima, 22 de maio, aqui em Paris, para um público que
ainda desconheço quem seja – mas certamente será uma audiência rarefeita – a
convite de seu diretor, Alain Rouquié, ex-embaixador da França em Brasília,
grande conhecedor de nossa história política, do Brasil e da região, que ele já
teve a imaginação de chamar de “Occident Extrême”, o que não deixa de ser uma bonne trouvaille...
O tema que ele sugeriu foi
este: “Rio Branco et la
diplomatie brésilienne, d’hier et d’aujourd'hui”, que eu preparei sob forma de
apresentação em 25 slides (disponíveis no DropBox: http://dl.dropbox.com/u/4764310/2393RioBrancoMaisAmerLat.pptx).
Ao preparar essa palestra, fui naturalmente levado a tratar da estratégia do
Barão, em sua época, e a refletir sobre o que ele faria atualmente, se vivo
fosse, e encarregado, como se esperaria, das relações exteriores do Brasil. Negligenciando
o fato de que ele, quando vivo, já era quase um santo protetor da diplomacia
brasileira, uma personalidade incontrastável, incontestável, o “dono” da
política internacional do Brasil, além e acima de qualquer presidente, pode-se
imaginar que ele atuaria segundo as instruções do presidente de turno, mas com
certa latitude de ação, em vista de sua reconhecida competência para certos
temas. Mas, vamos imaginar que ele apenas atuaria como um chanceler qualquer,
em face dos mesmos desafios ou agendas, que se colocariam a um chanceler, hoje,
nas circunstâncias atuais do Brasil, país que deixou de ser simplesmente em
desenvolvimento, e um instável crônico na América Latina, para se tornar um
“emergente”, um país dotado de pretensões a ter uma influência regional e
global. Pois bem, com base nessas premissas, vamos à estratégia do Brasil que
eu chamei de pequena.
A primeira estratégia
pequena do Brasil, na verdade mesquinha, seria a de ter exibido, durante os
oito anos da doutrina do “nunca antes neste país”, uma orientação de política
externa não exatamente nacional, mas mais propriamente partidária, para não
dizer sectária. Quando o Barão foi convidado para ser chanceler, cargo que ele
ensaiou recusar, seja por motivos de saúde, de dinheiro ou qualquer outro, a
primeira coisa que ele adiantou era a de que não vinha servir a qualquer
partido, a qualquer causa política, mas ao Brasil, em benefício da nação e de
seu prestígio na região e no mundo.
Cem anos depois, parece
que tivemos não apenas uma diplomacia estreitamente partidária, mas até um
chanceler que, talvez insatisfeito por ser “apenas” diplomata, resolveu se
inscrever num partido, ou melhor, no partido do poder, o que aparentemente
nunca lhe foi exigido como chanceler ou como funcionário de Estado. Mas, como
defensor de um governo partidário, ele resolveu se filiar a esse partido. Como
todo militante desse partido, como naquelas agrupações religiosas que exigem o
dízimo, tem de contribuir com sua cota de boa vontade financeira, o mesmo
chanceler escolheu ser conselheiro de algumas coisas, para arredondar o
salário, já que o Brasil é hoje um país caro (talvez em função de algumas
políticas de pequena estratégia que o mesmo partido aplica). O Barão,
provavelmente, desprezaria gestos como esse.
A segunda estratégia
pequena que o Barão lamentaria, se hoje contemplasse a diplomacia dos oito anos
do “nunca antes”, seria justamente essa tal de “diplomacia Sul-Sul”. O Barão
nunca compreenderia, e nunca admitiria, como se consegue ser tão reducionista,
tão simplista, tão estreito geograficamente nas escolhas de relacionamento
internacional, ele que sempre se bateu para equilibrar as relações do Brasil
entre a velha Europa, os EUA emergentes, e a América do Sul, todos tão
presentes em nossas relações imediatas. A despeito dessa “aliança não escrita”
com os EUA, de que falam alguns acadêmicos, o Barão, na verdade, nunca se
deixou prender, ou enredar, numa relação exclusiva, ou privilegiada, com qualquer
sócio maior, mas procurava sempre manter equidistância dos grandes centros de
poder, das velhas potências coloniais – mas ainda agressivamente imperialistas
– e da nova potência que despontava no hemisfério – e já agressivamente
imperialista, precisamente. Menos ainda ele compreenderia que o Brasil só
tivesse olhos para o seu entorno imediato – claro, porque a África não
“existia”, dominada que era pela Europa, e que a Ásia também se debatia na
colonização direta e indireta das mesmas potências – e descurasse por completo
das relações com aqueles que eram nossos principais mercados e fornecedores de
capitais. Ele sorriria com certa complacência antes essas propostas de “nova
geografia comercial internacional”, sabedor que, em matéria de comércio, toda e
qualquer geografia é boa, desde que se consiga realizar todos os intercâmbios,
nos dois sentidos, que interessariam ao Brasil.
