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domingo, 3 de setembro de 2023

Um perfil do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad - Flávia Tavares, Luciana Lima, Andrea Freitas (Folha de S. Paulo)

 Folha de S. Paulo, 1 de setembro de 2023

COMO HADDAD ENTENDE A ECONOMIA

Por Flávia Tavares, Luciana Lima e Andrea Freitas

Num discurso na última segunda-feira, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estava se explicando, de novo, sobre a decisão do governo de buscar receitas na taxação de rendimentos de capital no exterior (offshore) e dos chamados fundos exclusivos – coisa de ricos e super-ricos. Ele rechaçava a comparação com o herói fora-da-lei inglês. “Eu vejo muitas vezes, na imprensa, ser tratado como uma espécie de ‘ação Robin Hood’, uma revanche”, reclamou o ministro. “Não é, absolutamente, nada disso.”

Ao seu lado, no palco montado no Salão Oeste do Planalto, Lula o observava, ladeado por Alckmin e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. “Aqui não tem nenhum sentimento que não seja o de justiça social”, disse Haddad, apontando com as mãos o próprio peito. Essas palavras encerraram o discurso. Lira apertou suas mãos. Lula foi efusivo e o convidou para tirar um retrato. Lira ouviu algo que os petistas comentaram e também sorriu. Alckmin, permanentemente risonho há pelo menos um ano, cumprimentou o amigo, que serviu de ponte entre o ex-tucano e o presidente petista. Haddad transitava, confortavelmente, entre expoentes de tudo que é tensão política e econômica das últimas décadas.

O mesmo comportamento que lhe garante essa aceitação política o obriga a, com imensa frequência, ter de explicar quem é. Como pensa. Isso já é atávico da missão de conduzir a economia de um país. Mas, possivelmente, num país com menos barulho antidemocrático, a economia pautasse quase exclusivamente o noticiário e essas concepções já estivessem mais claras. Não só isso. Haddad insiste em não se deixar enquadrar. “Tenho problemas com rótulos. Eles não ajudam a encontrar soluções”, começou ele sua enésima explicação sobre si mesmo no programa Reconversa. Era dia 11 de agosto, uma sexta-feira, e o Brasil estava em polvorosa com a operação da Polícia Federal num endereço do general Mauro Lourena Cid, em Niterói. Naquele mesmo dia, o governo federal, ofuscado pelo escândalo das joias, lançava os termos do novo PAC, no Rio — a versão do programa prevê R$ 1,68 trilhão de investimentos numa mescla de recursos da União e de concessões e Parcerias Público-Privadas (PPPs). “Perguntei ao Lula por que ele tinha reserva em convidar economista ‘padrão’ para a Fazenda”, ele seguiu na entrevista. “E ele me disse que é porque eles são mais fieis à escola de pensamento deles do que ao governo. ‘E eu [Lula], às vezes, preciso tomar decisões que não cabem na caixinha. Então, prefiro alguém com senso prático.’” Pragmatismo: check. Lealdade: check. Não caber numa caixinha: check. A trajetória pública e partidária de Haddad indicava que ele conseguiria o emprego.

Mas havia muito mais em jogo. Lula assumia um país debilitado economicamente; tendo sido eleito sob uma frente ampla ao mesmo tempo em que seria cobrado a atender às demandas à esquerda; e precisando reconfigurar a relação do Executivo com o Legislativo. Haddad segue sua autoavaliação. Declara-se uma pessoa de esquerda, progressista. “Mas eu não acredito em Estado que deve, que não se importa com a dívida.” E, candidamente, afirmou que não consegue entender quem na esquerda defenda essa política. Seguindo seu perfil flexível, ressaltou que é evidente que há situações históricas em que o déficit se justifica, como numa pandemia, numa guerra. Mas, neste momento do Brasil pós-pandêmico, é preciso corrigir os abusos do governo anterior na busca pela reeleição e dar prumo às contas públicas. “Quando Lula me convidou para ser ministro da Fazenda, no Egito, decidi aceitar, porque eu estava com o diagnóstico do que precisava ser dito e feito para o Brasil. E qualquer coisa que saia desse roteiro vai colocar em risco o terceiro mandato do político mais importante da história deste país.”

