O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Marcelo Ninio. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Marcelo Ninio. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 13 de junho de 2023

Diplomacia partidária da China acena ao PT - Marcelo Ninio (O Globo)

 Diplomacia partidária da China acena ao PT

A diplomacia partidária da China é uma forma de promover o modelo de governança do país para ampliar sua influência

Por Marcelo Ninio — Pequim
O Globo, 13/06/2023

Uma delegação do Partido dos Trabalhadores (PT) com 20 integrantes desembarcou nesta segunda-feira em Pequim para uma visita de 12 dias, a convite do governo chinês. É a reabertura de mais um canal na aproximação com o Brasil, após o aquecimento das relações obtido com a visita do presidente Lula à China em abril. A viagem se encaixa na diplomacia partidária praticada pelo Partido Comunista da China desde a década de 1950, para reforçar os laços com grupos políticos afinados ideologicamente.

É uma das maiores delegações partidárias do Brasil que já participaram desse tipo de viagem, em novo sinal da importância que Pequim tem dado ao país desde a volta ao poder do “velho amigo” da China, como a mídia estatal chama Lula. Chefiado pelo secretário-geral nacional do PT, Henrique Fontana, o grupo inclui vários dirigentes do partido e o senador Humberto Costa (PE), além de três deputados federais e um estadual.

Em Pequim, o grupo irá conhecer “a formação política dos quadros e da base e o processo de organização” do PC chinês, informou em suas redes sociais Camila Moreno, da Direção Executiva Nacional do PT, que integra o grupo. O roteiro inclui ainda cidades que são vitrines do milagre econômico chinês, como Cantão e o polo tecnológico de Shenzhen.

A política partidária chinesa ganhou novo impulso com a chegada de Xi Jinping à liderança, em 2012, como forma de promover o modelo de governança do país e ampliar sua influência global. O projeto é uma das principais atribuições do Departamento de Ligação Internacional (DLI), criado em 1951 para articular as relações com partidos comunistas ao redor do mundo. O leque se ampliou e, hoje, o PCC mantém “contato regular” com mais de 600 partidos de 160 países, segundo a mídia estatal.

Enquanto no Ocidente a política externa de Xi Jinping é cada vez mais vista como um instrumento agressivo da ascensão chinesa, com os países em desenvolvimento há meios mais sutis de interação, além da oferta de investimentos em infraestrutura. Um deles é a diplomacia partidária. Sem precisar representar o governo em atritos com outros países, o DLI pode se concentrar no lado positivo do modelo chinês, cativando os países emergentes com o que eles mais necessitam: eficiência e desenvolvimento.

Um exemplo são os treinamentos oferecidos a políticos de outros países. Milhares de estrangeiros já passaram pelas escolas do PC chinês, em cursos com previsível teor doutrinário, mas empacotados em linguagem pragmática, que enfatiza a importância do planejamento central para atingir as metas desenvolvimentistas. No ano passado, o conceito cruzou as fronteiras da China e se instalou na Tanzânia, onde foi inaugurada uma escola de liderança construída com aporte de US$ 40 milhões oferecido pela China.

O PC chinês insiste que não almeja exportar seu modelo de governança. Mas ao compartilhar histórias de sucesso, como no combate à pobreza, o objetivo implícito é oferecer uma alternativa descolada do Ocidente. Apesar da admiração que Lula tem demonstrado pelas conquistas do sistema chinês, o país é motivo de divergências históricas no PT, devido ao descaso com os valores democráticos.

