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terça-feira, 12 de novembro de 2019

Ideias, Gazeta do Povo: rejeicao da ditadura militar e de todas as ditaduras

O que a esquerda não conta sobre a ditadura militar

Gazeta do Povo, 12/11/2019

A Ditadura Militar instalada no Brasil em 1964 faz parte dos livros de história, mas também do debate político diário no Brasil. E até hoje é um tópico hipersensível tanto para esquerda como para a direita.
A Gazeta do Povo evidentemente não apoia qualquer tipo de governo que não preza a democracia. Em suas convicções, o jornal deixa claro que "A democracia é a única forma de governo que respeita plenamente a dignidade humana e permite aos seus cidadãos desenvolver ao máximo as suas potencialidades." Em várias reportagens, revelou como o período ditatorial fez mal ao país, deixando um legado de hiperinflação, corrupção, crime e violência urbana. Houve casos escabrosos, com os quais nenhum ser humano pode compactuar, como a tortura de crianças, de opositores políticos, e até o sequestro de bebês. Também mostrou como nem todos os que se opuseram à ditadura eram comunistas. E a prisão e tortura de uma freira , sem provas. Sendo bem claro: a ditadura militar brasileira não deve ser comemorada.
Ou seja, por aqui nunca se passou pano para o autoritarismo. Por isso mesmo, é preciso abordar algo que raramente ou quase nunca é mostrado com a devida ênfase: a esquerda que combateu a ditadura militar brasileira não queria democracia. O grande objetivo era implantar outra ditadura, de inspiração comunista. 
Embora os guerrilheiros sejam retratados frequentemente como heróis românticos, jovens que buscavam a liberdade, o regime pelo qual lutavam no Brasil já havia matado milhões ao redor do mundo, seja nos gulags soviéticos, nos campos chineses, na ilha-prisão cubana, na monarquia comunista da Coreia do Norte, e na carnificina cambojana
Não estamos falando de teorias da conspiração. São relatos dos militantes de esquerda que pegaram em armas naquela época. “O objetivo imediato era derrubar a ditadura militar. O objetivo de longo prazo era estabelecer uma área libertada, de caráter comunista”, conta Renato Tapajós, cineasta e escritor que participou de um desses grupos armados, a Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil.
A meta era a ditadura do proletariado. A ideia de consolidar uma democracia só surgiu depois de 1979, com a anistia”, afirma a historiadora Beatriz Kushnir. “A ditadura do proletariado iria instaurar uma sociedade em que a pirâmide social fosse invertida.”
Um dos maiores facínoras do período era Carlos Marighella , que ganhou uma hagiografia cinematográfica dirigida por Wagner Moura. Ele até hoje é tratado como herói por alguns setores da esquerda, mesmo que tenha defendido a luta armada mesmo antes do endurecimento do regime militar. Marighella escreveu o infame 'Mini Manual do Guerrilheiro Urbano', no qual propunha execuções (de “um espião norte-americano, um agente da ditadura, um torturador da polícia, ou uma personalidade fascista do governo”, etc.), sequestros (para trocar por guerrilheiros presos) e, finalmente, o terrorismo, mesmo que deixasse vítimas civis pelo caminho — o que de fato aconteceu. Em entrevista a uma revista francesa, Marighella chegou a dizer que o Brasil se tornaria um novo Vietnã, “dezenas de vezes maior”.
Marighella ainda foi o criador da Aliança Libertadora Nacional, um grupo armado cujo objetivo era justamente o de instaurar um “governo popular revolucionário” no Brasil. O que Marighella pregava era tão violento que ele conseguiu ser expulso do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Nem os próprios membros do grupo eram poupados da sanha assassina: militantes considerados traidores ou dissidentes eram executados nos chamados “justiçamentos.
Os justiçamentos, aliás, dão um bom vislumbre do que seria o Brasil sob domínio comunista. Em países como a União Soviética e a China, era comum que membros da elite do Partido Comunista fossem eliminados quando caíam em desgraça, mesmo que fossem inocentes. Entre os vários grupos armados da esquerda no Brasil, a mesma prática foi utilizada, já que ideologias genocidas têm muito em comum
Uma das vítimas foi o estudante de sociologia Márcio Leite de Toledo, de 26 anos. Toledo foi enviado a Cuba para treinamento de guerrilha e voltou ao Brasil clandestinamente. Após o retorno, na mesma época em que comandantes da ALNforam capturados pelos órgãos de segurança do regime militar, Toledo passou a discordar das táticas da organização. Como resposta, o comando da ALNconsiderou Toledo perigoso para a organização e um grupo de quatro guerrilheiros decidiu pela execução dele.
A organização não fez segredo do homicídio e anunciou em um comunicado: “A Ação Libertadora Nacional (ALN) executou, dia 23 de março de 1971, Márcio Leite Toledo. Esta execução teve o fim de resguardar a organização. Uma organização revolucionária, em guerra declarada, não pode permitir a quem tenha uma série de informações, como as que ele possuía, vacilações desta espécie, muito menos uma defecção deste grau em suas fileiras”.
Outro caso semelhante envolveu Francisco Jacques Moreira de Alvarenga, da Resistência Armada Nacionalista (RAN). Alvarenga foi executado com quatro tirospor um comando da ALN em 28 de junho de 1973, na sala dos professores do colégio Veiga de Almeida, no bairro carioca da Tijuca, onde dava aula de história.
São mortes que caíram no esquecimento, porque mostram a face mais cruel e covarde da esquerda brasileira, e não se encaixam na versão épica e heróica que muitos tentam criar da guerrilha armada. Esses assassinatos a sangue frio não entraram na conta da Comissão da Verdade, criada pela presidente Dilma Rousseff para apurar as mortes durante o regime militar.
É possível afirmar que os justiçamentos e a morte de inocentes estão no DNA do comunismo brasileiro. Já em 1936, a jovem menina Elza foi sufocada e morta baseada numa tênue desconfiança que outros membros do Partido Comunista tinham a seu respeito. Seu corpo foi escondido no quintal da casa. Luiz Carlos Prestes — o "Cavaleiro da Esperança" — foi condenado pela morte da jovem (foi ele que ordenou a execução), mas poucos anos depois anistiado. 
Olga Benário (esposa de Prestes, judia alemã, deportada para a Alemanha nazista, morta na câmara de gás) foi também vítima de injustiças, desta vez por parte do regime fascista de Getúlio Vargas, que a entregou aos nazistas. Mas enquanto a história de Olga ganhou atenção mundial, foi objeto de filmes com orçamentos milionários, a de Elza segue no oblívio. Nem a imprensa, nem mesmo militantes (de direita ou de esquerda) comentam sua história.
Outra vítima cuja história não inspirou filmes, seriados ou livros é a do jovem soldado Mário Kozel Filho, que se estivesse vivo teria completado 70 anos em julho deste ano. Sua vida foi roubada por guerrilheiros de esquerda aos 19 anos, em 26 de junho de 1968. Uma caminhonete lotada de explosivos foi acelerada em direção ao Quartel General do 2º Exército, em São Paulo. Kozel teve o corpo despedaçado pela explosão
Os pais de Kozel, um jovem de origem simples, só passaram a ter direito a uma pensão em 2003, no irrisório valor de R$ 330. Foi atualizado para R$ 1.140 em 2005. Mas o casal só foi informado em 2007, pela imprensa, a respeito dos valores. Em comparação, desde 1993 a viúva do guerrilheiro Carlos Lamarca recebe uma pensão de R$ 9.963,98, posteriormente atualizada para R$ 12.152,61. Lamarca era integrante do grupo que realizou o atentado, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Atenciosamente,
Jones Rossi, editor de Ideias