Haddad é um ministro da Fazenda peculiar. É formado em Direito, mestre em Economia, doutor em Filosofia. E a própria insistência em não se encaixar numa única escola econômica o torna, para alguns, especialmente em tempos de simplificações sob medida para redes sociais, uma incógnita. Sua formação à esquerda seria preponderante demais para classificá-lo como liberal? E seu zelo fiscal o desqualificaria automaticamente como um representante da esquerda? “Quem tem uma postura dogmática em relação a uma escola de pensamento e não sai daquele quadrado nem quando as evidências demonstram, tem pouca sensibilidade. Não tenho nada contra a escola de pensamento econômico, transito por todas.” Ele já buscava se justificar em dezembro.

Agora, com oito meses corridos de ministério, algumas ideias do economista Haddad estão mais palpáveis. Para avaliá-las melhor, vale percorrer o trânsito que ele tem feito entre escolas. E suas aplicações em sua vida pública.

O marxista crítico

Haddad conta que despertou para temas econômicos a partir da militância estudantil e da presidência do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP. Esse relato está nos agradecimentos de sua tese de mestrado em Economia, defendida no dia 19 de outubro de 1990, e intitulada “O debate sobre o caráter socioeconômico do sistema soviético”. Trata-se de um sobrevoo crítico sobre teorias para tentar determinar o modelo econômico da União Soviética no cerne do processo da Perestroika, iniciado em 1985. E uma tentativa de apontar que nenhuma delas definia integralmente o sistema naquele momento de transição. Numa análise instantânea, estava impressa ali a pulsão haddadiana de questionar os enquadramentos clássicos, pré-estabelecidos. Nos agradecimentos, Haddad menciona, entre outros, Alexandre Schwartsman, que viria a ser presidente do Banco Central, é voz corrente do liberalismo e hoje é duro crítico da condução do ministro. Para o Haddad que se graduava no mestrado, Schwartsman foi descrito como “amigo”, testemunho da convivência acadêmica, próxima e respeitosa, com o contraditório.

O DNA dessa faceta de Haddad está mesmo na crítica. Embora sua formação seja marxista, foram os frankfurtianos Theodore Adorno, Max Horkheimer e Walter Benjamin os autores que mais o influenciaram. A economista Leda Paulani, professora da Faculdade de Economia e Administração da USP e amiga de Haddad há mais de 30 anos, editou com ele por alguns anos, no fim da década de 1990, a revista Praga, de estudos do marxismo. A publicação, criada pelo filósofo Paulo Arantes (orientador do doutorado de Haddad) e que chegou a divulgar textos inéditos de Che Guevara, Antonio Candido e Caio Prado Jr., era não uma defesa do socialismo, mas já um momento posterior, crítico do capitalismo, dado por vencedor em seu formato mais perigoso, o neoliberalismo. Leda explica que o marxismo de Haddad não é “de cartilha”. “É aberto, marchando sempre com a democracia, mas preservando muito do que Marx detectou com imensa precisão sobre o funcionamento do capitalismo e desligado do autoritarismo aplicado pelo stalinismo.”

Talvez decorra dessa leitura a proposta que Haddad lhe contou ter feito a Lula. Em nome de garantir que esse governo seja bem-sucedido o suficiente na economia, “ele disse ao presidente que faria o papel de ‘patinho feio’ para a esquerda, se precisasse, para manter o fascismo afastado”, relata a professora. Na prática, isso se revela no fato de que ele encampou o arcabouço fiscal. Para ela, é mais por Haddad entender que essa era uma imposição política, de décadas de um discurso pró-austeridade, do que fruto de convicção. “Uma coisa é reconhecer a trajetória de dívidas paralisantes. Outra é achar que se não fizer superávit primário não existe país”, diz Leda. “Tenho certeza de que ele concorda que, existindo Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF) e regra de ouro, o arcabouço é uma camisa de força que não precisaríamos estar vestindo. Mas, como ministro, ele não pode dizer isso.”