Em 1989, o partido aprovou a moção “Não ao massacre do povo chinês”, após a brutal repressão ao movimento pró-democracia da Praça da Paz Celestial. Desde então a China virou referência em desenvolvimento, mas continua longe de ser modelo em direitos humanos.


quinta-feira, 13 de abril de 2023

Ainda existem pessoas sensatas nos círculos do poder: Brasil não adere de corpo e alma ao império chinês - Marcelo Ninio (O Globo)

 Brasil não deve assinar adesão à ‘Nova Rota da Seda’ na visita de Lula à China, diz Haddad

Segundo Haddad, a adesão não figura entre os documentos que serão firmados nesta sexta, quando o líder brasileiro estará em Pequim para encontros com o presidente chinês; cerca de vinte acordos devem ser assinados

Por Marcelo Ninio, O Globo — Xangai
13/04/2023

Não está prevista durante a visita do presidente Lula à China a entrada oficial do Brasil na chamada “Nova Rota da Seda”, o megaprojeto global de infraestrutura chinês que tornouse uma dos principais bandeiras da diplomacia do país asiático. É o que afirmou nesta quinta em Xangai o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, após dias de especulação de que o

Brasil poderia assinar um memorando de adesão ao plano, que este ano está completando dez anos.

Segundo Haddad, a adesão não figura entre os documentos que serão firmados nesta sexta, quando o presidente Lula estará em Pequim para encontros com o presidente chinês, Jinping, e outras autoridades do país. Cerca de vinte acordos devem ser assinados.

Fontes do governo relatam que persiste uma divisão sobre o tema nas esferas responsáveis pela tomada de decisão, sobretudo entre a Presidência e o Itamaraty. A favor está principalmente a perspectiva de um aumento de investimentos chineses em infraestrutura. O argumento contrário é de que este não seria o melhor momento para embarcar numa iniciativa chinesa com ambições geopolíticas sem uma contrapartida clara, que compense os ruídos que isso pode criar para o Brasil com parceiros do Ocidente, principalmente os EUA.

Haddad adiantou, contudo, que um cardápio de possíveis investimentos em infraestrutura está sendo preparado pela Casa Civil, e um dos principais locais de captação será a China. O plano, de acordo com o ministro, é “conciliar crescimento econômico com infraestrutura”. Além disso, uma das metas é atrair mais empresas chinesas para se instalar no Brasil, aproveitando a tendência de “descentralização” da produção industrial do país.

“As empresas da China já falam com cada vez mais liberdade da possibilidade de realizar investimentos em outros países e não centralizar aqui, por várias razões. Nós temos uma vantagem que pouquíssimos países do mundo têm, que é uma matriz muito limpa, que tende a ficar cada vez mais limpa, com energia solar, eólica”, afirmou.

Sobre o plano de Brasil e China ampliarem o volume de transações por meio de moedas locais, evitando o dólar e variações cambiais, Haddad negou que haja um componente geopolítico para o governo brasileiro, que possa levar à inclinação para um dos lados da disputa entre EUA e China.

“O Brasil não é um país alinhado no sentido tradicional do termo, é um país que sempre dialogou com todos os quadrantes sem privilegiar fortemente um lado e nunca fechou a porta para ninguém”, disse Haddad.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

A China ganhou? - Livro de Kishore Mahbubani - Marcelo Ninio (O Globo)



