A Oxfam envergonha os estatísticos do planeta, os economistas também (menos os do PT e do PSOL).
Geanluca Lorenzon
Mises, 20/01/2020
Nosso amigo Leandro Narloch fez um
bom resumo acerca dos principais mitos e omissões da Oxfam em relação ao referido relatório.
Com afirmações como "o 1% mais rico possuirá mais fortuna que todo o resto da população em 2016", não é difícil imaginar como um cidadão médio reagiria a tal notícia: provavelmente condenando a chamada desigualdade, sem entender ou diferenciar os diversos fatores que contribuem para a mesma, ou sequer se perguntar se ela é algo relevante para qualquer aspecto de sua qualidade de vida.
As sugestões da ONG são repetitivas já:
- Taxar os ricos (essa até o PT já abraçou; give me more!);
- Investir em sistemas universais e "gratuitos" de saúde e educação (Mussolini teria orgulho);
- Buscar um objetivo global para combater isso.
Como isso poderia dar errado? Afinal,
Brasil,
Venezuela e
Argentina (pré-Macri) foram um retumbante sucesso econômico na mobilidade social dos mais pobres...
Por que punir aqueles que conseguiram fazer suas fortunas pelo trabalho de suas próprias mãos? Como mostra
este hilário infográfico do site pop 9gag(baseado em dados da Bloomberg), nada menos que 73 das 100 pessoas mais ricas do mundo são "self-made billionaires" — ou seja, somente 27 dos mais ricos do mundo assim o são porque herdaram uma fortuna. Os demais trabalharam por conta própria para chegar onde chegaram.
Ainda mais interessante: 36 deles eram filhos de pais que viviam na pobreza, e 18 sequer tiveram um diploma na Universidade.
Você realmente acredita que existe uma fórmula certa para ter um "sucesso de renda"? Para a Oxfam existe. Para todos os planejadores centrais — dos positivistas aos comunistas, nazistas, socialistas e ambientalistas — existe sempre uma fórmula única de acordo com a qual a sociedade deve ser desenhada. E o melhor: tal fórmula dará certo, mesmo que tenha que ser implantada à força. Como alguém consegue ficar sequer em dúvida ao descobrir que todos os regimes socialistas inevitavelmente têm de ser totalitários?
Entretanto, ainda que para um analista na tradição da Escola Austríaca as sugestões e as conclusões da
Oxfam pareçam tão economicamente incoerentes, resolvi conversar com um economista com foco em — preparem-se — econometria.
Troquei alguns e-mails com Carlos Góes, mestre em Economia Internacional pela conceituada
John Hopkins University, pesquisador-chefe do
Instituto Mercado Popular, e analista de instituições financeiras internacionais em Washington, DC. Apesar de tudo, ele me garante ser um fã de Hayek. Vamos ao bate-papo:
A: É consenso entre economistas liberais que o estudo da Oxfam possui diversas falhas e um ar de sensacionalismo. Qual das falhas do estudo divulgado nesta semana você considera a mais grave?
Carlos Góes: Independentemente de economistas serem liberais, keynesianos ou marxistas, clareza metodológica é fundamental para entender o que significam as respostas que os dados proveem para a gente. E é preciso reconhecer as limitações dos dados quando essas existem.
Há dois problemas fundamentais com os dados produzidos pela Credit Suisse que foram utilizados pela Oxfam.
O primeiro é de ordem técnica. Ao contrário de dados sobre a renda, a grande maioria dos países não tem dados sobre os estoques de riqueza, uma vez que o que se taxa normalmente é a renda e não a riqueza. Esse fato limita a confiabilidade das estatísticas sobre a riqueza.
Segundo
o relatório da Credit Suisse, somente 17 países têm estimativas completas de riqueza do setor privado (conhecidas como "household balance sheets"). Outros 31 países têm dados parciais, detalhando a riqueza financeira, mas não a riqueza não-financeira do setor privado — nos EUA, a riqueza não-financeira (imóveis, maquinários etc.) é de cerca de 1/3 da riqueza total, o que significa que ignorar a parte não financeira é ignorar boa parte da realidade.
Para os outros 150 países do estudo, os economistas da Credit Suisse fizeram extrapolações — que não são inúteis, mas têm suas limitações, já que não trazem informações completas.
O relatório original da Credit Suisse tem vários problemas além do mencionado acima. Entre eles:
(a) não inclui riqueza informal (as casas nas favelas e bairros pobres brasileiros, por exemplo, que muitas vezes valem dezenas de milhares de reais apesar de não serem formalizados com um título estatal), riqueza esta que o economista Hernando de Soto estima em cerca de 10 trilhões de dólares;
e (b) não inclui riqueza implícita — como aquela prevista por sistemas de seguridade social dos países ricos, que se fossem administrados privadamente seriam parte de poupança dos cidadãos.