Como ministro, publicamente, o que ele diz é que o arcabouço, que formulou em conjunto com Simone Tebet, ministra do Planejamento, é um avanço. “Nós estudamos 29 países para construir o texto, que depois foi aperfeiçoado no Congresso. Ali, tem um teto móvel, que é uma regra de gasto mais inteligente e uma vantagem sobre a antiga LRF. E tem uma coisa resgatada da LRF, que é a meta de resultado primário. Juntamos as duas coisas. Foi isso que comoveu as agências de risco”, ele defendeu na entrevista ao Reconversa. O presidente Lula sancionou na quinta-feira, com vetos (que devem cair), o texto do arcabouço — entregue ao Congresso meses antes do prometido na PEC da Transição. Na apresentação do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2024, Haddad e Simone estavam lado a lado, celebrando esses dois ajustes aprovados pelos parlamentares. Junto com a reforma tributária, essas medidas, que mostram o compromisso fiscal do governo, foram essenciais para o início do processo de corte de juros, iniciado — tardiamente, na visão do próprio Haddad — na última reunião do Copom. Essa agenda do governo foi reconhecida pela agência de classificação de risco Fitch e pela S&P Global Ratings.

O fiscalista

Pode ser que o rigor fiscal de Haddad seja uma imposição política, como diz Leda. Mas há pistas de que venha também de experiências passadas. Num plano mais pessoal, Haddad costuma dizer que aprendeu mais economia na 25 de Março do que na academia. Ele trabalhou na loja do pai, Khalil Haddad, que emigrou do Líbano em 1947 e se estabeleceu como comerciante no coração de São Paulo. “O pai dele é imigrante, ele tem essa vivência de gente que chegou aqui sem muito dinheiro. Tem um conservadorismo financeiro aí. Ele já trabalhou em balcão e fechou caixa no final do dia. Viu o que acontece quando você fica sem crédito. É claro que a economia de um país é diferente da de uma loja, mas, em situações de crise, muitas vezes, as diferenças diminuem bem”, diz Samuel Pessôa, pesquisador do FGV/IBRE e chefe de pesquisa econômica da Julius Baer. Pessôa foi colega de Haddad no colégio e também no mestrado na USP.

Já na administração pública, um outro episódio, quiçá traumático, reforçou o zelo de Haddad por um caixa bem administrado. No dia seguinte à chegada de Marta Suplicy à prefeitura de São Paulo, em 2001, vencia um boleto de uma dívida muitíssimo mal negociada pelo antecessor, Celso Pitta. Haddad era, junto com Leda Paulani, parte da equipe do secretário de Finanças, João Sayad. A fatura era de um valor próximo a R$ 1 bilhão. Nos cofres, havia coisa de R$ 2 milhões. A situação era tão crítica que nem a conta de luz a prefeitura podia pagar. Ficou evidente ali como uma situação de dívida sufoca o orçamento e as ações sociais que ele poderia patrocinar. Quando mais tarde assumiu ele próprio a prefeitura da cidade, uma de suas prioridades foi renegociar essa dívida com a União. E ele conseguiu — com o custo de popularidade que prioridades desse tipo costumam carregar. Reduziu de R$ 79 bilhões para R$ 29 bilhões. “Com muita conversa, como é de seu estilo”, relembra Leda, que foi também sua secretária de Orçamento e Planejamento. Novamente, a administração da economia de uma cidade é bem diferente da de um país, em que se tem as políticas fiscal, monetária e cambial para trabalhar. Ainda assim, há pistas deixadas por essas escolhas.