A Guerra Fria Econômica assume o contorno de uma nova longa "protracted war" (conceito de Mao, de 1938) entre um império declinante, os EUA, e um ascendente, a China. Eu creio que a China precisa de um George Kennan, ou seja, uma estratégia de contenção, contra o império tresloucado, para evitar um confronto nuclear; ela o fará, tenho certeza. Paulo Roberto de Almeida, leitor da biografia do Kennan por John Lewis Gaddis, que recomendo. Covid-19 mostrou que confronto entre China e EUA se tornou inevitável, diz ex-alto diplomata de Cingapura Marcelo Ninio, especial para O Globo 08/06/2020 - 04:30 / Atualizado em 08/06/2020 - 10:25 Figuras de papelão dos presidentes americano, Donald Trump, e chinês, Xi Jinping, em uma loja de lembranças para turistas em Moscou Foto: DIMITAR DILKOFF / AFP - 3/6/2020 https://oglobo.globo.com/mundo/covid-19-mostra-que-confronto-entre-china-eua-se-tornou-inevitavel-diz-ex-alto-diplomata-de-cingapura-24466654?versao=amp O título do mais recente livro de Kishore Mahbubani, ainda sem tradução no Brasil, soa como uma provocação ao Ocidente, especialmente aos EUA — e cumpre o prometido. Se o mundo caminha para uma nova guerra fria, como muitos acreditam, os EUA chegam ao confronto em clara desvantagem em relação à China, diz Mahbubani, sobretudo pela incapacidade americana de elaborar uma estratégia para o que ele chama de “a maior disputa geopolítica jamais vista” ou nem sequer imaginar um mundo em que não sejam o número um. É um contraste gritante com a estratégia de contenção articulada em 1946 pelo diplomata americano George Kennan para enfrentar a União Soviética, repete Mahbubani ao longo de seu livro. Membro ilustre do Instituto de Pesquisas Asiáticas da Universidade Nacional de Cingapura, país ao qual serviu como diplomata por 33 anos, Mahbubani é autor de vários livros sobre a mudança no eixo de poder global em direção à Ásia. Por que os EUA não delinearam uma estratégia para lidar com a China? Depois da espetacular vitória na Guerra Fria contra a União Soviética, os EUA se tornaram complacentes. No famoso artigo “O fim da História” (1992), [o cientista político americano] Francis Fukuyama afirma que todas as sociedades se tornariam democracias liberais como os EUA e a Europa. E que por isso os EUA e a Europa podiam relaxar e não fazer nada e o resto do mundo teria que se adaptar. Esse artigo causou um grande dano cerebral ao Ocidente, porque foi publicado exatamente no momento em que a China e a Índia despertavam de um sono de 200 anos. Nos últimos 40 anos a China viveu o maior crescimento econômico da história e os EUA ficaram no piloto automático, assumindo que, não importe o que aconteça, se manteriam como número um para sempre. Esse foi o maior erro estratégico dos EUA. Em recente artigo, Fukuyama afirma que o regime chinês é um desafio aos valores democráticos dos EUA. Isso reflete a atmosfera nos EUA, onde há uma reação muito emocional ao retorno da China. Muitos americanos acreditaram que a abertura econômica da China levaria à abertura do sistema político chinês. Hoje está cada vez mais claro que a China não está se movendo nem um pouco para se tornar uma sociedade democrática liberal e quer manter seu próprio sistema político, por isso há uma desilusão por parte de americanos como Fukuyama. Futuros historiadores ficarão intrigados em como um país como os EUA, com uma história política de menos de 250 anos, pôde acreditar que a China, com 4 mil anos de história e população quarto vezes maior, se tornaria mais parecida com os EUA — e não o oposto. Essa crença de que a China será como os EUA reflete uma certa ingenuidade política na mente de pessoas como Fukuyama, que não estudaram a história mais longa da humanidade e se concentram apenas na aberração que é o breve período de 200 anos de domínio ocidental. E isso é artificial, porque do ano 1 até 1820 as duas maiores economias foram China e Índia. A Covid-19 tornou o confronto inevitável? Eu esperava que a Covid-19 reduziria a competição geopolítica. Uma das regras mais antigas da geopolítica é que o inimigo do meu inimigo é meu amigo. A Covid-19 neste