sábado, 2 de novembro de 2019

Sobre leões e hienas: O Brasil na América do Sul - Leonardo Coutinho (GP)

Sobre leões e hienas

O presidente da Bolívia, Evo Morales, em coletiva de imprensa em La Paz, 31 de outubro de 2019

Leonardo Coutinho
Gazeta do Povo, 1/11/2019

A Polícia Federal realizou uma operação em três estados brasileiros com o objetivo de desmontar uma organização criminosa especializada em lavagem de dinheiro e migração ilegal. Em resumo, era o seguinte: os bandidos traziam para o Brasil pessoas do Afeganistão, Bangladesh, Índia, Nepal e Paquistão e depois os despachavam para a fronteira sul dos Estados Unidos. Os criminosos aproveitavam-se da frouxidão das leis migratórias brasileiras para transformar o país em uma escala até os Estados Unidos.
No Brasil, não precisa nada. Literalmente nada. Estou falando sequer de um passaporte ou documento simples de identidade para que um imigrante possa desembarcar em um de nossos aeroportos, fazer os procedimentos migratórios e ingressar no país. As leis que regulamentam os pedidos de refúgio consideram que basta uma autodeclaração – que inclui nome, idade e nacionalidade – para permitir o ingresso, um protocolo para acompanhar e, acreditem, um documento de identidade.
Quando redigiram a lei, as autoridades brasileiras consideraram que uma pessoa que embarca em qualquer aeroporto internacional para chegar ao Brasil está passando pela mesma situação extrema daquelas que atravessam desertos e fronteiras a pé, fugindo de um massacre iminente, como vimos nas imagens recentes de curdos fugindo da Síria. É evidente que nenhuma companhia aérea do planeta permitiria a viagem de um indocumentado. Mas, na ficção brasileira tudo pode.
A investigação no Brasil foi possível porque nos Estados Unidos identificaram um problema. Imigrantes provenientes de países com alto nível de risco para a segurança nacional, por serem uma maternidade de terroristas, começaram a ser barrados tentando se mimetizar entre os latinos que tentam atravessar a fronteira guiados por coiotes. Vários desses presos relataram terem iniciado a jornada pelo Brasil.
Em 2018, os Estados Unidos estiveram diante de um problema inédito. Caravanas com milhares de imigrantes centro-americanos marcharam com o objetivo de atravessar na marra a fronteira americana. No final do ano passado, escrevi um artigo que trazia as provas de que nas caravanas estavam 232 infiltrados. Pessoas provenientes da Ásia, Oriente Médio e África – os chamados “Special Interest Aliens” (SIA) –, que se valeram do caos para tentar ingressar nos Estados Unidos. Entre eles, estavam dezenas de pessoas que passaram antes pelo Brasil.
Recentemente, o Ministério da Justiça apresentou novas regras para melhorar o controle migratório no Brasil. Não faltou quem reclamasse acusando o ministro Sérgio Moro de descriminação, xenofobia e dos mais populares xingamentos políticos atuais, fascista. Sem fazer a menor ideia do que se passa (ou no pior dos casos sabendo muito bem), o pessoal da resistência acha que para ser um país bacana, o Brasil tem que ser um país bocó.
Em 2007, ainda no seu segundo ano de mandato, o boliviano Evo Morales roubou, sob a justificativa de "nacionalizar", duas refinarias da Petrobras. O Brasil, então sob o comando de Lula, assistiu impassível a pilhagem do patrimônio que é de todos nós brasileiros. Treze anos depois, Lula deixou escapar, em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, que a operação havia sido comunicada antecipadamente por Morales e avalizada por ele.
Friamente, se não fosse a pilhagem do patrimônio da Petrobras, Evo Morales poderia ser considerado apenas um problema dos bolivianos. Mas tal como Hugo Chávez e depois Nicolás Maduro, o presidente boliviano é uma fonte inesgotável de instabilidade. A Bolívia é um dos três produtores mundiais de cocaína, ao lado de Colômbia e Peru. Os bolivianos são responsáveis pela maioria da droga que chega ao Brasil. O país de Morales se converteu na principal base dos brasileiros PCC no exterior e principal provedor de cocaína e crack para o tráfico no Brasil.
Quem é Evo Morales? Ele é muito conhecido por seu papel como presidente da Bolívia. Posto que ele conquistou em 2005 e não está disposto a largar. Além de comandar o país, Morales nunca deixou de chefiar um conjunto de associações de produtores de folhas de coca da região do Chapare, epicentro da produção de matéria-prima para a produção de cocaína. Para simplificar, Morales está para o tráfico de cocaína como o líder dos produtores de trigo está para indústria da farinha. Indissociáveis.
Em 2018, foram registrados 57.341 homicídios no Brasil. Diversos especialistas em segurança estimam que o número de ocorrências que possuem relação direta ou indireta com o tráfico pode chegar a 80% do total. Não existe um número preciso. Mas considerando que ele é o que mais chega próximo da realidade, é possível afirmar que 126 morrem naquele ano vítimas do tráfico. A Bolívia está na origem de um dos maiores problemas brasileiros.
Entre 2009 e 2014, o governo da Bolívia mentiu pelo menos 100 vezes para a diplomacia brasileira alegando que usaria o espaço aéreo nacional para voos de ajuda humanitária e outras atividades do gênero. Segundo uma denúncia apresentada por um ex-piloto que atuou diretamente nesses voos, o que era levado no interior dos aviões era cocaína pura embarcada em uma base militar na Bolívia e entregue na Venezuela e depois em Cuba.
Há duas semanas, uma parcela significativa dos bolivianos iniciou uma luta solitária contra o presidente socialista. Morales declarou-se vitorioso para um quarto mandato, em um processo eleitoral nebuloso sob suspeitas evidentes de fraude.
A crise pós-eleitoral na Bolívia era previsível, pois não faltaram sinais do colapso institucional do país. Morales seguiu os passos de Hugo Chávez em todos os elementos que levaram à implosão da Venezuela. Mudou a constituição, o nome e a bandeira do país, violou as regras constitucionais para se reeleger indefinidamente e torrou as reservas nacionais para manter uma taxa de câmbio artificial e políticas assistencialistas.
O Itamaraty soltou uma nota adiando o reconhecimento da vitória de Morales, preferindo uma auditoria que está sendo negociada com a Organização dos Estados Americanos (OEA). O presidente Jair Bolsonaro deu um passo atrás. Disse não querer problemas com o vizinho. Mas se tratando de Morales, não basta querer.
Na savana geopolítica latino-americana, o Brasil é o mais poderoso dos leões. Mas por falta de convicção se comporta como o leão caquético do vídeo-meme que tocou fogo no debate político no início da semana. As hienas não veem problema algum em nos cercar e dar umas mordidinhas. Está na hora do Brasil se ver no espelho. Descobrir seu tamanho, habilidade e complexidades. O Estado brasileiro tem formas não-violentas de mostrar suas garras e dentes. Algumas delas passam pela diplomacia e legislação moderna e rígida. Pelo contrário continuaremos sendo vistos como o leão moribundo que não só perdeu a liderança do bando, como está um passo de ser devorado.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Desconstruindo Paulo Freire (mais uma vez) - Martim Vasques da Cunha (GP)