Para Pessôa, um liberal, a heterodoxia brasileira tem uma interpretação excessivamente otimista da contribuição do britânico John Maynard Keynes. Keynes jamais afirmou que o gasto público tem uma capacidade muito grande de alavancar o crescimento e, no limite, se autofinanciar. Já Haddad teria uma visão mais conservadora em relação à política fiscal, uma preocupação com a estabilidade e solidez do setor público, necessárias para a entrega de políticas públicas. “Minha impressão é de que o Haddad é uma pessoa que tem uma preocupação fiscal genuína. Acho que por isso é chamado de ‘o mais tucano dos petistas’”, afirma. Já Leda Paulani, da escola oposta à de Pessôa, define o amigo como um “otimista” mesmo, mas também um iluminista puro, para quem a razão sempre prevalece. Em comum, Leda e Samuel — assim como todos os próximos de Haddad — têm uma coisa: todos o chamam de Fernando.

Essa flexibilidade (ou trânsito, para ficar nos termos do ministro) ficou evidente no período em que Haddad lecionou no Insper, escola de negócios e administração próxima do liberalismo. O ministro foi convidado, em 2016, a ajudar a montar o mestrado em Gestão Pública. Licenciou-se da USP e, curiosamente, aproximou-se de Sandro Cabral, coordenador do curso, da mesmíssima forma que havia cercado Leda Paulani. A amiga ele abordou numa cafeteria perguntando sobre sua tese de doutorado a respeito do conceito de dinheiro. O novo amigo, em sua sala, também convidando para um café para discutir o livro Capitalismo de Laços, de Sérgio Lazzarini. A curiosidade intelectual de Haddad é traço fundamental do ministro difícil de enquadrar. É o que rende algumas soluções além-rótulos. Cabral dá o exemplo das Parcerias Público-Privadas, um dos temas das aulas de Haddad no Insper. “O embrião do texto da lei das PPPs é dele. Foi inspirado na taxa do lixo em São Paulo, uma solução engenhosa pra garantir o serviço público, respeitando a lei de concessões.” Haddad era, então, membro da equipe de Guido Mantega no Ministério do Planejamento do governo Lula 1. Chegou a confidenciar para o amigo que a primeira versão do texto era mais “anglo-saxã” do que a que emplacou. Ou seja, mais liberal.

A esquerda, diz Cabral, abraçou as PPPs como instrumento de investimentos em infraestrutura e até gestão de prisões. “Basta ver os governos da Bahia, o Wellington Dias no Piauí”, aponta. O próprio ProUni, na visão dele, é nada mais que um sistema de voucher, “mais liberal impossível”. Isso quer dizer que Haddad é, então, um liberal? “Ele sabe que é importante fazer reserva, ter colchão para intempéries. Tem compromissos de afeto com a esquerda, seu grupo de referência, que evita desagradar. Mas admitia que concordava com Alckmin em 70% das pautas.” Os outros 30%, talvez mais na seara dos costumes, é que os mantinham em partidos diferentes. E, embora formalmente isso permaneça, eles estão mais próximos do que nunca, numa ponte construída pelo próprio Haddad. Dependendo da lente, dá para dizer até que Alckmin anda à esquerda de Haddad, hoje. Cabral tenta resumir se Haddad é liberal ou de esquerda, afinal. “Ele tem mais preocupações sociais do que a esquerda pensa. E mais convicções de como conciliar mecanismos de mercado na gestão pública do que os liberais pensam.”

A gestão como ministro mostra que Haddad tem capacidade de lidar com os dilemas econômicos sem tanta rigidez, incorporando dimensões que muitos petistas tachariam de neoliberais. “Isso é um dos aspectos positivos politicamente”, analisa o cientista político José Álvaro Moisés, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP — e um dos avaliadores da tese de mestrado de Haddad. Eles foram contemporâneos de PT no comecinho do partido. Moisés deixou a legenda em 1989, quando já ocupava cargos diretivos, mas lembra do rapaz que fazia oposição à corrente dominante no partido, pela esquerda. “Mais do que essa abertura, Haddad amadureceu as visões do PT sobre desigualdades. Faz um tremendo esforço para enfrentá-las, insiste na tese central do Lula. Mas, para isso, vai precisar de tempo para dizer de onde vão sair os recursos.”