momento é o maior inimigo dos EUA, mais americanos já morreram do vírus que nas duas guerras mundiais. Logicamente, uma vez que a Covid-19 também é inimiga da China, os EUA deveriam pôr de lado suas outras diferenças e trabalhar com a China contra o vírus. Mas os EUA não fizeram isso, de fato usaram a Covid-19 para constranger, atacar e isolar a China, é isso é uma prova de que a tese de que o confronto é inevitável se tornou uma realidade. O senhor afirma que na comparação com a Guerra Fria, hoje a China é os EUA e EUA são o a União Soviética. Por que? Um dos conselhos mais sábios de George Kennan foi que o sucesso dos EUA na competição com os soviéticos dependia, no fim das contas, da vitalidade espiritual da sociedade. Em segundo lugar, ele disse que os EUA deveriam cultivar amigos e aliados. Em terceiro, aconselhou a não insultar a União Soviética, porque em algum momento poderia ser necessário trabalhar com os soviéticos em certas áreas. E o quarto conselho foi que os EUA tivessem humildade. O interessante é que o governo Trump está ignorando todos esses conselhos para lidar com a China. Em contraste, a China está seguindo de alguma forma os conselhos de Kennan, está se concentrando em sua vitalidade espiritual. A diferença mais importante entre os EUA e a China é que os EUA são a única sociedade desenvolvida em que a renda média da metade de baixo da população caiu nos últimos 30 anos. Enquanto isso, nos últimos 40 anos, o povo chinês teve a maior alta no nível de vida em 4.000 anos. Nesse sentido, ao não prestar atenção em sua vitalidade espiritual e, em vez disso gastar dinheiro em defesa, os EUA estão se comportando como a União Soviética e a China, ao gastar menos em defesa e se concentrar em sua vitalidade doméstica, está agindo mais como os EUA. Como o sr. responde aos que vêem no autoritarismo do regime chinês um obstáculo para o desenvolvimento do país, por inibir a criatividade e a inovação? Grande parte da incompreensão ocorre porque o Ocidente parte de suposições ideológicas ao lidar com a China. A maior democracia do mundo em população é a Índia. E foi um professor indiano bastante astuto que me disse: a diferença entre a Índia e a China é que a Índia é uma sociedade aberta com uma mente fechada, enquanto a China é uma sociedade fechada com uma mente aberta. Isso explica o dinamismo da sociedade chinesa. Quando eu fui à China pela primeira vez, em 1980, os chineses não tinham liberdade para escolher o que vestir, onde morar e o que estudar. Não havia turistas chineses no mundo. Hoje os chineses podem escolher tudo isso e 134 milhões chineses por ano viajam para o exterior livremente, e voltam para casa. Se a China fosse uma sociedade fechada e opressiva, os chineses não voltariam. Os chineses hoje não gozam de liberdades políticas do tipo que os americanos têm, mas contam com uma explosão de liberdades individuais. Se a China fosse um gulag comunista, não haveria empreendedores no país e a economia não seria tão vibrante e dinâmica. Mas a China está cheia de empreendedores, startups e empresas de tecnologia. No setor de pagamentos móveis, por exemplo, a China é número um no mundo. Isso mostra que a percepção de que a China é um Estado opressor não reflete a realidade. Quem sairá ganhando na guerra de narrativas entre China e EUA sobre a origem e o controle da pandemia? Não há dúvida que o governo chinês, e especialmente as autoridades de Wuhan, cometeram sérios erros no começo e um deles foi silenciar o médico Li Wenliang, que alertou sobre o surto do novo vírus. Erros foram cometidos no início, mas depois disso, quando se deram conta de que algo grave estava ocorrendo, os chineses foram capazes de ações muito fortes e decisivas. E apesar de o governo americano continuar culpando os chineses pelas mortes de americanos de Covid-19, Richard Horton, editor do Lancet, uma publicação científica britânica altamente respeitável, afirmou que eles publicaram cinco artigos na última semana de janeiro que descreviam o vírus como mortal e sem tratamento, que havia transmissão humana e alertavam para o risco de uma pandemia. O alerta foi feito