Novos livros tentam esconder a insignificância de Paulo Freire no mundo das ideias

Martim Vasques da Cunha

Gazeta do Povo, 22/10/2019 

“Paulo Freire é mais um triste exemplo da ‘tirania dos especialistas’ que nos corrói há tempos”.
Quem já leu uma biografia de Paulo Freire, leu todas.
É o caso de dois livros lançados recentemente sobre o “patrono da educação brasileira” (segundo a lei assinada por Dilma Rousseff há alguns anos): O Educador – Um perfil de Paulo Freire, escrito pelo “professor e ativista social” Sergio Haddad (Todavia, 256 páginas), e Paulo Freire Mais do que Nunca – Uma biografia filosófica, do “professor de filosofia” Walter Kohan (Vestígio Editora, 272 páginas).
As classificações de ambas as publicações, ao tentarem ser “um perfil” ou “uma biografia filosófica”, indicam alguma tentativa de objetividade, mas trata-se de um equívoco. Elas não são nem uma coisa, nem outra. Na verdade, não passam de hagiografias.
Em ambos os casos, Paulo Freire é tratado como um santo secular. Não há uma mácula em sua trajetória, nenhuma ambiguidade em seu caráter – e até mesmo as falhas que possam existir em seus empreendimentos mais famosos, em termos educacionais (como a lendária alfabetização de 40 horas em Angicos, em 1963, e a frustrada implementação na Guiné Bissau, colônia portuguesa africana, a partir de 1975), são redimidas em função de uma intenção indiscutível: a da procura pela igualdade.
Um exemplo é o modo como Haddad e Kohan lidam com termos como “democracia”, “coletivização”, “consciente”, “antidemocrática” – sempre com o prisma progressista. Na ótica particular de Haddad, por exemplo, ele aborda os principais pontos do chamado pensamento de Freire como se fossem uma consequência benéfica do nacional-desenvolvimentismo incubado no famoso Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Segundo Haddad, o autor de Educação e atualidade brasileira (a tese de doutorado que seria a base da futura “pedagogia do oprimido”)
“bebia das mesmas influências dos intelectuais do Iseb, em especial da análise da realidade brasileira feita por Álvaro Vieira Pinto e [Alberto] Guerreiro Ramos. Como eles, acreditava que o país estava na transição entre um mundo atrasado para um mundo moderno, mas sua preocupação como educador era outra: como preparar a parcela despossuída da população para participar desse processo de desenvolvimento de forma ativa e consciente?
Ao analisar a escola brasileira, Paulo avaliou que havia nela uma tradição antidemocrática. Era uma escola distante da realidade dos pais e dos alunos, sem espírito solidário, marcada pelo individualismo e por uma metodologia em que a grande maioria dos professores ditava aulas, sem discutir ideias – era, enfim, uma escola que não atendia as necessidades de seu tempo”.
“Atender as necessidades do seu tempo” significa, no glossário de Sergio Haddad (e, por extensão, de Walter Kohan), promover a igualdade entre o aluno e o professor por meio de um processo revolucionário que sintetizaria o marxismo com o catolicismo de esquerda (via Teologia da Libertação) – e o qual teria como intenção principal a libertação do sujeito oprimido por aquilo que Freire chamava de “educação bancária”.
Esse tipo de educação se referia àquela que, de acordo com o próprio Freire, considerava que “o educador é sempre o que educa, e o educando o que é educado; o educador é o que sabe, e os educandos os que não sabem; o educador é o que pensa, os educados são os objetos pensados; o educador é o que fala, os educandos os que escutam docilmente; os educadores sujeitos, os educandos objetos”.
A frase é tortuosa porque mostra um gosto pela imprecisão conceitual em função do jogo de palavras típico de quem vive (e se articula) na famosa “langue de bois” da terminologia marxista-burocrática. No fundo, trata-se de algo pior: estamos lidando, aqui, com a visão de mundo utópica que, na prática, sempre deformará a realidade.
Essa utopia freiriana teria como base existencial a noção do personalismo, inspirado na obra do filósofo cristão francês Emmanuel Mounier. Segundo Roque Callage Neto, no texto “Paulo Freire: uma teoria e metodologia em educação e sua eventual relação com o construtivismo” (o melhor ensaio da polêmica antologia Desconstruindo Paulo Freire, organizada pelo historiador Thomas Giulliano):
O personalismo de Mourier indaga sobre a consciência, a liberdade e o infinito. Entende que a consciência é intencional, que a liberdade existe na autonomia, e que a significação do infinito é dada historicamente. É uma doutrina ‘que afirma o primado da persona humana sobre as necessidades materiais e sobre aparelhos coletivos que sustêm seu desenvolvimento’, e seu principal aspecto é associar a noção de consciência à de comunidade, à de comunicação interpessoal e à de comunhão. Propunha uma revolução comunitária alternativa aos erros do comunismo soviético e do liberalismo capitalista, que traria a sociabilidade ideal do humanismo, a justiça, a equidade material e a liberdade individual. Mas esta seria diferente da individualidade liberal, pois crê que a pessoa é portadora de uma compreensão autônoma, que só pode ser pensada em comunicação com as outras percepções. Agindo num mundo comunitário pela comunicação das consciências, comunica a existência com outras. A revolução comunitária seria um processo de conscientização por toda a sociedade, com o meio fundamental da educação pelo qual as consciências tomam ciência crítica da realidade à sua volta. Ela deve ter pensada como tutela do próprio povo e não do Estado.