O político

Para enfrentar o desafio descrito por Moisés, e garantir o trânsito entre o fiscalista e o marxista crítico, o ministro precisa primordialmente de dinheiro e apoio político. Só isso. Tudo isso. E, aí, a tendência a recorrer a mecanismos que se encaixam mais no protecionismo da esquerda é imensa. O governo tem estudado, por exemplo, um imposto de importação mínimo de 20% para encomendas internacionais. Como não quer reduzir os gastos, precisa aumentar a arrecadação. Nada mais impopular. Mas naquele discurso de segunda-feira, o do Robin Hood, Haddad mostrou suas cartas nessa frente. Ao falar da sua “profunda consideração” pelo Congresso e da espera por “parceria” e “respeito”, o ministro reivindicou o reconhecimento de que sabe articular. No primeiro semestre, Haddad não poupou esforços para fazer aquele meio de campo com deputados, senadores, prefeitos e governadores. Resultado: apesar das rusgas do Planalto com o Centrão de Lira, o governo conseguiu aprovar toda pauta.

Esse empenho tornou Haddad um favorito do Congresso. Com mais prestígio entre deputados e senadores do que a chamada “cozinha” do Planalto, que tem os ministros Alexandre Padilha e Rui Costa na dianteira. Os líderes de partidos do Centrão na Câmara o têm em alta conta. Chegam a pintá-lo como um “ministro da Fazenda articulador”. E se tem uma coisa que não dá para poupar na administração pública é atenção para parlamentar “carente”. “Ele passa o celular e pede pra ligar a qualquer momento. Ele está sempre disposto a receber relatores de matéria de interesse do governo em seu gabinete. Tem deputado que nunca havia pisado na Fazenda”, disse um interlocutor de Lira. O telefone de Rui Costa, da Casa Civil, por exemplo, tem deputado que não tem.

Para sua equipe, Haddad deu ordem direta de atender bem os parlamentares. A orientação passada no início do ano para o ex-secretário executivo Gabriel Galípolo — hoje diretor de Política Monetária do Banco Central — é a mesma repassada a seu substituto, Dario Durigan. “Essa não era a imagem que a classe política, principalmente representantes do Centrão, tinham dele”, derrete-se o representante do Lirismo. Mais que atender o telefone, Haddad tem se mostrado sensível às questões dos deputados. Ele sabe que, sem emendas, ninguém se reelege e se mostra disposto a acomodar algumas demandas nas destinações orçamentárias.

Só que o suspense em torno da troca de ministros não ajuda essa articulação. Lula tem esticado a corda. Lira e seus aliados consideram que a demora na distribuição de cargos para os partidos não se trata de “batidas de cabeça” dentro do governo, mas de método. “Ganhar tempo” seria a palavra de ordem de Lula. Sem essa retaguarda, dizem os parlamentares, de nada valerá o esforço de Haddad. Para pressionar o governo, a Câmara pode colocar em votação a reforma administrativa, gestada por Paulo Guedes. Tudo que o governo não quer.

Fazer caber esse apetite por emendas e a gana petista por dinheiro pra investimento vai exigir pragmatismo, lealdade, não caber em caixinha, ser articulador e tudo mais que Haddad tiver a oferecer. Mas ele tem se mantido fiel à própria flexibilidade. Enfrentando a voz corrente em seu partido, seguiu defendendo déficit zero nas contas do governo para 2024. Déficit zero é, resumidamente, a equivalência entre receitas e despesas primárias. O Estado não gasta mais do que recebe. A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, advoga abertamente que seja admitida a variação prevista no próprio arcabouço, que pode chegar a 0,25 ponto percentual sobre a receita. Para Gleisi, isso permitiria mais investimentos do Estado. Haddad discorda. Ele ecoa Simone, que garante que as estimativas da Receita estão conservadoras demais e a conta vai fechar. E está endossado por Lula. “O governo não vai mudar e vai tentar aprovar os projetos tributários”, disse o deputado petista Carlos Zarattini, coordenador do governo na Comissão Mista de Orçamento (CMO), ao Meio. Esses “projetos tributários” são os que miram no aumento da receita.