no fim de janeiro e a maioria dos países do Ocidente desperdiçaram o mês de fevereiro e o início de março antes de agir. Claramente foi o fracasso dos EUA que levou a essa explosão de casos de Covid-19 no país. E agora, para esconder seus próprios erros, o governo Trump está culpando a China. As estatísticas mostram a espantosa diferença de competência entre os dois países. Costuma-se dizer que crises têm o potencial de acelerar processos históricos. Como essa crise afetará a ascensão da China? A batalha da Covid-19 ainda não terminou. Ainda estamos em meio a uma névoa e qualquer soldado lhe dirá que no meio da batalha, cercado pela névoa da guerra, não se sabe qual será o desfecho. No momento não há dúvida de que o governo chinês administrou a crise melhor que o governo Trump, os números mostram isso. Mas os EUA ainda têm as melhores universidades, os melhores institutos científicos, o maior número prêmios Nobel, então se amanhã uma instituição inventar uma cura para a Covid-19 e salvar o mundo, o mundo inteiro dirá "graças a Deus temos os EUA”. Nesse sentido, os EUA ainda podem sair vencedores da batalha da Covid-19 se descobrirem a cura. O sr. afirma que uma das diferenças entre a Guerra Fria e o momento atual é que a China, ao contrário da União Soviética, não está tentando exportar sua ideologia. Mas há em muitos países há a preocupação de que a China está usando seu poder econômico para influenciar processos domésticos. O conceito de uma potência benevolente é um paradoxo. Todas as grandes potência defende seus interesses e à medida em que a China se torna mais poderosa ela irá usar seu poder para defender seus interesses. A China certamente se tornará um desafio para o mundo à medida em que se tornar mais forte. Graham Allison, professor de Harvard que escreveu o livro “Destinado para a guerra”, diz que muitos americanos se perguntam “por que os chineses não se comportam como nós?”. E Allison diz: cuidado com o que você deseja. Quando os EUA emergiram como grande potência no fim do século 19, começo do 20, [o presidente] Teddy Roosevelt declarou guerra à Espanha, conquistou territórios como as Filipinas, os EUA eram muito mais imperialistas que a China hoje. No último ano do governo Obama, os EUA lançaram 26 mil bombas em sete países. Em contraste, a China é o único país que não lutou uma guerra nos últimos 40 anos e não deu um tiro além de suas fronteiras nos últimos 20. A atitude dos chineses é: você não exporta seu sistema para mim e eu não exporto o meu para você. É o oposto da União Soviética. O sr. prevê que o confronto pode forçar países a tomar um lado. Qual será a consequência para um país como o Brasil, que no momento tem uma aliança ideológica com os EUA, e ao mesmo tempo depende da China economicamente? Tanto os EUA como a China agirão como grandes potências, e quando a competição ocorrer eles irão seduzir, intimidar, persuadir pressionar outros países a apoiá-los em sua disputa geopolítica. Mas eu acho que o mundo mudou desde a Guerra Fria e a maioria dos países preferem, primeiro, que não haja essa competição geopolítica agora, porque há coisas mais importantes a fazer, como lidar com o aquecimento global. E segundo, não querem escolher um lado. Ao contrário da primeira Guerra Fria, quando muitos países ficaram satisfeitos em se aliar aos EUA contra a União Soviética, hoje quase nenhum país está dizendo aos EUA "conte comigo, estou com vocês em sua disputa com a China". E mesmo os países da Europa, que obviamente estão mais à vontade ideologicamente com os EUA, ainda mantêm seus laços com a China. A Alemanha, por exemplo, vende mais carros para a China do que para os EUA, por isso quer manter boas relações com ambos. É isso que a maioria dos países dirá a EUA e China. Eu fui diplomata por 33 anos, de 1971 a 2004. E quando eu me tornei embaixador na ONU, em 1984, eu tinha relações muito próximas com meus colegas brasileiros. Na maior parte do tempo o embaixador brasileiro estava muito preocupado com a forma como os americanos estavam interferindo nos assuntos da América Latina. Neste momento, por um acidente da história, vocês