Paulo Freire se aproveitou desse personalismo – na verdade, algo mais próximo de um “populismo conservador” “à la” Christopher Lasch – e retirou toda a possível transcendência que havia na criação da comunidade, expurgando Deus da equação e substituindo-o pela “radicalidade cristã do progresso” que, em outras palavras, seria “o impulso profundo e contínuo de uma ascensão do homem com a missão gloriosa de ser o autor da própria libertação”, conforme se lê logo na abertura do best-seller que o tornou uma celebridade, Pedagogia do Oprimido (1974).
Outra “canibalização” que Freire fez de uma teoria que não era sua foi a do “construtivismo pedagógico” que, na definição de Callage Neto, “valoriza a ação do estudante como construtor de seu conhecimento e tira do professor a posição de detentor incontestado do saber, o que não desvaloriza os chamados conteúdos escolares. O professor pode ensinar discutindo a elaboração e apresentando as pistas para a criança chegar ao conhecimento, fornecendo outros que o sustentam, e pode, também, abordar de forma expositiva ou não perspectivas e procedimentos necessários à produção dos conhecimentos”.
Freire queria provocar a tomada de consciência em adultos malformados com a clara meta de criar “artífices da revolução”. Por isso perverteu o que era a “consciência”, no sentido construtivista, para, de acordo com o raciocínio de Callage Neto, uma
invenção e reinvindicação ocasionadas, é verdade, por lacunas das primeiras reflexões e evidenciadas por representações em analogias com fatos gerais e específicos sociais e políticos – tratados de forma empírico-indutiva. Freire está preocupado com o aprendizado não repetitivo e com a conscientização de temas referenciais que se revelam à consciência e depois se ampliam comunitariamente, que conduzem à alfabetização e tomam a forma política. Trabalhando com saberes tácitos que representam o cotidiano do educando e se explicitam dentro dos exemplos temáticos, observa a tomada de consciência como uma analogia entre o conhecimento de proposituras gramaticais e as evidências de atuação social e política dos educandos”.
O problema de usar a analogia como método é que, como bem observou o francês Jacques Bouveresse, ela torna-se um procedimento duvidoso, principalmente quando o seu convencimento “repousa sobre dois princípios simples e particularmente eficazes nos meios literários e filosóficos: (1) destacar sistematicamente as semelhanças mais superficiais, apresentando isso como uma descoberta revolucionária; (2) ignorar de modo igualmente sistemático as profundas diferenças, exibindo-as como detalhes insignificantes que só podem interessar e impressionar os espíritos pontilhosos, mesquinhos e pusilânimes”.
Dessa forma, Freire usava e abusava da sua “dialética simbólica”, sem se preocupar se suas ideias tinham alguma relação concreta com a realidade. Nem mesmo Sergio Haddad consegue disfarçar esta lacuna, em sua hagiografia disfarçada de relato biográfico, quando detalha a principal obsessão de Freire em seu empreendimento de alfabetização os moradores da Guiné Bissau, ao insistir que, na sua correspondência com Mario Cabral [comissário de Educação na Guiné-Bissau],
o português não seguisse como a língua oficial do país. O crioulo lhe parecia o idioma mais indicado: além de ser falado por mais da metade da população, tinha nascido da fusão do português com diversas línguas nacionais, o que garantia a expressão da cultura africana, enquanto o português havia sio imposto nos tempos coloniais. Em certa ocasião, em uma mesa de debates com Luis Cabral [o primeiro presidente da Guiné- Bissau, entre 1973 a 1980], Paulo, para defender o seu ponto de vista, apontou para a cabeça do presidente e disse que ele pensava com o que estava lá dentro, o crioulo. A questão, no entanto, esbarrava em dificuldades práticas, uma vez que o crioulo não era uma língua com grafia estabelecida, condição importante para o processo de alfabetização.
Anos depois, em uma entrevista de 2002, o comissário Mario Cabral
justificou a alfabetização em língua portuguesa na Guiné-Bissau argumentando que a escolha viabilizaria uma melhor comunicação com outros países, já que as mais de trinta línguas faladas na Guiné-Bissau não eram escritas. Para contemplar parte da diversidade linguística do país, pretendia estabelecer seis línguas oficiais incluindo o português e o crioulo, o que cobriria cerca de 80% da população do país. Mas as dificuldades para concretizar esse plano eram imensas.