O próprio relatório da Credit Suisse diz que o estudo sobre a riqueza global está "em sua infância". Na melhor das hipóteses, essas estimativas são pouco confiáveis e devem ser tomadas com bastante cuidado.
O segundo problema é de ordem conceitual. Eles utilizam o conceito de riqueza "líquida" (ou seja: patrimônio menos dívidas). Segundo essa metodologia, se você tirar um real do bolso e der para seu sobrinho de dez anos, ele vai ter uma riqueza maior do que "2 bilhões de pessoas somadas". Sim, seu sobrinho instantaneamente passa a ser um magnata com mais riqueza que bilhões de pessoas juntas.
Como isso é possível? Porque a metodologia considera a riqueza "líquida" (ou seja: patrimônio menos dívidas) das pessoas. E 2 bilhões de pessoas, tendo dívida, têm riqueza negativa.
Alguém que se formou em Harvard, vive num apartamento de cobertura em Nova York e ganha 100 mil dólares por ano mas tem 250 mil dólares em dívidas estudantis é mais pobre do que um camponês indiano que tem uma bicicleta, vive com um dólar por dia e não tem dívida.
Não importa se o cara de Harvard gasta centenas de dólares tomando McCallahan's 18 anos todas as vezes em que sai pra balada. Pra Oxfam, ele é mais pobre que o camponês indiano.
Ainda segundo essa metodologia, quando você compra um jatinho você se torna imediatamente mais pobre. Como? Você acaba de assumir uma dívida de 25 milhões de dólares (incluindo juros) e adquiriu um patrimônio de valor de mercado de uns 20 milhões de dólares. Logo, você está 5 milhões de dólares mais pobre.
Para a Oxfam, quem viaja de jatinho usando financiamento é mais pobre do que quem viaja de ônibus pagando à vista."
Isso faz sentido pra definir quem é pobre e quem é rico?
A: Você acredita que o estado causa desigualdade de renda?
O estado pode aumentar ou reduzir a desigualdade, a depender do desenho da política pública. No Brasil, a estrutura tributária, por ser excessivamente prevalente em impostos sobre o consumo (que incidem desproporcionalmente sobre os mais pobres, já que estes em geral consomem uma parte maior de sua renda), contribui para aumentar a desigualdade. Além disso, diversas políticas específicas beneficiam diretamente os mais ricos.
O BNDES concede empréstimos a juros subsidiados e, em seu portfólio,
a imensa maioria de seus beneficiários são aquelas empresas com faturamento maior que 300 milhões de reais por ano. Além disso, políticas como universidades estatais financiadas por impostos
funcionam como transferência de renda para os mais ricos e ajudam a perpetuar as desigualdades. Historicamente, não é muito difícil ver como o governo em diversas instâncias transferiu dinheiro de pobres para ricos. É só pensar no caso mais explícito desse comportamento, quando o governo, em plena Grande Depressão, comprou café dos grandes agricultores e queimou os grãos manter o preço do café alto nos mercados internacionais. Neste caso (como nos dois anteriores), o governo estava tirando dinheiro do contribuinte pobre e dando ele para a elite. Por outro lado, políticas focalizadas que beneficiam diretamente os mais pobres (como o Bolsa Família), podem ajudar a reduzir a desigualdade.
É interessante que pessoas com diferentes ideologias concordariam com a noção de que o governo não deveria transferir renda de pobres para ricos. Por isso, é possível alcançar um consenso político que ajude a reduzir as desigualdades. Para tanto, é importante que a sejam cortados subsídios de cima para baixo (começando por aqueles que transferem dinheiro de pobres para ricos) e seja desburocratizada a economia de baixo para cima (porque, em geral os mais ricos, armados com exércitos de advogados e contadores, têm mais capacidade para contornar as regulações que dificultam o empreendedorismo do que o Manuel da Padaria e a Dona Maria, que têm um ateliê de costura).
A: A desigualdade de renda causada pelo processo de mercado é algo ruim? Isso afeta a questão de incentivos em uma economia? Alguns teóricos, por exemplo, alegam que a grande falha do socialismo seria a questão dos incentivos.