têm um presidente no Brasil que é simpático ao presidente Trump. Mas quando houver uma mudança de governo no Brasil as preocupações tradicionais da geopolítica emergirão. O mais sensato e lógico para o Brasil é manter boas relações tanto com os EUA como com a China. No início do ano analistas especulou-se que a crise abalaria o poder do líder chinês, Xi Jinping. Com o controle da epidemia na China essa percepção mudou. Como Xi sairá dessa crise? Vivemos num mundo que ainda é dominado pelo Ocidente. E certamente a mídia internacional é dominada pelo Ocidente, especialmente a anglo-saxã. Você pode contar com a imprensa anglo-saxã para contar histórias negativas sobre a China. No meu livro eu levanto uma questão bastante sensível: na psique ocidental há enterrado por muitos séculos o medo da “ameaça amarela”. A mente ocidental nunca está confortável em um mundo onde uma potência não-ocidental se torna número um. Muitos dos relatos negativos sobre a China não são resultado de análise racional, mas do medo da “ameaça amarela”. Acho que nós que vivemos fora do Ocidente não devemos nos submeter aos preconceitos e emoções ocidentais, temos que analisar a China de forma objetiva. Segundo o Edelman Trust Barometer, com base em Nova York, a China é o país onde há o nível mais alto de confiança no governo. E certamente toda a evidência que vi, embora talvez haja alguns liberais em universidades que não estão confortáveis com ele, a vasta maioria das pessoas na China está muito satisfeita com o governo de Xi Jinping. Porque eles sabem que ao longo da história, quando a China teve um poder central fraco as pessoas sofreram, como ocorreu no "século da humilhação”, de 1842 a 1949. Mas quando tem um poder central forte como sob Xi, as pessoas se beneficiam. De acordo com todas as evidências, Xi Jinping ficou mais popular depois da Covid-19. Qual seria o impacto nas relações com a China de uma vitória do democrata Joe Biden sobre Trump na eleição presidencial de novembro? Certamente se Joe Biden vencer a eleição em novembro o tom e a química da relação entre a China e os EUA mudarão. Biden é uma pessoa decente, não irá insultar a China como o governo Trump tem feito. Mas essa disputa geopolítica está sendo alimentada por diferenças estruturais entre China e EUA, e eu cito três exemplos. Primeiro, a questão é quem terá a maior economia do mundo; segundo, a China é a primeira potência não-ocidental a desafiar o poder americano; e terceiro, os americanos também se sentem desconfortáveis com um país governado por um partido comunista. Portanto há diferenças estruturais entre os dois países. O único momento em que o presidente Trump tem apoio bipartidário é quando ele bate na China, mesmo que algumas de suas posições sejam extremamente irracionais e nada inteligentes. Afinal, a China venceu? Acho que eu não deveria dar a resposta, porque aí as pessoas não comprarão o livro. Todos pensam que a resposta é sim, a China venceu. Mas a resposta no meu livro é não, ou mais corretamente, ainda não. Enquanto os EUA continuam tentando enfrentar o desafio chinês sem uma estratégia abrangente, os líderes chineses sempre pensam no longo termo e estrategicamente. Com sua falta de estratégia, os EUA estão dando à China uma vantagem competitiva. De certa forma o meu livro é um presente aos meus amigos americanos, uma forma de despertá-los para a nova realidade com que estão lidando, um desafio geopolítico muito mais formidável que a União Soviética. Se os EUA foram capazes de delinear uma estratégia consistente, plausível e inteligente para lidar com a União Soviética, também podem fazer o mesmo com a China. Mas eles precisam ouvir os conselhos de Kennan: focar na vitalidade espiritual interna, cultivar amigos e aliados, parar de insultar a China e ser humildes. Você pode imaginar o governo Trump fazendo isso?

Livros do autor:



About A veteran diplomat, student of philosophy, and celebrated author, Kishore Mahbubani is currently a Distinguished Fellow at the National University of Singapore’s Asia Research Institute. Mahbubani is also a former President of the UN Securit Read more