Enquanto isso, Haddad vai colhendo críticas, mas também resultados. Aumentou sua aceitação no mercado. O crescimento da economia no segundo trimestre superou as expectativas. Ao celebrar, comedidamente, o resultado, Haddad transitou. “Há ainda, com naturalidade, muitos questionamentos sobre como vai ser o ano de 2024.” Repisou o quanto precisa das medidas enviadas ao Congresso. E, então, repetiu a trinca que tem norteado suas explicações. “Só com crescimento podemos alcançar um equilíbrio fiscal, social e ambiental. Com o crescimento, tudo fica mais fácil.”

Crescimento não é trivial de produzir. O governo não depende só do ministro da Fazenda. Governo de frente ampla, que inclui esquerda desenvolvimentista, liberais salpicados e o Centrão fisiológico não tem como ser elementar na condução. O trabalho, para Fernando Haddad, só começou.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Politica externa do governo: criticas de analistas - Luciana Lima (IG)

Com orçamento apertado, Dilma freia pilares da política externa de Lula

Por Luciana Lima - iG Brasília 

Presidente enfrenta críticas por ter desempenho diferente de Lula na área internacional: viajou menos, recebeu menos chefes de Estado e enfrenta queixas na área de direitos humanos

O governo da presidente Dilma Rousseff tem sido criticado, inclusive internamente, por não dar o mesmo protagonismo à política externa brasileira que marcou a administração do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.Com restrições de orçamento, Dilma deixou de fazer repasses a órgãos multilaterais de defesa de Direitos Humanos, não depositou o que havia prometido de ajuda humanitária para refugiados da Síria, viajou menos e também recebeu menos chefes de Estado em visita ao Brasil. Além do aperto fiscal, alegado pelo próprio Planalto, a pouca desenvoltura de Dilma com as questões mundiais é reconhecida por integrantes do próprio governo como “estilo Dilma”.

Agência Brasil
Dilma vem sendo criticada por não dar o mesmo protagonismo à política externa brasileira que marcou a administração de Lula