Fracasso como Secretário de Educação

A disparidade entre a utopia crioula e a língua portuguesa que, por mais colonial que fosse, ainda assim representava uma parte do real era algo evidente até mesmo para aqueles que apoiavam as ideias de Paulo Freire. Outro momento biográfico que marca esta fissura, retirado do próprio texto de Haddad, ocorre quando Freire se tornou Secretário Municipal de Educação da cidade de São Paulo, em 1989, quando Luíza Erundina foi eleita prefeita pelo Partido dos Trabalhadores. Se o que parecia ser antes um momento de triunfo – pois era a consagração política de um pensador que, durante quinze anos, permaneceu à margem do poder e no exílio – transformou-se logo em um fracasso:
Em meados de 1990, um ano e meio depois da sua posse, três funcionários em cargos de confiança foram demitidos. Um deles, o vice-presidente da Afuse – Sindicato dos Funcionários e Servidores do Estado de São Paulo, Benedito Testa, encaminharia ao Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores um documento interno criticando a gestão do secretário, afirmando que os resultados eram escassos, que a equipe de governo e seus principais assessores não tinham vivência no serviço público e que as escolas continuavam mal equipadas e sem segurança. Afirmava ainda que o projeto pedagógico não correspondia às expectativas da rede municipal de ensino. Outro assessor demitido, Fidelcino Rodrigues de Oliveira, enviou uma carta ao jornal O Estado de S. Paulo, na qual criticava o projeto pedagógico interdisciplinar pensado por Paulo. ‘Esta proposta é muito complexa, embrionária, e há falta de educadores na secretaria em condição de realizar este projeto. O sentimento dos professores, especialistas e funcionários é de abandono e decepção’, escreveria.
Mesmo recebendo um aparente apoio formal do PT, os ataques contra Freire continuaram sem cessar, simbolizados especialmente em uma matéria intitulada “Reprovado, Paulo Freire deixa a Educação” a qual vazava a informação que ele sairia do cargo:
Com declarações de Nilza Fernandes de Oliveira Santos, mãe de dois alunos da rede [pública], e do presidente do Sindicato dos Professores e Especialistas do Ensino Municipal, Claudio Gomes Fonseca, o texto dizia que Paulo não havia cumprido o objetivo de se aproximar de alunos e de professores. ‘Com suas viagens e seu desinteresse pelos debates, ele não cumpriu as promessas, [...] além de não usar seu prestígio para tentar resolver antigos problemas que vão continuar depois de sua saída’, diz a reportagem. Durante o seu período no cargo, Paulo teria viajado nove vezes ao exterior, em um total de 102 dias de ausência do posto. Retratando um funcionário descomprometido com o seu trabalho, o texto de Marcos Emílio Gomes [jornalista que assina a matéria] afirmava que Paulo havia abandonado uma reunião para ir ao cinema com a esposa, assim como havia deixado centenas de pessoas esperando por ele em duas palestras – ele simplesmente não estaria com vontade de falar. Algumas das informações veiculadas na matéria foram contestadas posteriormente por assistentes de Paulo.
A última observação é digna de um biógrafo que tenta preservar, a qualquer custo, a aura de santo do seu objeto de pesquisa. Porém, é mais do que isso: trata-se da tendência intrínseca ao nosso caráter brasileiro de viver a própria educação não como um princípio ético e sim como um princípio estético. As consequências disso são terríveis para o futuro do país, conforme apontou Mario Vieira de Mello em O conceito de uma educação da cultura (1984) neste trecho longo, mas esclarecedor:
No Brasil o fenômeno da educação interessa não tanto como processo autônomo de valorização do homem, mas como meio, como instrumento para que sejam atingidos dois objetivos: o desenvolvimento do país e a implementação de um regime democrático. Negar, portanto, que existe um relacionamento direto de causa e efeito entre educação e democracia ou entre educação e desenvolvimento e pretender que a relação fundamental se exprime na equação educação-cultura é se insurgir contra a orientação dos educadores brasileiros e suscitar um certo número de questões inusitadas. Como definir a cultura brasileira? De que maneira poderá ela se relacionar com o nosso esforço educacional? No binômio educação-cultura a quem deverá caber o papel de fator determinante? – Não temos evidentemente uma resposta para essas questões e o máximo que podemos fazer no momento é ensaiar passos tímidos, hesitantes, em direções que ainda não foram exploradas. O Brasil antes de se tornar democrático e desenvolvido tem necessidade de afirmar-se como cultura. A inegável superficialidade que envolve a nossa vida intelectual e moral prejudicará sempre, inevitavelmente nossos esforços de democratização e de desenvolvimento; precisamos nos convencer de que é justamente essa superficialidade o maior obstáculo aos nossos propósitos de renovação. Não se constrói uma nação antes de eliminar uma tal deficiência. O Brasil não pode continuar apoiado sobre valores relativos e exteriores como índices de alfabetização, de crescimento econômico, de representatividade política. O Brasil não pode continuar sem os valores autônomos da cultura. Por mais longínquo que o ideal nos pareça, o Brasil, para se tornar a nação por que todos os brasileiros suspiram, precisará algum dia enveredar pelo caminho de interiorização de seu comportamento. Os males que nos afligem não são exteriores, são internos. Somos nós mesmos os grandes responsáveis pelo marasmo intelectual e moral em que vivemos e é esse marasmo que nos torna tão dependentes de circunstâncias e fatores externos. A decisão tomada por cada um de nós de assumir plena responsabilidade pelo malogro de nossas aspirações a um Brasil maior e melhor seria sem dúvida o primeiro passo a dar na eliminação desse jogo de empurra que consiste em responsabilizar o próximo pelos nossos fracassos como povo e como nação. Mas essa decisão não poderia ter senão o fruto de um longo processo de amadurecimento ético. A vida do brasileiro, todavia, passa ao longo desse processo. Nosso sistema educacional não prevê, como um de seus objetivos principais, o estabelecimento de medidas tendentes a favorecer esse amadurecimento. Nossa pedagogia não procura de forma alguma estimular o desenvolvimento de qualquer senso de responsabilidade e de autonomia individual. Confundimos habitualmente esse senso com o que costumamos entender pela expressão ‘virtudes cívicas’. Mas a diferença que existe entre uma coisa e outra é que a primeira é inexprimível e se manifesta indireta, mas continuamente em todas as ações que praticamos, ao passo que a segunda é uma peça de retórica só lembrada em solenidades públicas e ainda assim para marcar o seu caráter de exceção.