Justamente, mesmo se ele
tivesse de administrar uma “estratégia Sul-Sul” para o Brasil – fatalidade
lamentável que ele certamente se escusaria por completo de iniciar – ele jamais
se permitiria ser complacente, leniente, inconsequente ou descuidado em relação
aos direitos do Brasil. Ele jamais permitiria, por exemplo, que tripudiassem
injustamente sobre nossas exportações – como infelizmente ocorre muito
frequentemente com certo vizinho arrogante – ou que, ao arrepio de tratados
bilaterais e de contratos internacionais, outros vizinhos inconsequentes
invadissem nossas propriedades legítimas para esbulhar-nos de nossos direitos,
rasgando unilateralmente compromissos que tinham sido solenemente contraídos
anteriormente. Por muito menos ele fez deslocar tropas para proteger nacionais
ameaçados de maus tratos; ainda que não fosse o caso de fazê-lo em todas as
circunstâncias, o Barão certamente teria sido bem mais vigoroso na reação a
certos atos de expropriação ilegal. Por exemplo: ainda que confrontado a uma
declaração inevitável de expropriação de bens nacionais, ele JAMAIS assinaria
uma nota na qual se reconhecia o direito soberano de outro país de, sem a
cortesia de sequer um alerta preliminar, expropriar sem negociações ou consulta
prévia propriedades nacionais, em total desrespeito às normas do direito
internacional e à letra de tratados que constituíam obrigações para as duas
partes. Ele certamente consideraria certas atitudes registradas nesses tempos
caóticos de diplomacia confusa não só como marcas de uma pequena estratégia,
mas como uma demonstração cabal de uma estratégia vergonhosa.
A mais forte razão, o
Barão se guardaria escrupulosamente, e faria com que o seu presidente também
observasse esse tipo de recato, de jamais interferir nos assuntos políticos
internos de outros países, seja demonstrando apoios eleitorais indevidos, seja
adiantando preferências ideológicas ou ainda rompendo normas e costumes de
direito internacional e de relações diplomáticas. A melhor forma de manter boas
relações com quaisquer vizinhos – mesmo os mais turbulentos – e com todo e
qualquer país da comunidade internacional é manter reserva total quanto aos
assuntos internos desses outros países, mesmo quando se possa, em privado,
manter preferência por um outro personagem da vida política que possa ter
influência nas relações com o Brasil. Expressar publicamente interesse nesse
tipo de assunto é a mais pequena estratégia que o Barão poderia conceber, e
isso ele deixou registrado em vários escritos públicos.
Finalmente, o Barão
tampouco consentiria em dividir o processo de tomada de decisão em múltiplas
cabeças, em fracionar o comando da diplomacia em diversos centros independentes
de formulação e de execução de uma política nacional, como deve ser a política
internacional de um país. Consciente, provavelmente, de que a política externa
é uma espécie de política interna por outros meios, e sabedor de que a
diplomacia, como a arte da guerra, exige unidade de formulação, de decisão e de
implementação das ações requeridas, ele obstaria por completo a qualquer
fragmentação da atuação diplomática do Brasil em unidades separadas de atuação.
Já ao assumir a chefia do Ministério, e confrontando-se com a provecta figura
de Cabo Frio, ele apressou-se em inaugurar um busto em homenagem a essa
magnífica figura do Império, como forma de afastá-lo dos assuntos correntes,
encaminhando-o a uma merecida aposentadoria que ainda tardou a acontecer.
Independentemente desses dissabores, ele jamais consentiria, por exemplo, que
dirigentes partidários, representantes de interesses especiais, neófitos palacianos
ou quaisquer outros aprendizes de diplomatas lhe viessem sugerir esta ou aquela
política em matérias que fossem de sua competência exclusiva. Como “general” da
diplomacia, ele sabia que comando não se divide: ou se assume, ou se assiste a
confusão predominar em temas que têm a ver com a segurança nacional.
Enfim, falamos da “pequena
estratégia” que o Barão não teria, e não poderia ter, para as relações
internacionais do Brasil, cem anos depois de sua morte, se por acaso voltasse
ao nosso convívio; faltou falar, positivamente, da grande estratégia que ele
poderia exibir na atualidade. Mas isso fica para uma outra ocasião...
Paris, 2394: 18
Maio 2012