Embora a presidente tenha adotado a postura de continuidade dos eixos implantados por Lula – de busca da liderança na América Latina, de estreitamento das relações com a África e de fortalecimento da relação com países do hemisfério sul, a chamada cooperação sul-sul – o desempenho da presidente, para muitos agentes da política externa brasileira, não teve o mesmo destaque. E isso, afirmam, tem contribuído para reduzir a influência do país perante a comunidade internacional.
“Eu diria que houve uma redução da intensidade do relacionamento com os países da América do Sul, apesar dela ter cumprido os compromissos”, analisou o diplomata Samuel Pinheiro Guimarães, ex-secretário-geral do Itamaraty.
“Não há a mesma intensidade de contatos que havia no passado. Embora não haja como dizer que houve mudança de rota, de princípios”, reforçou Guimarães, que chegou a participar do governo do ex-presidente Lula, conduzindo a Secretaria de Assuntos Estratégicos.
Visitas e viagens
O estilo de Dilma se reflete nos números. Nos três primeiros anos de governo, a presidente recebeu 21 visitas de chefe de Estado, sendo algumas repetidas, como a da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, da Argentina, e do presidente do Uruguai, José Mujica, que Dilma chegou a receber informalmente para um jantar no Palácio da Alvorada. Já o ex-presidente Lula, em seus três primeiros anos de governo, recebeu 63 visitantes, mais até que Fernando Henrique Cardoso, que recebeu 50 visitantes em seus primeiros três anos de governo.
Dilma também viajou bem menos que Lula. Comparando os três primeiros anos de seu mandato, Dilma visitou 31 países. Nos primeiros três anos de Lula, ele visitou 49 nações e, nos três primeiros anos do segundo mandato, esteve em mais 59 países. Em comparação com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que pegou fama de quem viajava demais, os dois petistas superaram sua marca. FHC visitou nos três primeiros anos de seu primeiro mandato 26 países e no segundo mandato, mais 27.
Para a África, continente priorizado por Lula em sua atuação internacional, Dilma reduziu pela metade as visitas. Nos primeiros três anos de seu primeiro mandato Lula fez 15 viagens ao continente. Já no segundo mandato, Lula fez mais 14 viagens à África. Dilma, por sua vez, fez 7 viagens ao continente africano.
Dilma cumpriu a agenda na opinião de membros do governo. Viajou à China no primeiro ano de governo, em uma visita com forte cunho empresarial, não faltou a nenhuma reunião de cúpula dos Brics (bloco de cooperação formado por Brasil, Rússia, Índia, China a África do Sul) e da Celac (Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos) e esteve na África.
Contraste de estilos
O estilo “menos atuante” que antes era atribuído por diplomatas brasileiros ao ex-ministro Antonio Patriota, hoje é atribuído a própria presidente. Patriota deixou o cargo após o desastrado episódio da fuga do senador boliviano Roger Molina para o Brasil. Em seu lugar, Luiz Alberto Figueiredo Machado assumiu o cargo, mas não se sentiu mudança no ritmo do Itamaraty.
Para Samuel Pinheiro Guimarães, a política externa brasileira sofre o impacto do contraste entre a desenvoltura de Lula com as questões internacionais, adquirida mesmo antes de se tornar presidente, e a falta de afinidade de Dilma como tema.
“Antes de ser eleito presidente, Lula já tinha feito inúmeras viagens ao exterior para atender compromissos da internacional socialista, dos sindicatos, de modo que ele tinha uma prática internacional extraordinária. Ele já tinha sido coordenador do Foro de São Paulo dos movimentos de esquerda da América Latina e, neste processo, ficou conhecido pessoalmente por muitos líderes, não só na América Latina, como no mundo todo”, disse Guimarães.
“Lula tinha uma desenvoltura, uma tranquilidade para este tipo de tema devido ao seu relacionamento anterior. Sempre que líderes estrangeiros vinham ao Brasil, para visitar a Dilma, muitas vezes pediam audiência com Lula e ele estava em São Bernardo”, exemplificou. “Ele ficou conhecido pessoalmente por esses líderes, de modo a facilitar muito esta relação”, ponderou.
Guimarães, no entanto, destaca a posição firme que a presidente apresentou perante a crise no Paraguai, na defesa do ingresso da Venezuela no Mercosul, e também perante as denúncias de espionagem feita pelos Estados Unidos que atingiram, inclusive, dados pessoais da presidente.
O jeito discreto dos ministros de Dilma na política externa também reforça o contraste. Hoje, ministro da Defesa, Celso Amorim foi um dos ministros de Lula e é tido no meio diplomático como uma figura que opinava mais em sua área de atuação e influenciava mais nas questões políticas. O mesmo não se diz dos ministros de Dilma. Enquanto Figueiredo pouco tem opinado sobre política externa, Amorim acabou imprimindo no Ministério da Defesa um pouco da relação intensa que já tinha com outros países durante o governo Lula.