Paulo Freire e a "antieducação"

O agudo diagnóstico de Vieira de Mello é o pano de fundo para se entender a “antieducação” perpetrada por Paulo Freire e seus acólitos no tecido social brasileiro. Ao mesmo tempo, apesar de ter uma base evidentemente progressista, trata-se de uma “antieducação” que também se aplica na sua oposição reacionária, uma vez que ambos os escopos políticos se fundamentam no uso equivocado da analogia para manipular a consciência individual e torná-la apenas uma ferramenta desenvolvimentista a serviço deste “Deus Selvagem” que é o Estado brasileiro. E, como sempre acontece nesses casos, a liberdade interior que se manifesta pelo uso criativo da linguagem é deixada de lado.
Não à toa que Paulo Freire, quando estava no cárcere em 1964, logo após o Golpe Militar, tentou se dedicar à leitura de alguns clássicos da nossa literatura, mas logo esbarrou em alguns obstáculos cognitivos, descritos pelo próprio Sergio Haddad em sua hagiografia:
Caiu-lhe nas mãos o clássico Grande sertão: veredas. Incomodado com a linguagem de Guimarães Rosa, desistiu do livro e comentou com Clodomir [Santos de Morais, ativista político que era seu companheiro de cela] sua dificuldade com o estilo, o palavreado, o tom regional do romance. Surpreso, o companheiro explicou as circunstâncias que levaram aquela região entre o rio São Francisco e Goiás a manter uma espécie de dialeto próprio, o mesmo falado até então por sua mãe e alguns parentes que moravam ali. ‘Se você quiser, eu, com toda a satisfação, vou tratar de traduzi-lo’, propôs Clodomir, disposto a fazer anotações sobre as expressões idiomáticas no próprio livro. Paulo aceitou de imediato.
Parece ser uma anedota despretensiosa, mas revela muito bem o porquê de Paulo Freire ser mais um triste exemplo da “tirania dos especialistas” que nos corrói há tempos. Na sua ânsia de ensinar os outros a lerem para mudar o mundo, confundiu o espírito da letra com a letra em si, e não reconheceu que o importante não é apenas ler as palavras e saber o seu sentido, mas sim ler o mundo em sua incrível complexidade. E isso só a grande literatura pode fazer, uma literatura que não precisa necessariamente de um gênio linguístico como o de Guimarães Rosa – como podemos ver nos inúmeros exemplos da literatura de cordel e nos relatos orais dos habitantes de Canudos a respeito dos feitos de um Antonio Conselheiro ou de um Padre Cícero –, e sim de uma sensibilidade que nos impeça de nos transformar em pedras.
Pois, entre o pensamento e a sua expressão, há toda uma vida a percorrer. O que nos resta é a educação de uma pedra que falava somente com seus semelhantes e que, neste caso específico, é o “círculo dos sábios” a comandar o Brasil que conhecemos. Infelizmente, enquanto a biografia de Paulo Freire for tratada com importância exagerada tanto pela esquerda como pela direita (como acontece com os livros de Sergio Haddad e Walter Kohan), não saberemos o que fazer com um sujeito que, na verdade, sempre foi insignificante no verdadeiro mundo das ideias. E assim estaremos condenados, por um bom tempo, ao mais cruel dos subdesenvolvimentos – o do espírito que nega a tudo e a todos.

* Martim Vasques da Cunha é autor de Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (2012) e A Poeira da Glória (2015).

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Cinco ideias indefensáveis de Paulo Freire

Criador da Pedagogia do Oprimido via educação a serviço da causa revolucionária e elogiou a “capacidade de amar” de Che Guevara

Atualizado em 19 de setembro de 2019.
Durante décadas, Paulo Freire foi a referência incontestável da educação brasileira. Ainda hoje, ele não tem concorrentes em número de citações nas faculdades de Pedagogia. Mas, se merece crédito por ter chamado atenção para o problema do analfabetismo no país, Freire adotou um viés ideológico que já era problemático nos anos 1960 e não pode ser tomado como referência nos dias de hoje.
Veja cinco ideias indefensáveis que Paulo Freire apoia em seu principal livro, Pedagogia do Oprimido:
1) O mundo se divide entre opressores e oprimidos
Freire defende uma pedagogia “que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação”.
Ao adaptar a noção da constante luta de classes de Karl Marx, o pedagogo usa um esquema binário: os estudantes não teriam opção senão buscar sua liberdade diante dos opressores. A noção freiriana de libertação é pouco detalhada pelo autor, mas um detalhe da obra traz uma boa pista do que ele tinha em mente: a descrição apaixonada que ele faz do regime de Cuba – o próximo item da lista.
2) Che Guevara é um exemplo de amor
Quando Pedagogia do Oprimido foi escrito, os fuzilamentos sumários feitos em Cuba já eram notórios. O próprio Che Guevara havia admitido a prática do alto da tribuna das Nações Unidas. No entanto, Freire enxergava apenas qualidades no guerrilheiro convertido em ditador.
"O que não expressou Guevara, talvez por sua humildade, é que foram exatamente esta humildade e a sua capacidade de amar que possibilitaram a sua ‘comunhão’ com o povo. (...). Este homem excepcional revelava uma profunda capacidade de amar e comunicar-se", escreveu.
3) A educação deve estar a serviço da revolução
"O sentido pedagógico, dialógico, da revolução, que a faz 'revolução cultural' também, tem de acompanhá-la em todas as suas fases", propôs Freire.
A implicação é que o ensino deve estar a serviço da ideologia. A ideia de Paulo Freire abre as portas para a pregação política em sala de aula, com as vítimas de sempre: os alunos.
4) A família é opressora
Em Pedagogia do Oprimido não há qualquer menção ao papel da família na educação. O ensino é visto como uma tarefa do professor, subentendido o protagonismo do Estado nessa função. A lógica de Paulo Freire é esta: como a sociedade é opressora, a família reproduz os mecanismos opressores dentro de casa.
"As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo-culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições autoritárias, rígidas, dominadoras, penetram nos lares que incrementam o clima da opressão", diz um trecho do livro.
5) É preciso combater a “invasão cultural”
A educação, por definição, depende da transmissão de conhecimentos e valores acumulados ao logo da história. No Brasil, essa história vem sobretudo das grandes tradições da filosofia grega, do direito romano, da matriz cristã. Interpretar o ensino dessa tradição como uma “imposição de valores” a ser combatida significa isolar os alunos do contexto histórico do país onde vivem.
Freire quer os estudantes protegidos da “invasão”: "Neste sentido, a invasão cultural, indiscutivelmente alienante, realizada maciamente ou não, é sempre uma violência ao ser da cultura invadida, que perde sua originalidade ou se vê ameaçado de perdê-la", prega.
Entre os herdeiros ideológicos de Paulo Freire estão as correntes que defendem uma versão do Português sem erros nem acertos – o que, no fim das contas, prejudica a inserção de jovens carentes no mercado de trabalho.