CG: A primeira coisa a se entender é que nem todas as desigualdades são iguais. Às vezes, quando o ponto de partida é muito ruim, a desigualdade é simplesmente fruto da melhoria de vida de algumas pessoas. Angus Deaton, que ganhou o Nobel de Economia ano passado, traz um exemplo interessante
em seu livro mais recente: imagine que, dentre 100 judeus em um campo de concentração, dez conseguem fugir. Isso causou uma desigualdade, já que agora alguns estão em liberdade e outros não. Mas isso não seria uma situação inerentemente pior à situação de plena igualdade em que todos estavam no campo de concentração? Talvez essa desigualdade inicial dê esperança para os que lá ficaram e faça com que eles fujam.
Por outro lado, talvez os guardas punam os que ficaram para desestimular fugas futuras. De todo modo, não há nada óbvio em relação à desigualdade. Ela pode ser boa ou ruim: sempre depende.
Desigualdade é como colesterol: há uma boa e outra ruim. A boa é aquela que deriva dos talentos, esforços e inventividade das pessoas e gera bons incentivos. Quando alguém cria valor para os outros ela deve ser recompensada por isso — porque isso gera dinamismo econômico, inovação e menos pobreza (pense no arquétipo do Steve Jobs). Se ela não for recompensada, ela não vai ter incentivo pra continuar inovando.
A ruim é aquela de uma sociedade estamental — de comando e controle —, onde as pessoas não enriquecem por causa de sua inventividade ou pelo valor que geram para à sociedade, mas pelos privilégios que têm junto aos poderosos (pense no arquétipo de Eike Batista).
Temos de corrigir as desigualdades injustas que existem no mundo — e elas existem em demasia. Mas para isso precisamos de análise séria. E não retóricas travestidas de números.
A: Um estudo sensacionalista como esse pode gerar uma grande repercussão política. Mises sempre defendeu que as ideias são a chave para a evolução de uma sociedade. Como explicar para o público de forma mais simples que esse estudo não reflete a realidade da sociedade mundial?
O ponto mais importante, portanto, é mostrar que a melhor maneira para evitar que elites políticas e econômicas cooperem para manter seus privilégios é retirando o poder político das mãos delas — e descentralizando as decisões nas mãos da sociedade por meio do sistema de preços. Sempre que políticos tiverem muito poder, os ricos terão incentivos para comprá-los. E, na medida em que tivermos uma economia descentralizada e dinâmica, as eventuais desigualdades de resultados provavelmente não serão percebidas como injustas pela maioria da população — pois seria a tal desigualdade "boa" mencionada anteriormente.
Durante toda a década de 1990 a desigualdade aumentou nos EUA, mas pouco se falava sobre isso. Por quê? Porque a maioria das pessoas via suas vidas melhorarem: elas tinham maior renda e consumiam mais. Elas não se sentiam injustiçadas pelo processo político e pela falta de oportunidades econômicas.
Hoje, como uma boa parte das pessoas viu sua renda estagnar e percebe que todos os ganhos têm sido apropriados por uma parcela pequena da população, elas se revoltam.
O debate, portanto, não reside necessariamente em negar a existência de desigualdades (em diversos países ela de fato está aumentando), mas em como caminhar na direção de um modelo que evite desigualdades injustas.
A: Vivemos o melhor momento da humanidade em qualidade de vida. Porém, ONGs como a Oxfam, entre outras, tendem a projetar uma catástrofe, agitando por uma mudança no sistema. Você acredita que o sistema econômico geral internacional precisa mudar? E em caso positivo, para qual direção?
CG: Certamente vivemos numa era sensacional. As perspectivas é que testemunhemos o fim da pobreza absoluta no decurso das nossas vidas. Além disso, a mortalidade infantil está caindo, a expectativa de vida está aumentando e a escolaridade média de meninos e meninas está subindo — dentre muitos outros indicadores sociais — na imensa maioria dos países. Bilhões de pessoas saíram da pobreza e, como o aumento na renda delas foi maior do que nos países ricos, a desigualdade total no mundo tem caído.
Muitas dessas mudanças se intensificaram nos últimos 40 anos, quando partes antes remotas do mundo — como diversas partes da Índia e da China — foram integradas à economia global. A mudança necessária é uma expansão dessa integração para áreas que ainda estão no gérmen desse processo — como a África Subsaariana.
Existem diversos problemas recentes de exacerbação das desigualdades nos países desenvolvidos — e é por isso que estudos como os da Oxfam têm tanta repercussão. Mas, numa perspectiva global, não há dúvidas: o mundo está se tornando mais rico, mais justo e mais igual.
(fim da entrevista)
Ao saber que não eram só os austríacos que consideravam o relatório um disparate, fui dormir tranquilo. Afinal de contas, amanhã posso enriquecer uma criança doando a ela apenar um dólar.
A esquerda conseguiu seu objetivo: nunca ser um salvador da humanidade foi tão fácil.