Em dois anos à frente da pasta, ele viajou a todos os países da América do Sul, esteve em Angola, Namíbia, Moçambique e em Cabo Verde, países africanos onde o Brasil auxilia com cooperação na área de Defesa. No âmbito da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), Amorim coordenou a iniciativa brasileira de formar um Conselho Sul-americano de Defesa que reúne ministros da Defesa de todos os países do bloco.
Direitos Humanos
Ao assumir o governo, Dilma disse que daria mais importância às questões de Direitos Humanos e que adotaria este tema como eixo da política externa. No entanto, as críticas à sua atuação se avolumam também nesta área. Nenhuma doação foi feita pelo governo brasileiro nos últimos quatro anos para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que sobrevive com recursos doados pelos Estados signatários e instituições internacionais.
As últimas doações, embora modestas se comparadas com as de outros países, ocorreram em 2006, no valor de US$ 98,5 mil dólares; em 2008, no valor de US$ 300 mil e, em 2009, quando o Brasil contribuiu com US$ 10 mil.
Na opinião da coordenadora do Programa de Política Externa e Direitos Humanos da Conectas Direitos Humanos, Camila Assano, a falta de doações indica “falta de compromisso do governo brasileiro com o tema de direitos humanos, apesar do discurso contundente de crítica às violações de direitos”, observado tanto no governo de Lula, quanto de Dilma. “O Brasil tem demonstrado que é bom em apontar onde está o problema. Falta, no entanto, fazer parte efetiva da solução dos problemas”, criticou. “Existia um protagonismo maior do Brasil. É sensível perceber que houve redução”, disse.
Um exemplo citado por Camila Assano de “pouca disposição” do Brasil em ajudar com recursos financeiros refere-se ao anúncio feito pelo governo, em janeiro deste ano, na II Conferência de Doadores do Kuwait, na qual se comprometeu a doar US$ 300 mil para o alívio da crise humanitária na Síria. “Foi o menor valor dentre todos os países que estiveram no Kuwait e Montreux”, critica. Na ocasião, o anfitrião Kuwait fez a maior doação, no valor de US$ 500 milhões e os Estados Unidos se comprometeram em doar US$ 380 milhões. “Só para compararmos, o México doou US$ 3 milhões”, criticou Camila Assano.
Apesar do valor considerado baixo em comparação com os demais países, os recursos ainda não constam do site da ONU, após mais de quatro meses da promessa. O dinheiro teria que ser repassado para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e para o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) para serem usados no atendimento a crianças deslocadas pela guerra civil na Síria.
De acordo com o Itamaraty, também nesse caso, o repasse ainda não foi feito devido a “restrições orçamentárias”. O governo informou ainda que não há data prevista para o depósito e que isso será feito tão logo haja condições para o repasse.
Outro episódio que, na opinião de defensores de direitos humanos, demonstrou descaso do Brasil com o tema ocorreu também em janeiro deste ano. O Brasil foi o único a não enviar o chanceler para a Conferência de Paz na Síria, ocorrida em Montreux, na Suíça. A pedido de Dilma, Figueiredo ficou no Brasil para prepará-la para sua viagem para o Fórum Econômico de Davos, do qual ela participaria pela primeira vez. Restou ao Itamaraty enviar o número dois na hierarquia, o secretário-geral da pasta, o embaixador Eduardo dos Santos. “Isso indica descaso. Demonstra que o Brasil não está preocupado à altura com a questão”, comentou Camila Assano.
Mulheres
Outra atitude do governo de Dilma Rousseff que gerou um clima de frustração em entidades defensoras de direitos humanos foi a de manter a posição de abstenção, perante a Organização das Nações Unidas (ONU), em relação a violações de direitos humanos no Irã. “Antes de tomar posse, Dilma chegou a discordar da posição tomada pelo governo de Lula de se abster. No entanto, o governo brasileiro fez a mesma coisa em 2011, 2012 e em 2013”, afirmou Camila Assano.
A resolução da ONU, votada pela primeira vez em novembro de 2010, condena o Irã pela adoção de pena morte por apedrejamento de mulheres condenadas por adultério. Na época, o governo brasileiro, comandado por Lula, adotou a posição de abstenção por não considerar que o tema teria que ser discutido pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU e não na Assembleia Geral.
A posição contrária de Dilma foi colocada em entrevista ao jornal norte-americano Washington Post, na qual ela disse que não concordava com a forma que o Brasil havia votado e que não mudaria de opinião após sua posse.