O ogro estatal continua tomando vitaminas - Jéssica Sant'Anna (Gazeta do Povo)

Governo refaz as contas e agora soma 204 estatais federais – 45 fora do país

Jéssica Sant'Anna, Gazeta do Povo, 20/1/2019


Usina de Energia Eólica (UEE) em Icaraí, no Ceará (CE). SPEs de energia eólica da Eletrobras forma incluídas como subsdiárias.
O governo de Jair Bolsonaro recontou as empresas estatais federais, usando uma nova metodologia, e concluiu que elas eram mais numerosas do que se divulgava até então. A contabilidade oficial, que pelos critérios adotados no governo de Michel Temer registrava 133 companhias ligadas à União, agora indica que são 204. Dessas, 45 têm sede no exterior.
A União tem o controle direto – ou seja, é dona – de 46 dessas empresas. E há ainda 158 subsidiárias, ou seja, empresas sobre as quais a União tem controle indireto, pois pertencem a uma das seis "estatais-mães" (Petrobras, Eletrobras, Caixa, Banco do Brasil, BNDES e Correios). Antes da recontagem, o governo considerava ter 46 estatais de controle direto e 87 subsidiárias.
Até março, o governo tinha 208 estatais federais, das quais 162 subsidiárias, já considerando os novos critérios de contabilização. Desde então quatro empresas deixaram a lista. A BR distribuidora e Stratura Asfaltos, que pertenciam à Petrobras, foram vendidas; a Logigás foi incorporada pela própria Petrobras; e a BB Turismo, agência do Banco do Brasil, está em processo de liquidação (fechamento).
INFOGRÁFICO: Entenda o vai e vem no número de estatais do governo
Os dados atualizados foram divulgados em 11 de setembro, junto com a 11.ª edição do Boletim das Estatais Federais, um balanço trimestral sobre as empresas que estão na mão do Estado. O acréscimo substancial no número de subsidiárias – de 87 para 158 – é fruto de uma nova metodologia de classificação e também de um levantamento mais criterioso feito pelo Ministério da Economia.
O governo passou a considerar como subsidiárias as Sociedades de Propósito Específico (SPEs), o que antes não acontecia. As SPEs, como o próprio nome diz, são empresas criadas por meio de sociedade – parcerias entre entes públicos e/ou privados – com um fim específico.
Esse tipo de empresa surgiu a partir de 2004 para impulsionar as parcerias público-privadas (PPPs). Normalmente, uma SPE é criada para tocar grandes projetos de infraestrutura, como obras de usinas hidrelétricas ou de construção civil. Quando a empresa conclui seu serviço, a SPE deve ser encerrada ou deve assumir necessariamente um outro serviço da mesma natureza.
Todas as 42 SPEs que passaram a ser consideradas empresas subsidiárias são vinculadas à Eletrobras. A fatia da estatal nessas sociedades varia de 15% a 99,9% do capital, dependendo do caso. A estatal colocou à venda a sua participação em 39 dessas SPEs, das quais 38 geradoras de energia eólica e uma transmissora de energia.
Além das SPEs, o levantamento do Ministério da Economia incluiu como subsidiárias 30 empresas internacionais ligadas ao Banco do Brasil, Caixa, Eletrobras e Petrobras. Com isso, o número de subsidiárias no exterior subiu para 45. Também foram concluídas como subsidiárias mais 3 empresas nacionais ligadas a estatais-mães.
O número de estatais de controle direto, por sua vez, não mudou na nova contabilidade. Continuam sendo 46, sendo 28 empresas independentes e 18 dependentes de recursos do caixa da União. As estatais que dependem do Tesouro recebem dinheiro todo ano do governo para bancar suas operações, pois não geram receita suficiente para custear suas despesas. As independentes podem apenas receber aportes para investimentos ou aumento de capital.
Segundo a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas  Estatais, o objetivo da atualização dos dados foi "conferir transparência quanto às informações prestadas à sociedade e aos órgãos de controle". A secretaria também diz que "estes dados irão fundamentar todos os estudos de privatizações e desinvestimentos estatais de forma a continuar o grande processo de transformação do Estado no qual estamos diretamente inseridos".

637 empresas sob influência do estado 

O governo também constatou que ao todo há 637 empresas sob influência do Estado. Esse número, divulgado no começo do mês, inclui estatais de controle direto, subsidiárias, coligadas (empresas em que as estatais ou subsidiárias têm influência) e simples participação (empresas nas quais as empresas de controle direto ou suas subsidiárias detenham mera participação, sem influência).
As classificações “coligadas" e "simples participação" foram criadas pelo governo Bolsonaro. Até a gestão anterior, o governo trabalhava somente com o número de estatais de controle direito e subsidiárias (controle indireto). Segundo o secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, Salim Mattar, o objetivo da reclassificação foi mostrar para toda a sociedade o tamanho do Estado e a influência que ele tem em diversas empresas.

