Se apenas as palavras fizessem sentido, ou seja, esquerda é esquerda e direita é direita...
Mas elas não fazem, como adianta João Ubaldo nesta sua crônica do último domingo...
Paulo Roberto de Almeida
‘Que elites, que esquerda?’, um artigo de João Ubaldo Ribeiro
JOÃO UBALDO RIBEIRO
A
cada instante e cada vez mais, somos alvejados por milhares de
informações de todos os tipos, muitas delas procurando, como
consequência final, alterar nosso comportamento, seja para pormos fé nas
lorotas pseudoestatísticas e conceituais que nos pregam os fabricantes
de remédios, pastas de dentes e produtos de farmácia em geral, seja para
acreditarmos que determinado partido político, ao pedir com fervor
nossa adesão, realmente tem alguma identidade que não seja a que lhes
emprestam seus tão frequentemente volúveis caciques. Aparentemente,
nossos cérebros se defendem de ser entulhados com essa tralha e grande
parte dela é esquecida.
Mas
em algum lugar da mente ela permanece e afeta talvez até nossa maneira
de ver o mundo. Se prestarmos atenção aos comerciais de tevê e fizermos
um esforçozinho de abstração, veremos que temos plena ciência de que
quase todos eles, ou mesmo todos, se apoiam em pelo menos uma mentira ou
distorção. O xampu não produz cabelos como aqueles, a empresa não dá o
atendimento ao cliente que apregoa, o plano de saúde falha na hora da
necessidade, a velocidade da banda larga não chega nem à metade do que
contrata, o sistema de saúde que descrevem como o nosso parece gozação
com o pessoal que estrebucha em macas no hospital, o banco professa
carinho e oferece gravações telefônicas diabólicas, o lançamento
imobiliário mente sobre as vantagens do bairro e a segurança da
construtora, a moça não é bonita como aparece, o sinal da operadora não é
confiável, a prestação sem juros é enganação, a garantia do carro não
vale nada para a concessionária. Tudo, praticamente, é mentira e sabemos
disso. Mas, mistérios desta vida, agimos como se não soubéssemos, numa
postura acrítica e já meio abestalhada.
Em
relação à política, talvez nossa situação possa ser até descrita em
termos mais drásticos. As afirmações mais estapafúrdias são divulgadas e
ninguém se preocupa em examiná-las. Não me refiro a chutes que
prostituem a estatística e fazem dela, como já se disse, a arte de
mentir com precisão. Os números nos intimidam desde a escola primária e
qualquer embusteiro se aproveita disso para declarar que 8.36% (quanto
mais decimais, melhor) de alguma coisa são isso ou aquilo e ver esta
assertiva ser recebida reverentemente, como se não fosse possível
desconfiar de tudo, da coleta dos dados, às categorias empregadas e os
cálculos feitos. Média, então, é uma festa e eu sempre penso em convidar
o dr. Bill Gates para morar em Itaparica e me transformar em nativo do
município de maior renda média do Brasil, cuíca do mundo.
Não,
não me refiro a números, mas a alegações estranhas. Por exemplo, esse
negócio de o governo ser de esquerda. Só se querem dizer que a maior
parte do nosso cada vez mais populoso bando ministerial é constituído de
canhotos. O presidente Lula, que não quis ser presidente emérito e
prefere continuar sendo presidente perpétuo mesmo, já disse ─ e creio
que com sinceridade ─ que não é, nem nunca foi, de esquerda e que não
usa mais nem a palavra “burguesia”. E que é que o governo fez que
caracterize uma posição de esquerda? Apoiar Chávez com beijos e abraços,
ao tempo em que respalda os bilhões de dólares de negócios brasileiros
na Venezuela? Manter boas relações com Cuba, o que não quer dizer nada
em matéria de objetivo político? Ser da antiga turma que combatia o
governo, no regime militar? E já perguntei aqui, mas pergunto de novo: o
PMDB é de esquerda? Quem é esquerda, nesse balaio todo? Furtar,
desviar, subornar, corromper são de esquerda? Zelar por valores éticos e
morais é de direita?
É
gritaria da direita reclamar (e pouca gente reclama) do descalabro
inacreditável em que se tornaram as trombeteadas obras do rio São
Francisco, hoje uma vasta extensão de ruínas e destroços, tudo
abandonado ao deus-dará, em pior estado do que cidades bombardeadas na
Segunda Guerra? Ou o que está acontecendo com a Petrobras, que, da
segunda posição entre as petrolíferas, despencou para a oitava e pode
despencar mais, acrescida a circunstância de que ninguém explica direito
qual é mesmo a situação do hoje já não tão radioso pré-sal? E combater a
miséria nunca foi de esquerda ou direita. Ter altos índices de
popularidade tampouco.
Também
se diz que as elites dominantes querem derrubar o governo. Que elites
dominantes? A elite política, que se saiba, é a que exerce o poder
político. O Poder Executivo é exercido pelo governo que está aí e que,
presumivelmente, não atua contra si mesmo. O Poder Legislativo está sob o
controle da base do governo. E o Judiciário, por mais que isso seja
desagradável aos outros governantes, não pode associar-se à ação
política no sentido estrito. Já as elites econômicas não parecem
empenhadas em subverter uma situação em que os bancos têm lucros nunca
vistos, conforme o próprio presidente perpétuo já frisou, e as
empreiteiras estão muito felizes e, convocadas pela presidente adjunta,
prometeram fazer novos investimentos. Qual é a elite conservadora que
está descontente e faz oposição ao governo? É justamente o contrário.
Finalmente,
temos a imprensa golpista. Que imprensa golpista? Que editorial ou
comentário pediu golpe? Comportamento golpista é o de quem acusa o
Judiciário de ser agente de armações politiqueiras, quem chega a esboçar
desobediência a ordens judiciais, quem se diz vítima de linchamento,
quando foi condenado em processo legítimo e incontestável. A imprensa
sempre se manifesta contra o desrespeito à Constituição e a
desmoralização das instituições democráticas e tem denunciado um rosário
sem fim de ações lesivas ao interesse público. Golpista é quem busca
silenciá-la ou controlá-la, não importa que explicações se fabriquem e
que eufemismos inventem.
(O Estado de S.Paulo, 17/03/2013)