Número de estatais federais

Depois de um novo levantamento e também de uma atualização metodológica, o governo concluiu que possuía mais estatais do que esperava: 208, sendo que quatro delas foram desestatizadas recentemente, restando 204. Confira:
Infográfico:
1 - Dados usando a metodologia antiga, herdada do governo Temer
2 - Dados atualizados a partir do novo levantamento do governo Bolsonaro
Fonte: Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais/Boletim das Estatais Federais infografia: Chantal Wagner / Gazeta do Povo Mais infográficos

domingo, 20 de outubro de 2019

Os irmãos siameses em campos opostos, mas reciprocamente dependentes - Mario Vitor Rodrigues (GP)

Bolsonaro é Lula Livre; Lula é Bolsonaro “fala mais”

Imagem: internet
Antes do início do segundo turno, quando até os céticos como eu já haviam entendido que Jair Bolsonaro seria eleito presidente da República, houve quem previsse o pior: tanques nas ruas, fechamento do Congresso e extinção do Supremo Tribunal Federal. O medo pela volta da ditadura era tão palpável que na virada do ano amigos chegaram a me desejar “feliz 1964”. Embora nada perto disso tenha acontecido — vale dizer, até esta data —, o governo se comprovou um pesadelo de proporções inéditas.
Não que o autoritarismo passe longe da atual administração. Ele está tão explícito nas palavras quanto nas atitudes. Se faz presente na promiscuidade entre Estado e religião para garantir um específico curral de votos, na defesa de pautas que agridem o meio ambiente, na desinibição com a qual o presidente favorece seus filhos, na postura obsequiosa do ministro da Justiça quando a Operação Lava Jato é esvaziada e no incentivo para que uma militância em absoluto estado de negação abafe quaisquer críticas ao governo.
Contudo o bolsonarismo não é feito somente de arroubos autoritários. É também inapto. Eis a realidade: para além dos vícios de ordem moral, a gestão Bolsonaro é acima de tudo ruim. A pior em décadas. Um descalabro capaz de reposicionar na história a imagem da Era Dilma Rousseff.
Pois, dados esses dez primeiros meses catastróficos, só há uma pessoa capaz de reanimar o governo e seu projeto de poder, dito conservador por muitos, ainda que não passe de populismo escancarado: Lula.
Constatada a incompetência da atual gestão no comando do país, o bolsonarismo se vê fadado a bater o bumbo da dicotomia ideológica. Uma ladainha movida a espantalhos como o da volta do PT e da corrupção associada à sua imagem.
Acontece que oposição, na prática, não há. Pelo contrário, a esquerda se mostra tão manquitola que acaba enfraquecendo o já surrado discurso bolsonarista. De resto, e isso até o maior fã do capitão precisa reconhecer, fica a dúvida se, mesmo em seus melhores dias, ela, a oposição, conseguiria provocar tantos estragos quanto o mito e seus comandados são capazes de infligir a si mesmos.
Luiz Inácio, entretanto, tem o poder de funcionar como uma bandeira vermelha tremulando diante do touro bravio. Não será capaz de tornar o governo competente, disposto ao diálogo e preocupado em combater a corrupção, todavia pode estimular sentimentos que, se bem manipulados, tendem a reforçar o antiesquerdismo e a narrativa do “pelo-menos-não-é-o-PT”.
O líder petista aposta nisso. É astuto. Se sua liberdade será usada do outro lado do balcão para estimular a militância pró-governo, o mesmo impulso, no sentido contrário, servirá para animar os seus correligionários.
O cenário favorece os extremos. Bolsonaro precisa de Lula como quem clama por oxigênio; Lula conta com a verve raivosa e o amadorismo do governo para reposicionar a sua tropa de olho em 2022. Esta é a má notícia.
A boa é que o desgaste em ambos os polos tende a aumentar. Resta saber se será suficiente para acordar a sociedade.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Austeridade fiscal: inimiga do crescimento econômico? - Rodrigo Constantino (Gazeta do Povo)

Rodrigo Constantino
Gazeta do Povo, 16 de setembro de 2019

A Folha de SP trouxe neste domingo em destaque um texto de opinião com o título “Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?”. Trata-se da velha e surrada “teoria” de que a austeridade fiscal é inimiga do crescimento, que o governo precisa investir e gastar mais para induzir o crescimento econômico por meio do “multiplicador fiscal”.
Seria a descoberta do moto perpétuo de crescimento: o governo gasta e investe o que não tem, sem se preocupar com o déficit, e isso vai gerar mais crescimento ainda na iniciativa privada. O crescimento maior fará a arrecadação subir, e por isso não precisamos nos preocupar com os rombos do orçamento.
Com base numa “tese” dessas, é realmente espantoso ainda existirem países pobres! E “paradoxalmente”, são justamente os que mais acreditam nessas trilhas para o sucesso. Por que será?
O que os autores heterodoxos não explicam é como justamente na fase expansionista irresponsável de Dilma o país mergulhou na maior recessão da história recente. É mais ou menos como os ladrões que acabaram de realizar o maior roubo a banco de todos os tempos tentarem explicar que investir mais em segurança não é a solução, e ainda culparem outros pelo roubo. Haja cara de pau!
Claro que, com tão pouca sustentação teórica ou empírica, os autores tinham que partir para teorias da conspiração: “a insistência em um diagnóstico e uma política equivocada reflete apenas uma fé cega ou estaria a serviço de determinados interesses econômicos e políticos?”. Quem levanta tal suspeita é justamente a turma que adota fé cega em ideologias e tem vários interesses econômicos e políticos na manutenção do modelo atual falido, que leva aos altos juros e ao rentismo. Eles condenam da boca pra fora o excessivo gasto com juros, como se este não tivesse ligação alguma com o elevado déficit fiscal e sua trajetória insustentável, se não houver reformas estruturais de cunho liberal.
Não adianta quantas vezes a experiência comprove a boa teoria econômica, de que aumento de gastos públicos costumam gerar menos, não mais crescimento sustentável a longo prazo. Sempre haverá quem venda a ilusão de que basta o governo gastar para nos tirar do buraco que o excesso de gastos públicos cavou. Ou acabamos de vez com as falácias da Unicamp, ou a Unicamp acaba com o Brasil. Quase conseguiram com a Dilma, mas não desistiram ainda…
Rodrigo Constantino